PSICOLOGIA E MISTICISMO (1)

Mario Sales, FRC,S.:I.:,M.:M.:

A Prática Fomenta a Vontade

Se desejamos tornar-nos fortes, temos, primeiro, de compreender o que é a vontade. 

A vontade não é nenhuma entidade mística, que presida aos outros elementos do caráter, qual mestre de banda - sim, a soma, a substância de todos os nossos impulsos e disposições. 

Essa energia formadora do caráter não tem senhor a quem obedeça além de si própria; e é graças a ela que algum poderoso impulso pode vir a dominar e unificar o complexo. Isto forma a «força de vontade» - um supremo desejo que se ergue acima dos mais para arrastá-los num mesmo sentido ou para uma dada meta

Se não descobrimos essa meta não alcançaremos a unidade - e seremos simples pedra de que outro homem se utiliza nas suas construções.

Vem daí a inutilidade da leitura de livros que apontam as estradas reais do caráter. 

Temos diante de nós um volume de um tal Leland (Londres, 1912), intitulado Tendes a Vontade Forte? ou Como Desenvolver Qualquer Faculdade do Espírito pelo Fácil Processo do Auto-Hipnotismo. 

Existem centenas destas obras-primas ao alcance dos simplórios de todas as cidades. Mas o caminho é mais penoso e longo. Esse caminho é o caminho da vida. 

Vontade, isto é, desejo unificado (Schopenhauer já o provou), constitui a forma característica da vida que cresce; e a sua força só aumenta quando a vida lhe defronta novos labores e novas vitórias. 

Se desejamos ser fortes, devemos, antes de mais nada, escolher o nosso objetivo; em seguida, avançar, aconteça o que acontecer. 

A prudência aqui se reduz a conduzir o empreendimento por partes, porque cada passo em falso enfraquecer-nos-à, do mesmo modo que cada vitória parcial nos fortalecerá.

A realização cria mais realizações; graças a pequenas conquistas ganhamos confiança para as grandes; a prática fomenta a vontade.


Will Durant, in 'Filosofia da Vida'
Tenho feito vários ensaios para escrever sobre este assunto, Psicologia e Misticismo, sem que me decidisse como fazê-lo, embora ele esteja permanentemente em minha cabeça, sem trocadilho.
Seja pelo fato de que os conhecimentos sobre o comportamento do homem evoluíram, e muito, nos últimos 100 anos, seja pelo avanço dos exames de neuroimagem e de neuroquímica, houve uma significativa mudança de posição em relação ao papel da Vontade como determinadora de nosso comportamento.

Hoje sabemos, por exemplo, do significativo papel da hereditariedade quanto a um sem número de comportamentos, principalmente aqueles ligados ao vício, (alcoolismo, dependência de substâncias neuroativas, jogo), ou quanto ao papel da genética na composição dos corpos (obesidade, magreza, etc) coisas que há bem pouco tempo e ainda hoje em grupos menos informados são tratados como problemas de caráter ou de determinação.

Frases como “querer é poder”, interessantes e motivadoras, perdem significado à luz do conhecimento moderno do papel da herança genética somada às questões psicanalíticas do inconsciente, na vida de milhares de seres humanos.
Vamos analisar estes aspectos por partes.
Primeiro, consideremos a terminologia.

Genótipo, Fenótipo e Karma

Em genética, usamos o termo genótipo para definir as tendências que trazemos em nossos genes para determinadas doenças e comportamentos; e fenótipo, para designar o papel do meio ambiente no nosso comportamento final.

Como sempre, começamos nossa jornada entre duas colunas: uma que trazemos como bagagem (genótipo) e outra que receberemos aos poucos a partir da primeira e segunda infância (fenótipo), como por exemplo, o país em que nascemos, com suas peculiaridades de riqueza ou pobreza, a educação e o tipo de alimentação que vamos ter, os condicionamentos religiosos e morais aos quais seremos submetidos, provenientes de nossas famílias, das crenças ligadas as nossas classes sociais, econômicas, etc.

