(…)
Uma vez em Petersburgo, Pedro não comunicou a ninguém que tinha chegado, não foi a parte alguma e passou os seus dias a ler um livro de Tomás A. Kempis, obra que lhe viera já não sabia donde.
E o único proveito que extraía desta leitura era a satisfação, para ele desconhecida até esse momento, de poder acreditar na possibilidade de atingir a perfeição e de realizar entre os homens esse amor fraternal e actuante que lhe havia revelado Osip Alexeievitch.
Oito dias depois da sua chegada, o jovem conde polaco Villarski, que Pedro conhecia de vista da sociedade petersburguesa, apresentou-se uma tarde em sua casa, com esse ar oficial e solene que havia assumido para se lhe apresentar a testemunha de Dolokov.
Fechou a porta assim que entrou, e depois de se certificar de que não havia mais ninguém na sala além de Pedro dirigiu-se-lhe nestes termos:
– Vim visitá-lo, conde – disse-lhe sem se sentar -, a fim de cumprir uma missão e fazer-lhe uma proposta. Uma pessoa altamente colocada na nossa Ordem intercedeu para que o senhor seja admitido entre nós antes do prazo habitual e pediu-me que fosse seu Padrinho. Considero um dever sagrado dar cumprimento às suas disposições. Está o senhor disposto, sob o meu patrocínio, a entrar na fraternidade dos irmãos franco-mações?
O tom frio e severo deste homem, que Pedro se habituara a ver quase sempre nos bailes sorrindo amavelmente no meio dos mais brilhantes ornamentos da sociedade elegante, impressionou-o.
– Sim, é esse o meu desejo – respondeu. Villarski aprovou com um aceno de cabeça.
– Uma pergunta, conde, à qual eu peço que me responda com toda a sinceridade, não como futuro Maçom, mas como homem de bem. Renegou as suas opiniões antigas, acredita em Deus?
Pedro reflectiu um momento.
– Sim.., sim, creio em Deus – disse ele.
– Nesse caso – continuou Villarski, mas Pedro interrompeu-o.
– Sim, acredito em Deus – repetiu mais uma vez.
– Nesse caso, podemos seguir – voltou Villarski. – A minha carruagem está à sua disposição.
Durante todo o trajeto, Villarski conservou-se calado. Quando Pedro lhe perguntou o que tinha a fazer e que devia responder, contentou-se em afirmar que irmãos mais dignos do que ele iriam experimentá-lo e que ele não tinha a dizer senão a verdade.
Assim que chegaram à porta do edifício onde estava instalada a loja, subiram uma escada escura e penetraram numa pequena antecâmara iluminada, onde, sem que qualquer criado os ajudasse, despiram as peliças.
Dali passaram para outra de- pendência. Um homem de estranhas roupagens surgiu no limiar da porta. Villarski, indo ao seu encontro, disse-lhe algumas palavras em francês em voz baixa e aproximou-se de um pequeno armário em que Pedro viu umas vestes como nunca vira.
O seu companheiro pegou num lenço, vendou-lhe os olhos e atou-o com um nó na nuca, deixando uma madeixa de cabelo desastradamente metida no nó. Depois puxou-o para si, abraçou-o e conduziu-o, levando-o pela mão.
Pedro, incomodado com a venda que lhe repuxava os cabelos, fazia caretas e ao mesmo tempo sorria com um ar embaraçado. A sua espessa figura, os braços balouçando, com o rosto todo contraído e sorridente, ia seguindo Villarski com passos tímidos e hesitantes.
Depois de ter dado uns dez passos, o guia deteve-o.
– Aconteça o que acontecer – disse-lhe ele – tudo deve suportar com coragem, caso esteja firmemente resolvido a dar entrada na nossa instituição. – Pedro acenou afirmativamente com a cabeça. – Quando ouvir bater à porta – acrescentou Villarski – tire a venda. Coragem e que seja bem sucedido. – E saiu, depois de lhe ter apertado a mão.
Uma vez só. Pedro continuou a sorrir. Por duas ou três vezes encolheu os ombros, impaciente, levou a mão à venda, como a querer arrancá-la, e voltou a deixá-la cair.
Os cinco minutos decorridos depois que lhe haviam vendado os olhos afiguravam-se-lhe uma longa hora. Tinha as mãos dormentes, as pernas vergavam-se-lhe. Parecia extraordinariamente cansado. As impressões que sentia eram das mais complexas e das mais variadas.
