Vale tudo: Homossexualidade na antiguidade
Na Antiguidade, ninguém saía dizendo por aí que fulano era gay, mesmo que fosse. Por milhares de anos, o amor entre iguais era tão comum que não existia nem o conceito de homossexualidade
A união civil entre pessoas do mesmo sexo pode parecer algo bastante recente, coisa de gente moderna.
Apenas em 1989 a Dinamarca abraçou a causa – foi o primeiro país a fazer isso.
Hoje, o casamento gay está amparado na lei de 21 nações.
Essa marcha, porém, de nova não tem nada.
Sua história retoma um tempo em que não havia necessidade de distinguir o relacionamento entre pessoas do mesmo sexo – para os povos antigos, o conceito de homossexualidade simplesmente não existia.
As tribos das ilhas de Nova Guiné, Fiji e Salomão, no oceano Pacífico, cerca de 10 mil anos atrás já exercitavam algumas formas de homossexualidade ritual.
Os melanésios acreditavam que o conhecimento sagrado só poderia ser transmitido por meio do coito entre duplas do mesmo sexo.
No rito, um homem travestido representava um espírito dotado de grande alegria – e seus trejeitos não eram muito diferentes dos de um show de drag queens atual.
Um dos mais antigos e importantes conjuntos de leis do mundo, elaborado pelo imperador Hammurabi na antiga Mesopotâmia em cerca de 1750 a.C., contém alguns privilégios que deveriam ser dados aos prostitutos e às prostitutas que participavam dos cultos religiosos.
Eles eram sagrados e tinham relações com os homens devotos dentro dos templos da Mesopotâmia, Fenícia, Egito, Sicília e Índia, entre outros lugares.
Herdeiras do Código de Hammurabi, as leis hititas chegam a reconhecer uniões entre pessoas do mesmo sexo. E olha que isso foi há mais de 3 mil anos.
Na Grécia e na Roma da Antiguidade, era absolutamente normal um homem mais velho ter relações sexuais com um mais jovem.
O filósofo grego Sócrates (469-399), adepto do amor homossexual, pregava que o coito anal era a melhor forma de inspiração – e o sexo heterossexual, por sua vez, servia apenas para procriar.
Para a educação dos jovens atenienses, esperava-se que os adolescentes aceitassem a amizade e os laços de amor com homens mais velhos, para absorver suas virtudes e seus conhecimentos de filosofia.
Após os 12 anos, desde que o garoto concordasse, transformava-se em um parceiro passivo até por volta dos 18 anos, com a aprovação de sua família.
Normalmente, aos 25 tornava-se um homem – e aí esperava-se que assumisse o papel ativo.
Entre os romanos, os ideais amorosos eram equivalentes aos dos gregos.
A pederastia (relação entre um homem adulto e um rapaz mais jovem) era encarada como um sentimento puro.
No entanto, se a ordem fosse subvertida e um homem mais velho mantivesse relações sexuais com outro, estava estabelecida sua desgraça – os adultos passivos eram encarados com desprezo por toda a sociedade, a ponto de o sujeito ser impedido de exercer cargos públicos.
Boa parte do modo como os povos da Antiguidade encaravam o amor entre pessoas do mesmo sexo pode ser explicada – ou, ao menos, entendida – se levarmos em conta suas crenças.
Na mitologia grega, romana ou entre os deuses hindus e babilônios, por exemplo, a homossexualidade existia.
Muitos deuses antigos não têm sexo definido.
Alguns, como o popularíssimo hindu Ganesh, da fortuna, teriam até mesmo nascido de uma relação entre duas divindades femininas.
Não é nada difícil perceber que, na Antiguidade, o sexo não tinha como objetivo exclusivo a procriação.
Isso começou a mudar, porém, com o advento do cristianismo.
Sexo para procriar
O judaísmo já pregava que as relações sexuais tinham como único fim a máxima exigida por Deus: “Crescei e multiplicai-vos”.
Até o início do século 4, essa idéia, porém, ficou restrita à comunidade judaica e aos poucos cristãos que existiam.
Nessa época, o imperador romano Constantino converteu-se à fé cristã – e, na seqüência, o cristianismo tornou-se obrigatório no maior império do mundo.
Como o sexo passou a ser encarado apenas como forma de gerar filhos, a homossexualidade virou algo antinatural.
Data de 390, do reinado de Teodósio, o Grande, o primeiro registro de um castigo corporal aplicado em gays.
O primeiro texto de lei proibindo sem reservas a homossexualidade foi promulgado mais tarde, em 533, pelo imperador cristão Justiniano.
Ele vinculou todas as relações homossexuais ao adultério – para o qual se previa a pena de morte.
Mais tarde, em 538 e 544, outras leis obrigavam os homossexuais a arrepender-se de seus pecados e fazer penitência.
O nascimento e a expansão do islamismo, a partir do século 7, junto com a força cristã, reforçaram a teoria do sexo para procriação.
Durante muito tempo, até meados do século 14, no entanto, embora a fé condenasse os prazeres da carne, na prática os costumes permaneciam os mesmos.
A Igreja viu-se, a partir daí, diante de uma série de crises.