As Duas Pernas

Costuma-se comentar com amigos que o Genótipo é o Karma totalmente relacionado a outras existências e o Fenótipo apenas em parte, sendo que grande parte do Karma fenotípico será construído no dia a dia, nas interações que vamos ter com nosso meio e nas escolhas que faremos.
Aqui, entretanto, já fica óbvio, que parte do script de nosso drama kármico para uma determinada encarnação já está escrito em nosso código genético, e que isto terá uma importante função em nosso desempenho na Terra, não para nos prejudicar, mas para criar as condições de tensão necessárias ao nosso arremesso evolucional, como um estilingue se apóia nas colunas opostas do Y de madeira ao qual se prende.
Portanto, a força da Vontade, neste particular, é relativa. 

Bem mais importante que a Vontade, é o papel da compreensão e do conhecimento, ou melhor, a habilidade em tracionar a borracha do estilingue e compreender a mecânica do instrumento.
É o que nos torna mais capazes de enfrentar os muitos e variados desafios da nossa vida cotidiana. Compreensão e discernimento. Nossa persistência precisa do nosso conhecimento. Nós precisamos de ambos.
Afinal, quantas pernas temos? Uma ou Duas pernas?
E para que indivíduo a Vida, como fenômeno, será mais proveitosa? 
Para aquele que se preparou de forma esmerada ou para aquele que tem grande força de vontade, mas tudo ignora, e por isso não compreende o mundo que o cerca ou a herança que recebeu?
Será que o Conhecimento não fortalece muito mais a Vontade do que a Vontade fortalece o Conhecimento?

Discorda-se de Will Durant quando diz (e quem já não pensou assim?) que “... graças a pequenas conquistas ganhamos confiança para as grandes...”: o que ganhamos principalmente é mais informação.
E esta consolidação de nosso arcabouço intelectual é o que nos garante estrutura para dar conta do cotidiano.
Para absorver esta informação precisamos estar aptos neurologicamente.
Voluntarismos, frases de efeito, não tornarão um indivíduo limitado, por problemas sociais, intelectuais, psiquiátricos ou neurológicos como o retardamento mental, mais aptos.
Ele será incapaz mesmo de entender o que significa a frase que é dita para motivá-lo. Falta-lhe intelecto; falta-lhe capacidade de compreensão.

A Limitação Orgânica

E nem por isso, por causa desta limitação orgânica, ele será menos humano que qualquer um de nós. Precisará, como todos nós precisamos, de carinho e afeto, cuidados e atenção.
Qual a mãe que recusaria ao seu filho, se portador da Síndrome de Down, menos carinho por causa disso?
Só que aqui a questão não é discutir a importância de um indivíduo limitado neurologicamente em comparação com outro que não tenha nenhuma limitação. Este tipo de comparação não faz parte do expediente do místico.
Ele sabe que muitas são as estratégias que o Universo usa para desenvolver uma determinada personalidade alma e assim, as limitações serão proporcionais a necessidade de um determinado indivíduo de forma a estimulá-lo a superar-se, no mesmo princípio acima descrito: grande tensão = a grande arremesso.
Compreender isto é mais importante do que lutar contra isso. 
Ver a tensão como parte de um estímulo é diferente de encarar a mesma tensão como obstáculo ou empecilho ao desenvolvimento. 

Só compreender isto já nos acalma e nos dá mais equilíbrio e senso de estratégia para usar nossas aparentes limitações a nosso favor.
Portanto, nem tudo é Vontade. Hoje sabemos disto.
Temos de ter um espírito mais amplo, portanto, na abordagem das dificuldades do estudante de misticismo de superar seus problemas pessoais de afirmação no mundo e concluir que, embora as escolas místicas façam a sua parte, transferindo valores éticos e estimulando a auto confiança nos seus membros, repetindo-lhes constantemente que eles podem ser mais do que são, bastando que se libertem da ilusão de serem incapazes para isto ou aquilo, o resultado, muitas vezes, é quantitativa e qualitativamente insatisfatório por motivos orgânicos e biológicos.
Não por que a mensagem não seja correta, mas por que o receptor não preenche todas as demandas da situação.

O Esqueleto no Armário

Mal comparando, é como se pedíssemos as pessoas que mudassem de andar, passando do andar de baixo para o andar de cima sem que existisse uma escada entre eles ou um elevador, apenas um buraco no teto, e cordas, frágeis, fáceis de arrebentar para ajudar na empreitada.