Tinha medo do que se estava a passar com ele, e ainda receava mais mostrar que o tinha. Estava curiosíssimo por saber o que lhe iriam fazer e o que lhe iam revelar; mas nele dominava a alegria de ver chegar o momento em que finalmente entrasse no caminho da renovação e da vida ativa e virtuosa com que sonhava desde o seu encontro com Osip Alexeievitch.
Na porta ressoaram umas pancadas violentas. Pedro desatou a venda e olhou em volta de si. A dependência estava às escuras. Havia apenas um recanto iluminado em que bruxuleava uma lamparina sobre qualquer coisa branca.
Pedro aproximou-se e verificou que a lamparina estava pousada em cima de uma mesa preta onde havia um livro aberto. O livro era os Evangelhos e o objeto branco em que ardia a lamparina, uma caveira.
Leu as conhecidas palavras “Ao princípio era o Verbo e o Verbo era Deus”, em seguida deu a volta à mesa e viu uma grande caixa aberta a transbordar. Era um caixão cheio de ossos. Pedro não sentiu a mínima surpresa perante o que via.
No seu desejo de principiar uma vida completamente nova, totalmente diferente da anterior, contava com coisas extraordinárias, muito mais extraordinárias ainda do que aquelas que estava a ver.
A caveira, o caixão, o Evangelho, por isso esperava ele, e afigurava-se-lhe que devia esperar ainda muito mais. Esforçou-se por sentir qualquer emoção como um sentimento devoto.
“Deus, a morte, o amor, a fraternidade humana”, dizia dentro de si mesmo, procurando que estas palavras encerrassem não emoções obscuras, mas símbolos de felicidade.
A porta abriu-se e alguém entrou.
A pálida luz que, apesar de tudo, permitia que Pedro distinguisse os objectos, apareceu um homem de pequena estatura. Ao passar da luz para a obscuridade, parou; depois, em passos prudentes, aproximou-se da mesa, na qual pousou as suas pequenas mãos enluvadas.
O recém-chegado trazia um avental de pele branca que lhe cobria o peito e parte das pernas; no pescoço tinha uma espécie de colar debaixo do qual apareciam uns altos bofes brancos que lhe encaixilhavam o rosto alongado, iluminado pela parte inferior.
– Porque veio aqui? – disse ele, voltando-se para o lado donde vinha o ruído que Pedro estava a fazer. – Porquê, se não acredita na verdadeira luz, se a não vê, porque veio aqui, que quer de nós? A sabedoria, a virtude, a cultura?
Logo que a porta se abrira e que o desconhecido entrara. Pedro sentira-se tomado por um sentimento de temor e de respeito semelhante ao que costumava experimentar na infância quando se confessava: encontrava-se frente a frente com um homem muito afastado pela sua condição e muito perto do ponto de vista da fraternidade humana.
Com palpitações que lhe cortavam a respiração, aproximou-se do reitor – o nome que se dá na Maçonaria ao irmão encarregado de preparar o recipiendário que aspira a entrar na organização. Mais de perto reconheceu tratar-se de, um dos seus amigos, um certo Smolianinov, e impressionou-o pensar que aquele homem seu conhecido para ele devia ser apenas um irmão e um iniciador virtuoso. Esteve muito tempo sem poder encontrar palavras, obrigando o reitor a repetir as perguntas.
– Sim, eu.., eu quero regenerar-me – acabou por articular.
– Bom – disse Smolianinov, que prosseguiu: – Tem alguma noção dos meios de que a nossa santa Ordem dispõe para o fazer alcançar o seu objectivo? – A sua palavra era calma e pronta.
– Sim.., espero.., ser guiado, socorrido.., na minha regeneração – disse Pedro, a voz trémula e as palavras difíceis, ao mesmo tempo o resultado da emoção e do pouco hábito de exprimir em russo ideias abstractas.
– Que noção tem da Maçonaria?
– Penso que a Maçonaria é a fraternidade e a igualdade dos homens que têm a virtude por objectivo – replicou Pedro, que, à medida que ia falando, sentia vergonha de empregar palavras por de mais vulgares para a solenidade de momento.- Eu julgo…
– Bom – deu-se pressa em responder o reitor, visivelmente satisfeito com a resposta. – Procurou na religião os meios de alcançar esse fim?
– Não, sempre a considerei contrária à verdade, e não a segui – disse Pedro tão baixo que o Maçom não ouviu e pediu-lhe que repetisse. – Eu era ateu – acrescentou.