Os católicos assistiram horrorizados à conversão ao protestantismo de diversas pessoas após a Reforma de Lutero.
E, com o humanismo renascentista, os valores clássicos – e, assim, o gosto dos antigos pela forma masculina – voltaram à tona.
Pintores, escritores, dramaturgos e poetas celebravam o amor entre homens.
Além disso, entre a nobreza, que costumava ditar moda, a homossexualidade sempre correu solta.
E, o mais importante, sem censura alguma – ficaram notórios os casos homossexuais de monarcas como o inglês Ricardo Coração de Leão (1157-1199).
No curto intervalo entre 1347 e 1351, a peste negra assolou a Europa e matou 25 milhões de pessoas.
Como ninguém sabia a causa da doença, a especulação ultrapassava os limites da saúde pública e alcançava os costumes.
O “pecado” em que viviam os homens passou a ser apontado como a causa dela e de diversas outras catástrofes, como fomes e guerras.
Judeus, hereges e sodomitas tornaram-se a causa dos males da sociedade.
Não havia outra solução a não ser a erradicação desses grupos. Medidas enérgicas foram tomadas.
Em Florença, por exemplo, a sodomia foi proibida em 1432, com a criação dos Ufficiali di Notte (agentes da noite).
O resultado? Setenta anos de perseguição aos homens que mantinham relações com outros.
Entre 1432 e 1502, mais de 17 mil foram incriminados e 3 mil condenados por sodomia, numa população de 40 mil habitantes.
Leis duras foram estabelecidas em vários outros países europeus. Na Inglaterra, o século 19 começou com o enforcamento de vários cidadãos acusados de sodomia.
E, entre 1800 e 1834, 80 homens foram mortos. Apenas em 1861 o país aboliu a pena de morte para os atos de sodomia, substituindo-a por uma pena de dez anos de trabalhos forçados.
Ciência maluca
Outro tratamento nada usual foi destinado tanto à homossexualidade quanto à ninfomania feminina: a lobotomia.
Desenvolvida pelo neurocirurgião português António Egas Moniz, que chegou a ganhar o prêmio Nobel de Medicina de 1949 por isso, ela consistia em uma técnica cirúrgica que cortava um pedaço do cérebro dos doentes psiquiátricos, mais precisamente nervos do córtex pré-frontal.
Na Suécia, 3 mil gays foram lobotomizados.
Na Dinamarca, 3500 – a última cirurgia foi em 1981. Nos Estados Unidos, cidadãos portadores de “disfunções sexuais” lobotomizados chegaram às dezenas de milhares.
O tratamento médico era empregado porque a homossexualidade passou a ser vista como uma doença, uma espécie de defeito genético.
A preocupação científica com os gays começou no século 19.
A expressão “homossexual” foi criada em 1848, pelo psicólogo alemão Karoly Maria Benkert.
Sua definição para o termo: “Além do impulso sexual normal dos homens e das mulheres, a natureza, do seu modo soberano, dotou à nascença certos indivíduos masculinos e femininos do impulso homossexual(…). Esse impulso cria de antemão uma aversão direta ao sexo oposto”.
Em 1897, o inglês Havelock Ellis publicou o primeiro livro médico sobre homossexualismo em inglês, Sexual Inversion (“Inversão sexual”, inédito no Brasil).
Como muitos da época, ele defendia a idéia de que a homossexualidade era congênita e hereditária.
A opinião científica, médica e psiquiátrica vigente era de que a homossexualidade era uma doença resultante de anormalidade genética associada a problemas mentais na família.
A teoria, junto das idéias emergentes sobre pureza racial e eugenismo nos anos 1930, torna fácil entender por que a lobotomia foi indicada para os homossexuais.
A situação só começou a mudar no fim do século passado, quando a discussão passou a se libertar de estigmas.
Em 1979, a Associação Americana de Psiquiatria finalmente tirou a homossexualidade de sua lista oficial de doenças mentais.
Na mesma época, o advento da aids teve um resultado ambíguo para os homossexuais.
Embora tenha ressuscitado o preconceito, já que a doença foi associada aos gays a princípio, também fez com que muitos deles viessem à tona, sem medo de mostrar a cara, para reivindicar seus direitos.
Durante os anos 80 e 90, a maioria dos países desenvolvidos descriminalizou a homossexualidade e proibiu a discriminação contra gays e lésbicas.
Em 2004, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos invalidou todas as leis estaduais que ainda proibiam a sodomia.
“Em toda a história e em todo o mundo a homossexualidade tem sido um componente da vida humana”, escreveu William Naphy, diretor do colégio de Teologia, História e Filosofia da Universidade de Aberdeen, Reino Unido, em Born to Be Gay – História da Homossexualidade.
“Nesse sentido, não pode ser considerada antinatural ou anormal. Não há dúvida de que a homossexualidade é e sempre foi menos comum do que a heterossexualidade. No entanto, a homossexualidade é claramente uma característica muito real da espécie humana.”
Para muitos, ainda hoje sair do armário continua sendo uma questão de tempo. As portas, no entanto, vêm sendo abertas desde a Antiguidade.