Enquanto saltam, tentando agarrar as bordas do buraco ou lançam as cordas para fixá-las e poderem subir por elas, os místicos que crêem na vontade ficam de lado, gritando: 
“Força, não desistam, vocês vão conseguir algum dia, não desistam”. 
Nesta opinião, uma simples escada seria melhor.
As escolas místicas são, eminentemente, transmissoras de um conhecimento específico. 
Quanto mais didáticas forem, maior o seu sucesso na transmissão deste conhecimento.
E ser didático é fornecer degraus àqueles que galgam níveis cada vez mais complexos de compreensão.

A Questão Fundamental

Porque sentimo-nos incapazes ou inseguros?
Porque temos medo de tentar ser mais felizes?
Porque temos a tendência de transferir infantilmente aos outros a responsabilidade pelo nosso próprio fracasso e sofrimento?

Spencer Lewis, em seu livro “Princípios Rosacruzes para o Lar e para os Negócios”, no último capítulo, usou uma expressão norte-americana que designa estas questões íntimas de cada um que tem que ser exploradas de modo muito particular. 
Ele chamava este conjunto de peculiaridades e idiossincrasias de “o esqueleto no armário”. 
Temos sim, todos nós, o esqueleto que merecemos em nosso armário. Essa estranha e didática expressão lembra que se não resolvermos primeiramente nossas questões internas e pessoais, em uma palavra, psicológicas, elas nos perseguirão como uma sombra que nos impedirá de progredir com a velocidade que desejamos no campo da espiritualidade.

Por que somos o que somos

Também é certo, usando a visão do psicoterapeuta, no plano mundano, ou dos iluminados, no plano místico, que nenhuma pessoa é como é apenas porque quer ou escolheu ser assim.
Mesmo o espírito mergulhado em trevas tem uma história de vida que fundamenta este comportamento e suas atitudes anti-sociais, ou mesmo francamente psicopatológicas.
O místico diria que não existe apenas uma história de vida, mas várias histórias de vidas passadas que construíram a personalidade daquele ser perturbado.
Todo ser humano é um processo em andamento. Não é o que é, mas está daquele jeito e de outro modo seria se outras fossem as condições predisponentes, independente da sua vontade pura e simples.
Mesmo a Força da Vontade, Persistência e Obstinação que levam um ser ao sucesso a partir de condições adversas têm uma base biológica e espiritual a ser considerada.
É gratificante acharmos que fizemos a personalidade de alguém se tornar mais digna e forte com nossos conselhos, estímulos e sugestões, e já vi pessoas destruídas pela culpa de terem causado, em sua concepção, algum tipo de mal a alguém.
Só que o processo de evolução é tremendamente solitário e complexo
. Nem somos totalmente responsáveis pelo sofrimento de outra pessoa, nem somos vítimas de ninguém, a não ser de nossas próprias crenças.
E nossas questões pessoais, nossos esqueletos, não devem ser encarados como questões morais mas antes como desafios intelectuais. Eles exigirão de nós esforço de compreensão, de estudo, de forma a entendermos por que nos comportamos como nos comportamos e poder de forma mais segura combater nossas limitações. Sem esforços heróicos mas com movimentos dirigidos pela ponderação e pela compreensão cada vez maiores do problema.
Cada um de nós traça com nossas escolhas nosso próprio destino se bem que dentro de nosso contexto sócio-psicológico específico e, tudo que podemos pedir a Deus é que façamos o melhor possível dentro de nossas possibilidades.
Claro, a quantidade de nosso conhecimento, o número de informações que coletaremos para nos ajudar em nosso trabalho no mundo determinará a velocidade e a qualidade de nosso progresso espiritual e material (pois estes dois nunca estão separados), e produziremos, digamos assim, uma maior quantidade de Bem para aqueles que nos cercam e, é óbvio, para nós mesmos.
Não temos já, manifesto, todo o poder que guardamos em potencial, mas ele já está em nós. Vamos aos poucos manifestando este poder pelo aperfeiçoamento de nossa sabedoria e sentimentos, que também são objeto de aprimoramento pela educação psicológica.
Sim, até a amar podemos aprender, desde que recebamos as informações necessárias, os exemplos necessários, já que no caso dos sentimentos valem mais as lições do exemplo do que das palavras.
Mesmo assim, como num processo psicoterapêutico, precisamos organizar na linguagem nosso auto conhecimento, de forma a aperfeiçoar nosso comportamento como seres humanos, vivendo em sociedade.
Livros aprimoram nosso intelecto, nosso pensamento; a Arte e a Beleza aprimoram nossa Sensibilidade.
A Vontade , também chamada Força de Vontade, sozinha, jamais conseguiria mobilizar o ser sem o consórcio da Beleza e da Sabedoria.
A tríade clássica é Sabedoria, Força e Beleza.
Conhecimento, com Elegância e Beleza, é Sabedoria; Sabedoria e Sensibilidade geram mais Conhecimento Elegante e Belo, num círculo Virtuoso que aprimora o espírito e o faz disparar em direção ao Todo Poderoso.
E este círculo virtuoso não é possível em uma mente emocionalmente imatura e pouco elaborada.
Não, a Vontade pura e simples não é tudo.
A ela devemos agregar Conhecimento, para que não seja a Força Cega de Schopenhaer, mas uma força dirigida e orientada na direção de Deus e da Luz.

