No apagar das luzes do período arcaico grego, um homem peculiar estabelece-se no Sul da Itália onde inicia uma escola cujas doutrinas seriam seguidas por uma cadeia contínua de discípulos, até alguns séculos após a extinção da mesma. Este trabalho focaliza o legado de Pitágoras e a unidade conceitual sustentada pela escola pitagórica, mirando as questões concernentes à trajetória da alma humana dentro da ordenação universal postulada pelo organismo pitagórico.
Introdução
As filosofias que se desenvolveram na Magna Grécia, entre os séculos VI e V a.C., apresentaram uma têmpera singular graças às suas estreitas relações com a religiosidade e alguns cultos-mistéricos.
Desde tempos mais remotos, tais cultos se perpetuavam pelos solos do Sul da Itália e da Sicília, abrigando especulações sobre a existência da alma após a morte. Essa característica revela-se nas temáticas metafísicas de alguns filósofos itálicos do período, e é fortemente visível no legado deixado por Pitágoras bem como por alguns de seus mais proeminentes discípulos.
Os registros de tais interesses encontram-se expostos, de forma pontual, em alguns poucos fragmentos efetivamente pitagóricos, enquanto, obliquamente, seus sinais podem ser extraídos dos testemunhos acerca das doutrinas e da forma-vida adotadas na escola que sobreviveu ao mestre.
Das fontes e testemunhos relativos à conjuntura pitagórica, emergem quatro diferentes perspectivas que se relacionam ou à teoria da alma ou à sua vivência.
A primeira dessas perspectivas se relaciona ao personagem histórico Pitágoras, cuja probidade permitiu que os relatos acerca das transmigrações de sua alma fossem aceitos e propagados por seus contemporâneos.
O segundo aspecto advém do organismo formado pelos iniciados da escola pitagórica, que criaram um campo propício para o cultivo de qualidades intelectuais, mantido vivo por seus discípulos através de vários séculos.
O terceiro ponto, por si só relevante por encerrar o núcleo do pensamento pitagórico, contempla a alma universal desvelada no desenrolar da cosmologia pitagórica, ao passo que o quarto ponto, que também pode ser entendido como a aplicação na dimensão humana do terceiro ponto, expõe a trajetória da alma humana individual. Apesar de interligadas, cada uma dessas partes possui autonomia e completude.
Os Caminhos do Sábio
O volume de dados historiográficos concernentes a Pitágoras e seu ambiente, apesar de restrito, foi suficiente para permitir a elaboração de algumas biografias acerca de sua vida, as principais delas escritas por Diógenes Laércio, Porfírio e Jâmblico. Seus contemporâneos, ou pouco posteriores, como Heráclito, Íon, Empédocles e Heródoto, dão um preciso testemunho de sua realidade histórica, de forma que qualquer tentativa de colocar em dúvida a existência do homem histórico deve ser repudiada[1].
Os fragmentos e testemunhos confirmam a existência do homem-filósofo-sábio cuja filosofia deixou marcas na Itália meridional. Pitágoras nasce em Samos, ilha grega do Egeu setentrional, e atinge seu florescimento por volta de 530 a.C.
De Samos, fugindo da tirania de Polícrates[2], parte para a Magna Grécia, onde funda, na cidade italiana de Crotona, uma escola que logo alcança grande sucesso por transmitir uma inovadora visão de vida. Após cerca de vinte anos, em razão de perseguições políticas, retira-se de Crotona migrando para Metaponto, onde morre próximo aos noventa anos.
A tradição atribui a Pitágoras inúmeras viagens e peregrinações que tinham por objetivo a aquisição de conhecimento. Os princípios das ciências matemáticas, muito presentes nas doutrinas de sua escola, teriam sido apreendidos com os egípcios, os caldeus e os fenícios. Viagens ao Egito, à Fenícia e à Caldeia, visando apreender com suas fontes de erudição, eram, na época, possibilidades bastante verossímeis em razão de sua acessibilidade a partir de Samos[3]. Os egípcios eram estudiosos de geometria desde tempos antigos, os fenícios de números e cálculos, enquanto os caldeus eram conhecidos por suas observações celestes. As características de tais culturas podem, efetivamente, ser reencontradas no ensinamento pitagórico.
Outrossim, desde criança, Pitágoras esteve em contato e teve aulas com os maiores mestres de sua época, como, por exemplo, Anaximandro.
O conhecimento das doutrinas sagradas, algumas referentes ao pós-morte, adviria da iniciação nos mistérios dos santuários de Mênfis e Heliópolis, bem como de sua estadia na Babilônia, onde, além de ter estado com Zoroastro, teria conhecido o pensamento das antigas religiões do Oriente[4].
