A SINDROME DE DOM QUIXOTE

  Por Mario Sales

O protagonista da obra é Dom Quixote, um pequeno fidalgo castelhano que perdeu a razão por muita leitura de romances de cavalaria e pretende imitar seus heróis preferidos. 

O romance narra as suas aventuras em companhia de Sancho Pança, seu fiel amigo e companheiro, que tem uma visão mais realista. 

A ação gira em torno das três incursões da dupla por terras da Mancha, de Aração e da atalunha. Nessas incursões, ele se envolve em uma série de aventuras, mas suas fantasias são sempre desmentidas pela dura realidade. 

… O encanto da obra nasce do descompasso entre o idealismo do protagonista e a realidade na qual ele atua. Cem anos antes, Quixote teria sido um herói a mais nas crônicas ou romances de cavalaria, mas ele havia se enganado de século.”  

Enredo de Dom Quixote de La Mancha, da Wikipédia

“A história prefere lendas a homens; prefere a nobreza a brutalidade; discursos inflamados a boas ações silenciosas. A história se lembra da batalha, mas esquece do sangue.”
Citação do personagem Abraham Lincoln no 
filme "A. Lincoln, o caçador de vampiros"

Cervantes era um gênio literário e provou isso discutindo a dicotomia entre fantasia e realidade com humor e elegância. Curiosamente, usou os contos de cavalaria para falar deste assunto delicado, pois como dizer a alguém que ele vive de sonhos e não ser rude ou deselegante, senão através do riso?

O riso nos liberta das tensões. Quem ri não tem espaço afetivo para o ódio ou a desconfiança. Provocar o riso desarma os espíritos de forma mais eficiente que a ameaça ou através do confronto.

Penso em Cervantes quando vejo o culto contemporâneo entre esoteristas aos costumes de cavalaria, principalmente quando relacionam essas Ordens de Cavalaria às Ordens Esotéricas.

Entre os maçons é conhecido o desejo de pertencer uma tradição desse gênero, simplesmente pela vaidade que isto traz como bagagem

Veja-se o caso do Cavaleiro de Ramsay[1], um individuo sem provas de sua alegada descendência nobre, mas que incendiou as mentes impressionáveis de burgueses e políticos que estavam na Ordem Maçonica em uma época onde o ócio e a falta de motivação social tornava já inviável uma vida de aventuras viris ou mesmo segurar e conseguir levantar os espadagões usados pelos verdadeiros cavaleiros, aqueles que foram dizimados por Felipe IV , o Belo , que mandou queimar Jaques de Molay, o ultimo cruzado, em 1314.

Quatrocentos anos depois Ransay, e como eu disse sem apresentar documentos históricos que o sustentassem, afirma a Origem Maçônica nas Ordens de cavalaria, e não nas guildas de pedreiros de Londres.

Uma proposta tão sedutora foi imediatamente aclamada como verdadeira, como é comum os maçons aclamarem tudo que é vago e obscuro com palavras pomposas e elogios.

Cervantes, se estivesse presente, cairia no chão às gargalhadas. 

Sua obra é de 1605, pelo menos a primeira parte. O discurso de Ramsay alegando a origem maçônica nas Ordens de Cavalaria é de 1738. 

Mais de um século antes, Cervantes havia alertado que a cabeça vai sempre mais rápido do que o corpo e mesmo assim, Ramsay foi aplaudido e suas teses, as mais descabidas, aceitas como legitima expressão da verdade histórica. 

Ninguém quer ser pedreiro e construir catedrais se, sem ter que levantar, não uma espada, mas um simples punhal, puder ser cavaleiro.

A idéia de uma armadura reluzente, de um belo e imponente cavalo, mesmo que presentes apenas na imaginação, seduziram milhares de maçons pelo mundo naquela época e séculos depois.

Agora, a doença já descrita no Eclesiastes atinge a rosacruz. Vemos nos materiais de propaganda da Ordem cada vez mais imagens de cavaleiros ajoelhados, com o símbolo da AMORC ao lado, como se nossa história não fosse exatamente oposta ao confronto físico e voltada para a pesquisa silenciosa e solitária em laboratórios de alquimia e bibliotecas.

