Dei uma morada da eternidade àquele que não tinha um filho...
O Livro Egípcio dos Mortos
APRESENTAÇÃO
Em face da estreita relação com a
temática egípcia (principalmente após a campanha napoleônica), naturalmente surgiram algumas pesquisa a fim de encontrar correlações entre esses campos.
O Egito comumente figurava nas Escrituras Sagradas que tão fortemente influenciaram os ritos maçônicos, berço de muitos mistérios na antiguidade como o de Osíris, Isis e Hórus que muitos autores apontam como alicerce simbólico d’A Lenda de Hiram, além de ser canteiro para algumas das mais magnificentes obras da antiguidade.
Dada à óbvia excelência técnica no ofício da construção e a notória importância religiosa das edificações sagradas para aquele povo, Ofício da Construção ou da Maçonaria Operativa deve ter assumido papel um tanto proeminente naquela sociedade.
Junto a essa proeminência, viria um quinhão de registro para a posteridade, os quais os estudiosos maçônicos passaram se ater (como Robert Lomas e Christopher Knight em A Chave de Hiram) e onde foi encontrada certa narrativa um tanto familiar...
NEFERHOTEP
Um papiro datado da época do reinado do faraó Seti II[1], narra as atribulações e conflitos ocorridos em um grupo de construtores do Vale dos Artesões no antigo Egito.
Nesta narrativa, Neferhotep[2], um dos dois capatazes[3] das construções da necrópole[4] de Deir el Medina[5], acaba sendo sobrepujado por seu conturbado filho adotivo[6] denominado Paneb que cobiçava seu cargo.
Paneb era filho de um artesão de um povoado próximo, Nefersenet, mas foi adotado por Neferhotep, um dos chefes principais da localidade, isto é, o capataz de uma das duas equipes que se ocupavam dos trabalhos nas tumbas reais. Neferhotep e sua esposa Uabkhet não tiveram filhos, por isso, além de adotar Paneb, o matrimoniaram com Uabet, parente próxima do outro capataz, Hay, a fim de darem continuidade a sua linhagem.
Neferhotep foi um proeminente capataz, descendente de uma notória linhagem de mestres construtores que muito já prestavam serviços no Vale dos Artesões para diversas dinastias faraônicas. Como a maioria dos construtores operativos em Deir el Medina, Neferhotep era versado na construção de edificações sagradas como templos e sepulcros.
O cargo de capataz concedido a Neferhotep lhe foi herdado de seu pai, Nebnefer (também um chefe construtor), e lhe atribuía grande prestígio na comunidade local, além de lhe render certa soma de ganhos e terras pelos qual matinha sua estrutura familiar. Era ainda prerrogativa do capataz, escolher seus serventes e obreiros e comumente membros da família como irmãos e filhos eram empregados.
Dada às circunstâncias controversas da morte de Neferhotep, seu filho Paneb e seu irmão mais novo Amennakhte passaram a disputar sua sucessão no cargo de capataz além de todas as suas prerrogativas e prestígio.
Posteriormente diversas transgressões seriam imputadas a Paneb[7] por Amennakhte no litígio pela sucessão de Neferhotep em uma acusação agressivamente composta que ainda se encontra preservada num papiro mantido pelo British Museum.
Paneb apesar de como Neferhotep ter sido um artesão talentoso e chegado a ser um capataz eficiente (desconsiderando os meios para tal), exigente quanto à qualidade do trabalho dos que liderava na tumba real, entretanto foi, um dos poucos personagens do antigo Egito de que se pode identificar várias características próprias. Características específicas, individuais e indubitavelmente más, era dado à embriaguez, colérico, mulherengo e desmedido em atitudes violentas.
O FILHO RUFIÃO
Paneb apesar da instrução e condição que possuía, supostamente roubava tudo o que via em seu caminho, desde vinho para as libações, a peças de carruagem e blocos de pedra de qualidade, tudo...
Seu tio adotivo Amennakhte o acusou ter desviado utensílios da tumba real para uso em seu próprio sepulcro, até mesmo as ferramentas que ele teria empregado na obra de sua tumba seriam de propriedade real. Em outro ponto, para custear outros utensílios para sua tumba, ele teria roubado "dois grandes livros " de um certo Paherbeku.
Paneb ainda “empregou homens para cortar pedras no telhado da construção do Rei Seti II, que roubavam todos os dias pedras para sua própria tumba...”.
Ele não teria pudor nem mesmo de saquear o tumba de um subordinado, "ele desceu a tumba do trabalhador Nachtmin, e roubou o assento em que jazia. Ele também afanou vários objetos, que geralmente seriam presenteados ao morto". Foi-lhe imputado ainda de ter se apoderado de pedras do hipogeu real para fabricar colunas para seu sepulcro, bem como de ter roubado peças da mobília funerária de outra das tumbas da necrópole de Deir el Medina.