Na opinião de alguns estudiosos, de lá teria trazido a doutrina da metempsicose – ou transmigração da alma em corpos sucessivos –, que viria a ser uma das principais doutrinas da escola pitagórica.
Para outros, tal conhecimento decorre de seu discipulado entre os druidas celtas[5], ou, de acordo com Andrão de Éfeso[6], em hipótese que não exclui as anteriores, o futuro mestre teria sido discípulo de Ferécides de Siro, o primeiro teólogo a ensinar a teoria da metempsicose naquele período.
De acordo com o reconhecimento dos antigos, avalizado por vários estudiosos modernos, Pitágoras foi um homem especial a ser inserido na categoria que a tradição denomina metragyrtai, os sacerdotes itinerantes ou “homens milagrosos”[7]. Achtemeier[8] o qualifica como theiós anér, ou homem divino, conforme a tradição grega antiga. Esse título era outorgado àqueles que possuíam certas características, como uma trajetória marcada pelo dom de uma linguagem persuasiva, a capacidade de fazer milagres, curas e adivinhações, e uma morte de alguma forma extraordinária. Na hipótese mais simplista, tratar-se-ia de um homem com fortes poderes psíquicos. Há valiosos testemunhos antigos que contribuem, nesse sentido, para dar forma à indiscutível reputação do filósofo. Escreve Empédocles:
E havia entre eles um homem de saber sem igual, mestre, em particular, de toda a espécie de obras sábias, que adquirira um enorme cabedal de conhecimentos: pois sempre que empenhava todo o seu saber, facilmente via cada uma de todas as coisas que existem em dez ou até mesmo vinte gerações de homens[9]. (Empédocles, 31 B129 D.K., Porfirio, VP, 30)
A esse propósito, relata Aristóteles:
[..] quando ele desembarcou em Itália e chegou a Crotona, foi recebido como homem de notáveis poderes e experiência, devido às suas muitas viagens, e como pessoa bem dotada pela fortuna, no tocante às suas características pessoais. É que a sua aparência era imponente e própria de um homem livre, e na sua voz, no seu caráter e em tudo o mais da sua pessoa havia graça e harmonia em profusão. (Aristóteles, fr. 191 Rose, KRS, fr.273)
E Dicearco, discípulo de Aristóteles, descreve, assim, a força de seu carisma:
Aristóteles diz que Pitágoras foi chamado Apolo Hiperbóreo pelo povo de Crotona[10]. O filho de Nicômaco [i.e.Aristóteles] acrescenta que Pitágoras foi visto certa vez por muita gente, no mesmo dia e à mesma hora, tanto no Metaponto como em Crotona; […] ] (Dicearco, fr 33, Porfírio, VP 18)
Finalmente, em célebre passagem de Aristóteles, tem-se o claro relato de seu juízo acerca da superioridade de Pitágoras em relação aos outros homens:
Aristóteles em sua obra Sobre a filosofia pitagórica dá notícia do fato de que seus seguidores custodiam entre os segredos mais arcanos a seguinte distinção: dos seres dotados de razão, alguns são deuses; outros, homens; e, alguns são como Pitágoras. (Aristóteles, fr.192 Rose, D.K. 7, Jâmblico VP 31)
Tais testemunhos ajudam a dirimir quaisquer dúvidas acerca do reconhecimento outorgado ao sâmio por outros filósofos da Antiguidade. Como bem sustenta Cornford, em comunidades altamente civilizadas não se formam lendas dessa natureza à volta de pessoas insignificantes ou de meros charlatães; ou, quando se formam, não conquistam o respeito de homens como Aristóteles e Platão. O autor reflete, ainda, que o epíteto “divino” (theiós), atribuído a Pitágoras, apresenta uma grande variedade de significados, entre eles a possível denotação de uma alma acabada de se purificar e destinada a escapar do ciclo de vida para juntar-se à companhia dos deuses[11].
É possível que seja esse o significado da frase de Aristóteles “entre as criaturas racionais há os deuses, os homens e os seres como Pitágoras”.