– Procura a verdade a fim de se conformar com as suas leis na vida; por conseguinte, procura a sabedoria e a virtude, não é assim? – prosseguiu o reitor, depois de um instante de silêncio.
– Procuro, procuro – afirmou Pedro.
O Maçom tossiu, cruzou sobre o peito as mãos enluvadas e retomou a palavra.
– Devo agora revelar-lhe os principais objetivos da nossa Ordem, se essa finalidade concordar com a sua, terá vantagem em fazer parte da nossa agremiação. O essencial, e por conseguinte a base sobre a qual assenta, a Ordem e que nenhuma força humana pode destruir, é a conservação e a transmissão à posteridade dos importantes mistérios que chegaram até nós vindos dos séculos mais recuados e até mesmo do primeiro homem, mistérios de que depende talvez o destino do género humano. Mas como estes mistérios são de tal Ordem que ninguém os pode conhecer e tirar deles partido desde que se não tenha preparado por uma longa e cautelosa purificação de si próprio, nem toda a gente se pode vangloriar de os possuir facilmente. Eis porque o nosso segundo objectivo consiste em predispor os nossos irmãos tanto quanto possível para purificar os seus corações e para elevar e esclarecer a sua razão, graças aos meios que a tradição nos desvendou, em nome daqueles que se esforçaram por esclarecer esses mistérios, e torná-los assim capazes de os receber. Pela purificação e regeneração dos nossos adeptos esforçamo-nos, em terceiro lugar, por corrigir igualmente o humanidade inteira, oferecendo-lhe modelos de honestidade e de virtude e assim procuramos com todas as nossas forças combater o mal que reina no mundo. Reflicta nisto, que eu voltarei a visitá-lo – acrescentou e saiu.
“Lutar contra o mal que reina no mundo…”, repetiu Pedro de si para consigo, e diante dos seus olhos perpassou a sua acção futura nesse sentido.
Afigurou-se-lhe estar perante homens tal como ele próprio quinze dias antes e mentalmente dirigia-lhes uma alocução. Representavam-se-lhe esses homens corruptos e infelizes, a quem ele levaria auxílio nas suas palavras e nos seus atos. Representavam-se-lhe os opressores a quem ele arrancaria as suas vítimas.
Dos três objetivos enumerados pelo reitor, este último, a regeneração do género humano, era o que mais lhe agradava. Os graves mistérios de que aquele homem falara, ainda que excitassem a sua curiosidade, não se lhe afiguravam essenciais.
Quanto ao segundo objetivo, a purificação e a regeneração próprias, interessava-lhe pouco, desde que naquele mesmo momento experimentava a grande satisfação de se encontrar já totalmente liberto dos seus vícios de outrora e unicamente preparado para o bem.
Meia hora depois o reitor voltou para comunicar ao recipiendário as sete virtudes, correspondentes aos sete degraus do templo de Salomão, que cada Maçom deve cultivar em si próprio.
Estas virtudes eram as seguintes:
- A modéstia, que guarda os segredos da Ordem;
- A obediência aos seus superiores;
- Os bons costumes;
- O amor da humanidade:
- A coragem;
- A generosidade, e
- O amor da morte.
– Em sétimo lugar – disse-lhe o reitor – esforçai-vos, pensando muitas vezes na morte, por chegar a encará-la não como uma inimiga terrível, mas como uma amiga.., que liberta desta vida de misérias a alma atormentada pelos trabalhos da virtude para a introduzir na mansão da recompensa e do repouso.
“Sim, deve ser assim”, dizia Pedro quando, depois de ter pronunciado estas palavras, o reitor desapareceu outra vez, deixando-o entregue às suas reflexões solitárias. “Deve ser assim, mas eu sinto-me ainda tão fraco que amo a minha existência, cujo sentido só agora se vai descobrindo pouco a pouco aos meus olhos.”
Mas as cinco outras virtudes que Pedro enumerava, contando pelos dedos, essas sentia-as na sua alma: a coragem, a generosidade, os bons costumes, o amor da humanidade e particularmente a obediência aos superiores, que até para ele não era uma virtude, mas antes uma venturosa sorte, de tal modo, com efeito, ele se sentia feliz por poder agora escapar ao seu livre arbítrio e submeter a sua vontade àquele e àqueles que possuíam a incontestável verdade.