Existem fantasias absolutamente seguras, incapazes de trazer danos ao sonhador, e que alimentam os momentos de ócio, ou aproveitam tais momentos para imergir do subconsciente e esfumaçar-se frente aos nossos olhos.

Existem outras, porém, que se tornam obsessivas e perigosas por sua intensidade e pelos outros aspectos que propagam com sua presença.

Entende-se que hoje, vistas de nossa época dita civilizada, as Ordens de Cavalaria possam parecer redutos de nobreza e dignidade. 

Na verdade, ordens como os Cruzados ou a Ordem de Malta, sua rival, eram como se sabe, grupos paramilitares, formados com a intenção de proteger os peregrinos que iam para Jerusalém, ou para proteger a própria Jerusalém, quando no período de domínio cristão.

E esta “proteção” implicava o combate sanguinário e violento, com chacinas de parte a parte, os quais, segundo relatos, eram mais comuns serem protagonizados por cavaleiros cristãos contra civis muçulmanos do que cavaleiros muçulmanos contra civis cristãos. A crueldade Ocidental sempre foi notória.

As Ordens de Cavalaria não são como a fantasia atual supõe, defensoras do que era nobre e justo, e embora sua bandeira carregasse a cruz do Cristo, sua finalidade operacional era proteger bens e valores dos comerciantes que se arriscavam a fazer a trilha Europa-Oriente. 

Não é por outra razão que os inventores do conhecido “cheque” tenham sido os próprios templários. 

A fim de proteger tesouros de ladrões, em vez de carregarem ouro e jóias, os peregrinos recebiam um papel que os autorizava a sacar quando chegasse a Jerusalém, mediante sua apresentação, um valor equivalente ao que era depositado no seu país europeu de origem, antes da viagem. 

Aqueles hoje aclamados como defensores da Cruz foram os inventores do sistema bancário, sistema este construído e mantido mediante o emprego de uma força militar fortemente armada.

E são esses personagens que hoje, estranhamente, são cultuados como símbolos da espiritualidade.

Violentos, as vezes cruéis, ambiciosos, acumularam grande fortuna, e serviram a reis e à Igreja. Não eram defensores dos valores da fé, mas sim dos interesses financeiros e territoriais europeus.

Mesmo assim, incendeiam a imaginação dos nossos contemporâneos, que acham por bem vê-los como símbolos de um ideal de cortesia e nobreza.

Como sempre, neste mundo medíocre, são heróis os que sabem matar com espadas, não os que sabem pensar ou amar.

Cientistas sempre serão os vilões das historias em quadrinhos e os heróis serão musculosos, ou , como no caso do Hulk, cientistas só passam a ser heróis quando se transformam em bestas gigantes esverdeadas que falam com dificuldade.

Nobre, heroico, portanto, é a besta, não o pensador, não o esoterista.

Cervantes com certeza daria gargalhadas de nossos rosacruzes contemporâneos, que tendo em sua linhagem histórica nomes como Bacon, Leibnitz, Paracelso, Newton, Erick Satie e Debussy, tornam símbolos de nossa amada e pacífica Ordem membros de um grupo para militar de banqueiros internacionais.

Estes são, no entanto, os sintomas da “Síndrome de Dom Quixote”, aquela que faz leitores de romances começarem a acreditar que eles mesmos sejam os personagens sobre os quais lêem.

Por isso é tão difícil ver místicos equilibrados, já que ao contrário da imaginação ativa, que exige organização e treino, a maioria prefere a fantasia desordenada e caótica que não tem compromissos com o bom senso e que aceita qualquer papel ou enredo.

Talvez esse seja o nosso calcanhar de Aquiles.



[1] “André Michel de Ramsay, escocês de Ayr, plebeu com fumaças de aristocracia, aportou na França depois de alijado da Maçonaria de sua pátria, por insistir em criar graus cavalheirescos. Na França, satisfez a sua ânsia de nobreza, ao ser recebido como cavaleiro da Ordem de São Lázaro (Chévalier de Saint Lazare). E tão agradecido ficou que produziu em 1737, um discurso onde pretendia aristocratizar a Maçonaria, ligando-a aos nobres das Cruzadas, o que é pura lenda.” (https://opontodentrocirculo.com/2015/09/02/o-discurso-de-ramsay/)


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