Em razão da profunda e diferenciada sabedoria aliada a uma série de proezas espirituais que lhe foram atribuídas, em breve tempo Pitágoras se tornou um mestre lendário, reconhecido não apenas em Crotona como em todo o Sul da Itália. Um dos fatores distintivos de sua vida, cerne desta breve exposição, encerra-se na questão das transmigrações de sua própria alma. Cabe registrar que a transmigração da alma de Pitágoras por diferentes corpos, em vidas sucessivas, é aceita por boa parte de seus contemporâneos como, posteriormente, testemunharia a tradição. Observe-se que a questão da metempsicose já não causava perplexidade, até porque, no final do sexto século a.C., a religião órfica já se espalhava por aqueles solos, esparzindo as sementes de tal crença. O interesse pela questão da trajetória da alma de Pitágoras, como ilumina Cornelli, foi compreendido, desde a Antiguidade, “como uma exemplificação da própria doutrina da transmigração da alma”[12]. A fonte mais significativa de tais relatos encontra-se em Heráclides Pôntico[13], que assim recorda a história das transmigrações de Pitágoras:
Heráclides Pôntico refere que Pitágoras costumava dizer de si mesmo o seguinte: que uma vez havia sido Etálides, e que havia sido considerado filho de Hermes. O próprio Hermes teria lhe dito para pedir o que quisesse, fora a imortalidade. Ele então lhe pediu para manter, tanto em vida como na morte, memória dos acontecimentos. Assim, quando vivo lembrava-se de todas as coisas, e depois de morto conservava as mesmas lembranças. Algum tempo depois, foi para [o corpo de] Euforbo e […depois] sua alma transmigrou para Ermotimo. (Diógenes Laércio VIII, 4-5)
Referindo-se às transmigrações acima descritas, Porfírio, nos fragmentos 26 e 27 da Vida de Pitágoras, confirma que Pitágoras, com base em “provas inconfundíveis”, teria demonstrado ser a reencarnação de Euforbo, e que ele [Porfírio] omitiria os detalhes de tal relato por serem notoriamente conhecidos[14]. Complementando os testemunhos da metempsicose, tem-se, ainda:
Androcides Pitagórico, autor do livro Dos símbolos pitagóricos, Eubúlides Pitagórico, Aristóxeno […]disseram que as reencarnações de Pitágoras ocorriam a cada 216 anos. Após tal período Pitágoras adveio a um novo nascimento, e reviveu ao completar do primeiro ciclo e retorno do cubo de 6, número regenerador da vida e recorrente em razão de sua natureza esférica. (Jâmblico, Theolog. Arithm. fr 52)
Do fragmento de Heráclides, depreende-se que a alma que se tornou Pitágoras trazia como bagagem a memória dos conhecimentos adquiridos em sua peregrinação por muitas vidas. Por outro lado, no fragmento 63 das Vidas de Jâmblico, está atestado que Pitágoras induzia os muitos que encontrava a evocarem a reminiscência de suas próprias existências prévias, antes de proceder às suas curas. Tais passagens nos remetem ao fragmento 129 de Empédocles, visto anteriormente. Em tal fragmento, Empédocles descreve Pitágoras como “um homem dotado de um conhecimento extraordinário, […] que facilmente via cada uma de todas as coisas que existem em dez ou até mesmo vinte gerações de homens[15].” Estas últimas palavras confirmam a tradição atribuída a Pitágoras de lembrar-se de suas encarnações anteriores, como aquiesce a maioria dos estudiosos.
Dando um passo adiante, Cornford observa que, considerada em seu conjunto, a passagem sugere algo mais: não apenas a recordação de experiências vividas neste mundo, mas “a visão de tudo quanto existe” (“facilmente via cada uma de todas as coisas que existem), vislumbrando, nestes termos, a relação existente entre memória e verdade[16]. Foge ao escopo traçado esmiuçar tal relação, mas cabe ressaltar que é nessa relação que se alimenta a alma do sábio.
Apesar dos predicados que lhe foram atribuídos, relatos mostram que Pitágoras não se teria agraciado com o grau de sábio, sophós. Ao contrário, uma tradição tardia afirma que Pitágoras teria sido o primeiro a escolher para si um termo mais modesto: philosophós. E, posteriormente, seus discípulos teriam sido os primeiros a se intitular, de forma reservada, “amigos da sabedoria[17].”
Acresça-se que, de acordo com o oportuno esclarecimento de Rocha Pereira, sophós e sophistés foram, durante muito tempo, sinônimos, antes que o termo sophistés adquirisse uma diversa conotação[18]. Numa época em que os sofistas se auto-intitulavam sophói, Platão reconhecia como sophói apenas os pitagóricos.
O sophós era aquele que atingira os cumes da perfeição espiritual; o philosophós ainda tentava a ascensão.
Para finalizar, cumpre informar que existem divergências entre os especialistas no que concerne a eventuais obras escritas por Pitágoras.