Quanto à sétima virtude. Pedro tinha-a esquecido e não foi capaz de se lembrar dela.
Pouco depois, pela terceira vez, voltou a aparecer o reitor, e perguntou-lhe se ele continuava decidido na sua resolução e se estava disposto a submeter-se a tudo quanto dele exigissem.
– Estou pronto para tudo – disse Pedro.
– Devo fazer-lhe saber ainda – voltou ele – que a nossa Ordem ensina a sua doutrina não só pela palavra, mas por outros meios, que agem sobre aquele que procura verdadeiramente a sabedoria e a virtude talvez mais poderosamente ainda do que as explicações orais. Esta sala, com a decoração que tem diante dos olhos, já deve estar a agir sobre o seu coração, se o seu coração é sincero, mais fortemente que as palavras. É natural que à medida que for sendo iniciado venha a tomar contacto com outros meios de ensino do mesmo género.
A nossa Ordem imita as sociedades antigas, que desvendavam a sua doutrina através dos hieróglifos. O hieróglifo – acrescentou ele – é o símbolo das coisas que não impressionam os nossos sentidos e que possuem qualidades semelhantes àquelas que ele representa.
Pedro sabia perfeitamente o que era um hieróglifo, mas não tinha coragem de abrir a boca. Ouvia em silêncio, pressentindo, por tudo quanto escutava, irem principiar as provas.
– Se está decidido, devo proceder à sua iniciação – disse então o reitor, aproximando- se dele – Em testemunho da sua generosidade, peço-lhe que me entregue tudo quanto possui de precioso.
– Mas eu nada trouxe comigo – disse Pedro, que supunha estarem a pedir-lhe tudo o que ele possuía.
– O que traz consigo: relógio, dinheiro, anéis…
Pedro apressou-se a entregar a bolsa do dinheiro, o relógio, e levou muito tempo para tirar do grosso dedo o anel de casamento. Quando acabou, o Maçom disse:
– Em sinal de obediência, peço-lhe que dispa o seu fato. Pedro tirou o fraque, o colete e a bota do pé esquerdo, consoante a indicação do reitor. Este levantou a camisa do lado esquecido do peito e, baixando-se, dobrou o canhão da calça, na perna esquerda, à altura do joelho. Pedro preparava-se para descalçar também a bota do pé direito e dobrar a outra perna da calça, para assim poupar esse trabalho àquele homem, mas o Maçom disse-lhe não ser preciso e deu-lhe um chinelo para calçar no pé esquerdo.
Com um sorriso infantil em que havia embaraço, hesitação e troça de si mesmo, sorriso que, sem querer, se lhe espalhava pelo rosto. Pedro continuava de pé, os braços balouçando e as pernas afastadas, diante do seu iniciador, aguardando novas ordens.
– E por fim, em sinal de sinceridade, queira confessar-me qual é a sua principal fraqueza – disse-lhe este.
– A minha fraqueza! – exclamou Pedro. – Eu tenho tantas…
– A fraqueza que de entre todas mais o faz hesitar no caminho da virtude,
Pedro ficou calado, reflectindo.
“O vinho? A carne? A ociosidade? A preguiça? A exaltação? A cólera? As mulheres?” Mentalmente ia enumerando os seus vícios, pesando um por um, sem saber a qual deles dar preferência.
– As mulheres! – disse, em voz baixa, quase imperceptível.
O Maçom não pestanejou e ficou por muito tempo silencioso depois desta resposta. Por fim caminhou para Pedro, pegou no lenço que estava em cima da mesa e de novo lhe vendou os olhos.
– Pela última vez, digo-lhe: entre em si próprio, ponha um freio às suas paixões e procure a felicidade, não nessas paixões, mas no seu próprio coração. A fonte da felicidade não está fora de nós, mas em nos mesmos…
Pedro sentia-se já penetrado por um manancial refrigerante de felicidade que naquele momento lhe enchia o coração de alegria e de enternecimento. Pouco tempo depois vieram buscar Pedro à dependência escura, já não o reitor, mas o seu padrinho. Villarski, a, quem reconheceu pela voz.
Às perguntas que este lhe fez sobre a firmeza das suas resoluções. Pedro replicou: – Sim, sim, consinto -, e com o seu sorriso irradiante de criança, com o gordo peito nu, marchando timidamente, coxeando, um dos pés calçado e o outro descalço, caminhou enquanto Villarski mantinha uma espada com a ponta apoiada no seu peito nu.