O Homem e o progresso de sua Compreensão de si mesmo

Galileu tirou o homem e a Terra do centro do Universo, ao desacreditar a teoria do geocentrismo, advogando a teoria do heliocentrismo
Darwin contrariou a criação divina do homem descrita pela Bíblia ao demonstrar a teoria da evolução das espécies
Freud tirou por fim, de nós, nossa certeza da autoria de nosso comportamento, revolucionando a sociedade ao anunciar a existência do inconsciente – a zona do psiquismo constituída por pulsões, tendências e desejos cuja formação se deve em grande parte às etapas da infância. 
Uma zona que não é passível de conhecimento direto e que é a área de transição entre o orgânico e o psíquico do individuo.
Precisamos agora perguntar se a Vontade é uma virtude suprema ou uma auxiliar do Discernimento, na Evolução.
Resta-nos a obrigação de perguntar, humildemente, se para que o Místico alcance a plenitude, basta que tenha determinação e persistência ou se, em alguns casos, necessitará de um auto estudo que o esclareça sobre os motivos de sua irregularidade por exemplo, no estudo de suas monografias ou experimentos.

Ou mesmo se conseguirá superar estas limitações apenas pela leitura dos livros sagrados somados a Oração.
Não vou negar que seja possível que tal coisa aconteça.
Acreditamos, entretanto, que se a abordagem fosse mais ampla, se ele fosse também capaz de submeter-se à auto análise e ao auto questionamento, pela via psicoterápica se necessário, ou pela via filosófica, ou por ambas, para resgatar aquele esqueleto no armário de que Spencer Lewis falava no final de seu livro, num processo de toalete mental fundamental para sua felicidade, o lucro e o desempenho daquele mesmo místico que reza e pede a Deus que o inspire seria melhor.
Não devemos julgar ninguém, não apenas porque somos almas piedosas e cristãs, mas porque é impossível não sermos injustos, já que jamais teremos acesso a todos os dados que fundamentam o comportamento daqueles que supomos sermos capazes de avaliar.
Por ignorarmos o processo anterior que resultou naquele comportamento, daquele indivíduo, e o contexto em que ele se desenvolveu (seu fenótipo) não temos como ser Justos, verdadeiramente.
E antes de sermos Mestres, precisamos aprender a sermos justos, nem que seja ao menos conosco, evitando cobrarmos responsabilidades de nós mesmos que não temos, ou de outros, que não conhecemos, já que somos apenas o melhor que podemos ser em nossas condições específicas.
Esta é a base do princípio Rosacruz da Tolerância.
Ignorância leva a severidade excessiva, e esta, leva a Culpa.
E Culpa não gera consciência, só sofrimento.

Nas palavras do Evangelista, só a verdade nos liberta, verdade que deve ser procurada incessantemente por todo místico sincero, fora e dentro de nós, já que o Universo interior é tão vasto quanto aquele das estrelas e das galáxias.
E, nas palavras de Blavatsky, não há religião superior à Verdade.



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