Ele também foi acusado de extorsões de todos os tipos, especialmente no que se referia a seus operários e as esposas e filhas destes. Teria sido denunciado por Amennakhte de forçar artesãos da tumba a trabalhar em sua própria mobília funerária e em objetos que ele mesmo deveria ter produzido, além de os fazerem alimentar o seu gado e com que suas esposas tecessem em seu benefício. Ele continuamente usufruía de seus operários para fins pessoais, certa vez até comissionou a mão-de-obra a um oficial do templo de Amon que necessitava de trabalhadores de campo.
Estas alegações são parcialmente confirmadas por registros das presenças e ausências dos artesãos no trabalho da tumba real, mas num contexto em que não se aparenta considerar abusivas tais ações, dentro de certos limites, até seria permissível que o capataz usasse ocasionalmente em seu próprio proveito a mão-de-obra local.
O FILHO INIMIGO
Quando Neferhotep ainda era vivo, Paneb o tratava imprevisivelmente, indo da veneração explicitada numa inscrição informal, ao conflito aberto e ao desrespeito, chegando até mesmo a ameaçá-lo fisicamente em certa ocasião, prometendo matá-lo.
Ele ainda cometeu um atentado contra sua vida, “E aconteceu que correu atrás do chefe operário Neferhotep... as portas se fecharam contra ele, mas utilizando-se de uma pedra as quebrou, eles então convocaram pessoas para proteger Neferhotep, pois Paneb havia dito que iria matá-lo durante a noite. Naquela mesma noite ele havia açoitado nove pessoas, e o chefe operário Neferhotep o denunciou ao vizir Amenmose que o puniu”.
Em outra ocasião, quando já se tornara capataz, também entrou em conflito com o capataz da outra equipe, Hay (parente de sua esposa) ameaçando matá-lo no deserto.
Neferhotep tinha se queixado dos ataques de Paneb sobre si mesmo para o vizir Amenmose, quando então este o puniu. Paneb então trouxe a queixa ante a Mose, que atuou para dispensar Amenmose de seu cargo. Evidentemente, este Mose deve ter sido uma pessoa da mais alta importância,[8] talvez o rei Amenmesse em pessoa ou algum aliado de alto escalão.
Neferhotep então foi obscuramente morto por algum “Inimigo”[9]. Seja qual for à verdade por traz deste episódio, Tebas de fato estava passando por momentos muito difíceis. Há referências em outros registros de "conflitos" que ocorreram durante aquele período, mas ainda assim é inconclusivo[10] para o que esta palavra faz alusão, talvez para não mais que algumas perturbações internas ou algum descontentamento popular.
Contudo, apesar de ter sido criado por Neferhotep, e por ele ter sido iniciado no ofício da construção, Paneb já havia anteriormente atentado contra Neferhotep[11] e por isso era o suspeito mais óbvio de seu assassínio. Como motivos, além de todo o histórico de brigas, haveria a herança de bens, e talvez o mais importante, o cargo de capataz ocupado por Neferhotep do qual Paneb seria o sucessor mais lógico face seu parentesco e habilidade.
Num dos episódios de suas desavenças com a família de Neferhotep, já depois da morte deste, Paneb tratou de negar acesso aos membros dessa família à tumba[12] de Neferhotep para levar as oferendas destinadas às práticas funerárias, para tal chegou até a apedrejá-los.
A hostilidade entre Paneb e os coligados de Neferhotep chegou a dividir o povoado em duas facções, uma apoiando tal grupo, a outra, Paneb. Isto dá subsídio a explicar o ódio tão implacável quanto o que lhe devotou durante décadas Amennakhte.
Uma das acusações posteriores de Amennakhte foi à de Panebter subornado o atual vizir Paraemhab, presenteando-o com cinco escravos para que o magistrado o nomeasse capataz.
Entretanto, Amennakhte conseguiu, afinal de contas, pôr fim à carreira de seu odiado sobrinho adotivo, quando uma das acusações que lhe dirigiu (que chegaram até mesmo a incluir a alegação de haver Paneb assassinado alguns homens que se preparavam para denunciá-lo ao vizir e de ter roubado um item dos utensílios funerários de uma das esposas de Ramsés II) foi confirmada, um objeto roubado da realeza foi (a estatueta de um ganso) encontrado na casa do capataz.
Paneb desapareceu desde então dos registros locais, provavelmente foi condenado e executado por sua falta de retidão...
ORIGEM DA LENDA?