Levaram-no ao longo de corredores, obrigando-o a dar voltas para diante e para trás, e por fim conduziram-no à porta da loja. Villarski tossiu; como resposta ouviram-se pancadas com o maço maçónico e a porta abriu-se. Alguém com voz de baixo – Pedro conservava os olhos vendados – perguntou-lhe quem era, onde e quando tinha nascido, etc.
Conduziram-no em seguida para o local, sem lhe tirarem a venda dos olhos, falando-lhe constantemente, por alegorias, das dificuldades da sua viagem, da santa amizade, do Supremo Arquiteto do Universo, da coragem com que devia suportar os sofrimentos e enfrentar os perigos. Durante todo o trajecto Pedro notou que lhe chamavam ora aquele que procura, ora aquele que sofre, ora ainda aquele que pede, e que iam batendo sempre de maneira diferente com os maços e as espadas.
Enquanto o aproximavam de um certo objeto, notou que rima hesitação e rima confusão se apoderavam dos guias. Percebeu que as pessoas que o rodeavam estavam a discutir umas com as outras em voz baixa e que uma delas insistia para que o conduzissem a um certo tapete. Fui seguida, pegaram-lhe ria mão direita, que pousaram sobre fosse o que fosse e disseram-lhe que apoiasse um compasso, com a esquerda, no seio esquerdo, em seguida fizeram-no repetir. à medida que lha iam lendo, a fórmula de juramento de fidelidade às regras da Ordem.
Depois apagaram as velas, acenderam álcool, o que Fedro percebeu pelo cheiro, dizendo-lhe que ia contemplar uma pequena luz. Tiraram-lhe a venda e Pedro viu, como em sonhos, a pálida luz do álcool, algumas pessoas com aventais semelhantes ao do reitor, de pé diante dele, todas com uma espada apontada ao seu peito. Entre eles estava um homem com uma camisa branca ensanguentada. Ao ver isto. Pedro fez um movimento de peito na direcção das espadas, como se quisesse ser trespassado. Mas as espadas afastaram-se e de novo lhe amarraram a venda. Agora já viste a pequena luz – disse-lhe uma voz. Depois acenderam as velas outra vez, disseram-lhe que ia agora ver a grande luz, de novo lhe desataram a venda e uma dúzia de vozes clamou de repente: Sic transit gloria mundi.
Pouco a pouco. Pedro foi voltando a si e pôs-se a observar a sala onde se encontrava e as pessoas que o rodeavam. Em volta de uma, comprida mesa coberta com um pano negro estavam sentados doze homens que, envergavam trajos iguais aos que ele vira anteriormente.
Alguns deles, pessoas da sociedade petersburguesa, eram seus conhecidos. No lugar da presidência estava um jovem desconhecido para ele, que tinha, pendente do pescoço, urna condecoração especial. À sua direita sentava-se o sacerdote italiano que ele vira havia um ano em casa de Ana Pavlovna.
Estavam presentes também um alto dignitário e um governador suíço que ele encontrara outrora em casa dos Kuraguine. Todos se conservavam num silêncio solene escutando o presidente, que empunhava um maço. Suspensa da parede, via-se uma estrela flamejante: a um dos lados da mesa desdobrava-se uma pequena tapeçaria representando diversos atributos, no outro erguia-se uma espécie de altar com o Evangelho e uma caveira. A toda a volta perfilavam-se sete castiçais, como os que se vêem nas igrejas. Dois dos irmãos conduziram Pedro ao altar, fizeram-no abrir as pernas em forma de esquadro e intimaram-no a que se deitasse no chão, dizendo que assim se prosternava perante as portas do templo.
– É preciso que ele receba primeiramente a colher de pedreiro – murmurou um dos presentes.
– Basta – disse outro.
Pedro, estupefacto, sem compreender, olhava em volta com os seus olhos de míope, e, de súbito, sentiu que a dúvida lhe entrava no espírito: “Onde estou eu? Que estou eu a fazer? Não estarão a troçar de mim? Não me virei a envergonhar quando me lembrar de tudo isto?”
Mas a dúvida foi breve. Fitou as caras sérias que o rodeavam, recordou-se de tudo quanto fizera já, e de si para consigo reconheceu que não podia deter-se a meio caminho. Sentiu-se aterrado ao verificar que duvidara, e, esforçando-se por recuperar o primitivo enternecimento, prosternou-se perante as portas do templo. E, efetivamente, um enternecimento mais violento, ainda do que o anterior se apoderou dele.