O Discurso Sagrado, que conteria a doutrina mística e ascética da escola, é geralmente admitido pela tradição como de sua autoria. Fragmentos deste último foram recolhidos e compilados tardiamente nos célebres Versos Áureos[19], comentados pelo neoplatônico Hiérocles de Alexandria. Discute-se a existência de outros escritos que se perderam, embora a tese mais adotada pelos historiadores, atualmente, seja a de que Pitágoras nada escreveu. A transmissão do conhecimento na escola que fundou se deu e se perpetuou através da oralidade. A grandeza de sua presença, sustentada por uma poderosa psyché, promoveu o estreitamento, em torno a si, do círculo de discípulos que, num corpo único, aplicaram aos exercícios intelectuais uma profunda concepção da vida humana e do universo.
Notas
[1] – Jonathan Barnes (2003, p.95) corrobora tal afirmação ao notificar que existem mais informações acerca de Pitágoras – sua vida, sua personalidade, suas ideias – do que sobre qualquer outro filósofo pré-socrático.
[2] – Cf. Aristóxeno, fr.16, apud Porfírio, VP 9. Ainda, Burkert, 1993, p.569. Informam Kirk, Raven e Schofield (p.233) que a emigração decorrente da tirania de Polícrates se prolongou entre o período de 540 até cerca de 522 a.C. Crotona se tornara, efetivamente, um destino bastante comum, por se tratar da mais célebre cidade do sul da Itália, notável por suas vitórias olímpicas.
[3] – Cf. Timpanaro Cardini (n.p.45), o mais antigo testemunho de uma viagem de Pitágoras ao Egito é dado por Isócrates (fr.4). Walter Burkert afirma que seria perfeitamente possível a um jônio do século VI assimilar elementos de outras culturas, como da matemática babilônica ou da doutrina indiana da metempsicose (1993, p.569).
[4] – De acordo com Porfírio, VP 6, esses fatos seriam conhecidos por muitas pessoas, já que se encontram escritos nas Memórias, diversamente de outras doutrinas e hábitos que se mantiveram em sigilo. Cf, ainda, Rocha Pereira, p.174, 175; Ferreira dos Santos, 2000, p.67.
[5] – Cf. Rohde, 2006, p.378.
[6] – Cf. Diógenes Laércio I, 119.
[7] – Cf. Burkert, 1993, p.576.
[8] – Cf. Achtemeier, “Origin and Function of the Pre-marcan Miracle Catenae” in Journal of Biblical Literature, 1972, apud Cornelli, 2011, p.125.
[9] – Timeu e a maior parte da tradição consideram que esses versos se dirigem a Pitágoras, pois a força d’anamnesis só poderia relacionar-se a Pitágoras, ao qual esse dom é atribuído (Rohde, 2006, p. 397). Também a grande maioria dos modernos, como Cornford, Diels, Delatte e Burnet, entre outros, alinha-se com essa tese.
[10] – Além disso, Aristóteles teria se referido a Pitágoras como o herdeiro de Epimênides, Aristeu, Hermotimo, Ábaris e Ferecides (Cf. Cornford, 1975, nota p.175 ).
[11] – Cf. Cornford, 1975, p.175.
[12] – Cf. Gabriele Cornelli, 2011, p.197.
[13] – Heráclides Pôntico foi pupilo de Platão e ingressou na Academia na mesma época que Aristóteles, além de ter sido um notável filósofo e cientista por seus próprios méritos. Em seus escritos (dos quais só restam fragmentos) ele lidou em certas dimensões com Pitágoras e sua escola, e há sinais de que estes teriam exercido influência considerável sobre ele. Ainda que seus trabalhos hajam se perdido, escritores posteriores fornecem diversas citações nesse sentido. Seu fragmento 89 pode ser encontrado na edição dos fragmentos de Heráclides em F. Wehrli. Para maiores detalhes, cf. Guthrie, 2003b, pp.163-164.
[14] – 4 As provas citadas por Porfírio estão descritas na História Universal, de Diodoro (X, vi 1–3); Cf. Barnes, 2003, p.103.
[15] – A relação de Empédocles com o Pitagorismo é confirmada por vários estudiosos, como Cornford, Diels, Delatte, Burnet, Zeller e Timpanaro Cardini, que analisaram os pontos coincidentes entre suas doutrinas.
[16] – Cf. Cornford, 1975, p.90.
[17] – Cf. Rocha Pereira, 1964, pp.161,162; Burnet; Cornford, 1975, p.186.
[18] – Cf. Rocha Pereira, ibidem.
[19] – Armand Delatte, em La vie de Pythagore, examinou minuciosamente os Versos Áureos, concluindo pela autenticidade de mais de dois terços dos fragmentos que apresentam a doutrina religiosa pitagórica, sob forma muito antiga. Cf. Stefano Fumagalli, 1996, p.45; ver, ainda, notas em Timpanaro Cardini, 2010, n.p.63,64.
Fonte: Revista Pandora Brasil
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