Este armário não te pertence
Personalidades que não escondiam suas preferências
O que tinham em comum pessoas como os imperadores Adriano e Nero, o filósofo Sócrates, o artista e inventor Leonardo da Vinci?
Todos eles mantiveram relações sexuais com pessoas do mesmo sexo.
A homossexualidade experimentou ao longo da história da humanidade diversos altos e baixos. De comportamento absolutamente natural, passou a ser “pecado” e até a ser crime.
Aqui, algumas histórias de personalidades que amaram seus iguais.
Alexandre, o Grande
O conquistador Alexandre, o Grande (356-323 a.C.), também foi conquistado. Seu amante era Hefastião, seu braço direito e ocupante de um importante posto no Exército.
Quando ele morreu de febre, na volta de uma campanha na Índia, Alexandre caiu em desespero: ficou sem comer e beber por vários dias.
Mandou proporcionar a seu amado um funeral majestoso: os preparativos foram tantos que a cerimônia só pôde ser realizada seis meses depois da morte.
Alexandre fez questão de dirigir a carruagem fúnebre, decretando luto oficial em seu reino.
Júlio César
O romano Suetônio escreveu em seu As Vidas dos Doze Césares, livro do século 2, sobre os hábitos dos governantes do fim da república e do começo do Império Romano. Dos 12, só um deles, Cláudio, nunca teve relações homossexuais.
O mais famoso, Júlio César (100-44 a.C.), teve aos 19 anos um relacionamento com o rei Nicomedes – César era o passivo. Entre todos os romanos, os mais excêntricos foram Calígula (12-41 d.C.) e Nero (37-68).
O primeiro obrigava súditos a beijar seu pênis. O segundo teve dois maridos e manteve relações com a própria mãe.
Maria Antonieta
Segundo William Naphy no livro Born to Be Gay, havia um “reconhecimento generalizado da bissexualidade” da rainha da França Maria Antonieta (1755-1793).
O escritor inglês Heste Thrale-Piozzi escreveu, em 1789, que a monarca encontrava-se “à cabeça de um grupo de monstros que se conhecem uns aos outros por safistas” – ou seja, lésbicas.
Ricardo Coração de Leão
As aventuras homossexuais do rei inglês Ricardo I (1157-1199) eram notórias na época.
Um de seus casos, quando ele ainda era duque de Aquitânia, foi com outro nobre, Filipe II, rei da França.
Uma crônica da época afirma: “Comiam os dois todos os dias à mesma mesa e do mesmo prato, e à noite as suas camas não os separavam. E o rei da França amava-o como à própria alma”. Outros monarcas europeus, como Henrique III da França (1551-1589) e Jaime IV da Escócia e I da Inglaterra (1566-1625), também tiveram vários amantes do mesmo sexo.
Oscar Wilde
O dramaturgo inglês (1854-1900) casou-se e teve dois filhos, mas também teve vários casos com homens. A relação mais marcante foi com o lorde Alfred Douglas, com quem mantinha o hábito de procurar jovens operários para o sexo.
O pai do amante, o marquês de Queensberry, acusou Wilde de ser sodomita. O escritor processou o nobre por difamação – e arruinou-se.
Foram três julgamentos, e o marquês juntara provas de sodomia contra ele. Wilde foi condenado a dois anos de trabalhos forçados.
Na prisão, definhou – e morreu pouco tempo após deixar a cadeia.
Amor na ilha de Lesbos
Há muito pouco registro do lesbianismo até o século 18
O historiador romano Plutarco dizia, no século 1, que na cidade grega de Esparta todas as melhores mulheres amavam garotas.
Apesar disso, há muito pouco registro sobre o lesbianismo até pelo menos o século 18.
Os termos “lesbianismo” e “lésbica”, aliás, têm origem na ilha grega de Lesbos, no mar Egeu, local de nascimento da poetisa Safo (610-580 a.C.) – seu nome originou a palavra “safismo”.
Embora os livros de Safo tenham sido queimados por ordem de Gregório de Nazianzus, bispo de Constantinopla, cerca de 200 fragmentos resistiram ao tempo e ao cristianismo.
Os poemas revelam uma paixão exuberante ao amor feminino, o que faz crer que a autora tenha partilhado desse sentimento.
É impossível, no entanto, afirmar se a autora realmente amou as mulheres que enaltece em seus poemas – ou se era apenas uma questão de estilo.
Um dos primeiros códigos legais a fazer menção ao homossexualismo feminino é um francês de 1270.
Ele estabelecia que o homem que mantivesse relação homossexual deveria ser castrado e, se reincidente, morto.
E também que uma mulher que tivesse relações com outra mulher perderia o “membro” se fosse pega. Que “membro” seria cortado, porém, o código não especifica.
por Humberto Rodrigues e Cláudia de Castro Lima
Saiba mais
Livros
Born to Be Gay – História da Homossexualidade, William Naphy, Edições 70, 2006
No livro, o autor faz um profundo estudo da homossexualidade desde a Antiguidade.
O Amor Entre Iguais, Humberto Rodrigues, Mythos, 2004
Traz aspectos históricos, sociais e legais sobre o assunto.
Comentários
Postar um comentário