Depois de ter estado prostrado algum tempo, disseram-lhe que se erguesse, ataram-lhe o avental de carneira branca igual ao que os outros traziam e puseram-lhe na mão uma colher de pedreiro e três pares de luvas. Depois o Venerável Mestre dirigiu-lhe a palavra. Disse-lhe que tudo devia fazer para não macular a, brancura daquele avental, emblema da firmeza e da inocência.
Em seguida, referindo-se à colher de pedreiro, explicou-lhe que com ela devia esforçar-se por purgar o seu coração dos vícios e aplanar condescendentemente o coração do próximo. Quanto ao primeiro par de homem, disse-lhe que ele não poderia compreender-lhe o significado, mas que era bom que o conservasse quanto ao segundo par, de homem também, disse que o devia trazer às reuniões; e por fim, quanto ao terceiro, esse de mulher, declarou: “Irmão, estas luvas de mulher também te foram igualmente atribuídas. Dá-as à mulher que tu respeitares acima de todas. Este presente será o penhor da pureza do teu coração para com aquela que deves escolher como digna companheira de um pedreiro-livre.” E, após um momento de silêncio, acrescentou: “Mas cautela, meu irmão, não consintas que mãos impuras calcem essas luvas.”
Enquanto o Venerável Mestre falava. Pedro julgou perceber nele uma certa perturbação. E ele próprio se sentiu também confuso. Corou, com as lágrimas nos olhos, como costuma acontecer às crianças, olhou apreensivamente à roda e reinou um silêncio embaraçoso.
O silêncio foi interrompido por um dos irmãos, que, ao conduzir Pedro direcção à tapeçaria, se pôs a ler, num caderno, a explicação de todas as figuras aí representadas: o Sol, a Lua, o maço, o fio-de-prumo, a colher de pedreiro, a pedra bruta e cúbica, a coluna, as três janelas, etc. Em seguida foi-lhe apontado o seu lugar, mostraram-lhe as insígnias da loja, disseram-lhe o santo e a senha, consentindo, por fim, que se sentasse.
O Venerável Mestre procedeu à leitura do regulamento. Este era muito extenso, e Pedro, possuído de alegria, de emoção e de embaraço, sentia-se incapaz de compreender fosse o que fosse.
Não conseguiu ouvir com atenção senão os dois últimos parágrafos: “Nos nossos templos”, dizia o Venerável Mestre, “não conhecemos outros graus além daqueles que separam a virtude do vício. Evita oposições que possam destruir a igualdade. Corre em auxílio do teu irmão, seja ele quem for, ajuda aquele que se extraviar, levanta aquele que cair e jamais nutras cólera ou ódio contra o teu irmão. Sê amável e afável. Alimenta em todos os corações a chama da virtude. Partilha a felicidade que tiveres com o teu próximo e que a inveja não perturbe nunca esta bem-aventurança. Perdoa ao teu inimigo, e vinga-te dele fazendo-lhe bem. Desde que cumpras assim a lei suprema voltarás a encontrar os trilhos da tua antiga grandeza perdida.”
Terminada que foi a leitura, levantou-se, estreitou Pedro nos seus braços e beijou-o. Este, os olhos cheios de lágrimas de alegria, olhava em roda, sem saber que responder quer às felicitaç5es que sobre ele afluíam quer aos cumprimentos dos que com ele queriam estreitar relaçc5es. Não distinguia particularmente qualquer amigo seu; em toda aquela gente apenas via irmãos com os quais muito desejava trabalhar.
O Venerável Mestre bateu com o maço em cima da mesa. Todos se sentaram nos seus lugares, e um dos presentes leu algumas linhas sobre o dever de humildade.
Em seguida, alguém propôs que se cumprisse o último rito. O grande dignitário que desempenhava as funções de irmão mendicante percorreu a assembleia. Pedro teria desejado inscrever-se no rol das colectas com toda a sua fortuna, mas receava dar assim uma prova de orgulho e inscreveu apenas uma importância igual à de todos os demais.
A sessão estava terminada, e, ao regressar a casa. Pedro julgou-se de volta de uma longa viagem que durara dezenas de anos; afigurava-se-lhe estar completamente transformado e que se despedira para sempre do tempo passado e de todos os seus antigos hábitos.
(…)
Extraído da obra “Guerra e Paz” de Leão Tolstói (Liev Nikoláievich Tolstói)
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