Uma narrativa onde um Companheiro de Ofício trama o assassínio do seu Chefe Construtor por ambição é imediatamente reconhecível (na acepção maçônica do termo) por qualquer Mestre Maçom. Paneb desejava as prorrogativas Cargo de Capataz como os três rufiões Jubelas, Jubelos e Jubelum[13] desejavam as prerrogativas do Grau de Mestre e por isso acabariam por assassinar seu Chefe Construtor.
A estrutura da própria sociedade de operários no Vale dos Artesões em que sob as ordens de um Vizir, dois Capatazes dirigem 2 equipes de obreiros remete-nos ao Venerável Mestre que rege aos Vigilantes que por sua vez dirigem suas Colunas.
O título completo de um trabalhador da necrópole real na XVIII dinastia era "Servidor no Grande Lugar", ou, "Servidor no Belo lugar do Poderoso Rei".
No período raméssida (XIX e XX dinastias) eles eram chamados de "Servidores no Lugar da Verdade". Os trabalhadores eram conhecidos coletivamente como "homens da equipe", que derivava do termo usado para as equipes em um navio, a Maçonaria Especulativa também empresta como origem alegórica um navio, mas especificamente a Arca de Noé[14].
Como numa tripulação egípcia de navio, a equipe era dividida em dois lados, direito e esquerdo tais quais as Colunas da Loja Maçônica.
O grupo de obreiros era dirigido por 2 Capatazes, um para cada equipe como há uma Vigilante para cada das 2 Colunas.
O capataz era conhecido como “Chefe da equipe no Local da Verdade” e ter 2 capatazes prevenia a concentração de poder nas mãos de uma só pessoa na obra. Eles na prática eram indicados pelo Vizir como os Vigilantes o são pelo Venerável Mestre.
Paneb tinha algum interesse especial Colunas, já que teria se ariscado para a instalação das mesmas na sua própria construção, essas peças de arquiteturas são as de maior destaque nas alegorias da Maçonaria Especulativa.
Hiram laborava no "Lugar de JHVH", Neferhotep laborava no "Lugar de MAAT"[15]. Ambos os construtores se encontravam sob as ordens e tarefas reais na construção de edificações sagradas o que lhes rendeu inveja por parte de Companheiros de Ofício que cobiçavam seu status.
Ambos os chefes construtores teriam tido assassínios obscuros, seus coligados inicialmente não sabiam concretamente quem havia perpetrado tal crime. É lhes tomada também à oportunidade de se prestar os corretos ritos fúnebres ao morto de imediato, mas posteriormente seus coligados lhe fazem as honrarias devidas.
Os Companheiros de Ofício traidores já eram conhecidos pelo seu mau comportamento, após certo esforço, seus crimes são descobertos e acabam por serem executados por seu sacrilégio assim como Paneb.
Por fim, tal como Hiram, Neferhotep era homônimo a um rei e, além disso, Hiram era intitulado de "Abiff" que significa "Seu pai", tal qual era a relação de Neferhotep com Paneb.
Hiram teve seu legado simbolicamente continuado por Adoniram que assumiu este nome em homenagem ao seu Mestre assim como Hesysunebef possuía tal nome em homenagem ao seu Mestre Neferhotep[16]...
CONCLUSÃO
É visível que existem pontos coincidentes entre a narrativa de Neferhotep e a Lenda de Hiram, outras lendas também relacionadas ao ofício da construção também apresentam certa similitude apontando talvez, uma fonte em comum da qual afluente talvez tenha sido utilizado pelos elaboradores do ciclo hirâmico no surgimento da Maçonaria Moderna.
Neferhotep em face sua antiguidade parece um forte candidato a inspiração primária a Lenda de Hiram, seu fim trágico de tão excelente Mestre justamente por seu desvirtuado filho, deve ter marcado fortemente o imaginário dos artesãos da época, estes que habitavam e laboravam talvez o maior canteiro de obra de época.
Se tal narrativa sobreviveu além do Papiro Salt 124 numa via oral ou mesmo clandestina até a época da fundação da Maçonaria Moderna, permanecerá um mistério. O fato é que a beleza da tumba de Neferhotep evidência sua importância para seus contemporâneos e à preservação de sua história como a de outras da espécie serve para advertir-nos sobre o mau que pode habitar no coração dos homens (mesmo aos que nos são próximos).
De qualquer forma, o exemplo de excelência de Neferhotep instruí-nos a sermos solidários, firmes no que acreditamos ser o correto, porém, que cautela nunca será demais. Se esse exemplo foi preservado através de um véu chamado Hiram Abiff, certamente deu a este antigo e excelente chefe construtor uma morada da eternidade na memória de todos os maçons espalhados pela face da Terra...
Autoria de Tiago Roblêdo M\ M\
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REFERÊNCIAS
Life in Ancient Egypt, Adolf Erman
[1] Seti II foi um faraó da XIX dinastia egípcia que governou entre cerca de 1200 e 1194 a.C..
[2] Neferhotep II era filho de Nebnefer que era filho de Neferhotep I, esses homens se sucederam no cargo de capataz (literalmente "Chefe da Equipe") que sua linhagem continuou a ocupar durante a maior parte da dinastia XIX, fazendo com que sua família fosse uma das mais influentes em Deir el Medina. Seu nome era homônimo ao faraó Neferhotep e significava “Belo e bom”.
[3] Cada capataz era assistido em suas tarefas por um assistente. Aparentemente os capatazes usualmente nomeavam seus filhos mais velhos, ou algum outro parente para essa posição, se houvesse a possibilidade. Em muitos casos o assistente poderia considerar a si mesmo um futuro capataz, cujas tarefas de supervisão e distribuição de suprimentos poderia vir a executar.
[4] Necrópole ou "A Cidade dos Mortos” é um conjunto de sepultamentos normalmente associado a "Campos Santos" (locais de enterros) anexos a centros de grandes civilizações. A necrópole de Tebas é uma região da margem ocidental do rio Nilo, no lado oposto à cidade de Tebas, do antigo Egito. Foi usada para sepultamentos rituais por boa parte do período faraônico, especialmente durante o Império Novo.
[5] O nome Deir el Medina que, em árabe, significa “O Mosteiro da Vila”, foi conferido na modernidade, quando da fundação da vila, no período entre as XVIII e XX dinastias, o lugar chamava-se Lugar da verdade. Em Deir el Medina, viveram, ao longo de 450 anos, os trabalhadores encarregados da construção e decoração, nos vales da região tebana (por isso também conhecida como O Vale dos Artesãos), de templos, tumbas e obeliscos, alguns deles monumentais, pertencentes aos faraós, seus familiares e à nobreza egípcia, a partir da XVIII dinastia (1550-1307).
[6] Neferhotep haveria adotado Paneb por não possuir herdeiros.
[7] Capataz da comunidade de Deir el Medina no final da Dinastia XIX. Filho do artesão Nefersenet e Iuy. Ele foi adotado pelo capataz Neferhotep que não possuía herdeiros.
[8] E Paneb altamente considerado por ter tido tamanha predileção.
[9] A tumba Neferhotep é de longe o maior e mais esplêndida na necrópole dos operários.
[10] Algumas hipóteses sugerem que Neferhotep teria sido assassinado num desses conflitos ao invés de alguma trama perpetrada por Paneb.
[11] Amennakhte informou que um "Inimigo” matou Neferhotep, não levando a cabo uma acusação formal contra Paneb. Cogita-se que esta frase poderia se referir a alguma guerra civil que eclodiu no Egito entre Faraó Seti II e o usurpador Amenmesse. Neferhotep parece ter sido morto pouco antes de Tebas cair para as forças da Seti II. Por outro lado, Amennakhte poderia não ter acusando Paneb diretamente por esse crime dado sua gravidade e/ou falta de provas.
[12] Como os rufiões indiretamente impedem que os ritos apropriados sejam dados ao cadáver de Hiram ao esconder seu cadáver no deserto.
[13] Que tem seus nomes e número díspares em outras versões da lenda de Hiram, mas que nesse caso parecem aludir as constelações correspondentes aos três signos do inverno norte, Libra, Escorpião e Sagitário, assassinos do Sol que é correspondente a Hiram.
[14] E ainda mais especificamente ainda a Maçonaria de Nauta que se utiliza da narrativa da construção da Arca sob as ordens e medidas divinas em sua ritualística. Os egípcios por sua vez também possuíam versão própria do mito do Dilúvio e da Arca.
[15] JHVH ou Javé ainda Jeová, é o nome da divindade dos israelitas, traduzido modernamente como “Deus”, residia no Santos dos Santos no Templo de Salomão, por sua vez MAAT era a divindade egípcia que representeava a justiça e verdade, comumente associada à retidão de caráter como perseguida pela Maçonaria Especulativa.
[16] Apesar de parecer ser o costume da antiguidade, a Tradição Maçônica não relata a sucessão operativa de Hiram por alguém de sua própria descendência como viria a acontecer com Neferhotep que seria sucedido por Nekhemmut. O costume foi preservado nas Lojas Maçônicas onde o critério formal para a escolha do Venerável Mestre (o chefe dos trabalhos) é o mérito.
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