Inteligência artificial é “nova religião” do “futuro sem futuro”

 



O neurocientista Miguel Nicolelis concedeu uma entrevista ao DCMTV em que teceu críticas às tecnologias de Inteligência Artificial. Autor de livros como “O verdadeiro criador de tudo” (2020, sobre o cérebro humano) e “Muito além do nosso eu” (2011), o especialista trabalha há três décadas com redes neurais.

Nicolelis foi líder do Centro de Neuroengenharia da Universidade de Duke, antes de se aposentar como professor emérito em 2021. Tornou-se referência no estudo da interface entre cérebro e máquina, além de ter coordenado o comitê científico do Consórcio Nordeste. 

Foi o primeiro brasileiro a publicar um artigo na capa da revista científica Science.

Confira os principais trechos da entrevista ao DCM.

“A nova religião” da IA

Vamos falar sobre essa nova religião que está se criando no mundo, não é? A Inteligência Artificial já era famosa algumas décadas atrás. E, de repente, nós vemos aí os novos cultos sendo expandidos e transformados numa temática que, como você notou, virou capa dos maiores meios de comunicação do mundo.

Isso aconteceu pela campanha de marketing que foi criada com o lema: seres humanos serão obsoletos em breve. Mais ou menos isso.

Alan Turing mereceu um belo filme há alguns anos e foi um dos precursores do computador atual, um precursor da vida digital. E ele já abordava isso.

A crença que o computador substituirá o cérebro humano é uma lenda urbana pós-moderna. A Inteligência Artificial não é nem inteligência. Esse marketing é para explorar o trabalho humano.

O “computador orgânico” chamado cérebro humano

Inteligência Artificial é um produto de marketing para aumentar a exploração. Primeiramente, o cérebro é um produto do processo de seleção natural. Eu gosto de dizer que ele é um computador orgânico. E ele funciona principalmente de forma analógica. Tem alguns processos como o disparo dos potenciais elétricos que pode ser modelado como um sistema digital.

Mas isso é só um pequeno componente na forma de transmissão de informação. Porque o cérebro, basicamente, computa com o seu hardware. Assim não existe uma distinção entre software e hardware na matéria orgânica do cérebro humano. Acontece com o cérebro de qualquer animal.

Durante a nossa conversa aqui no DCM, a microestrutura dos nossos cérebros está sendo alterada e vai ser incorporada como parte das nossas memórias. Isso vai acontecer por modificações físicas do tecido neural, modificações de proteínas de organelas de microtúbulos e do aparelho orgânico que forma o cérebro.

Ele não é uma máquina de túnel como o próprio Turing sabia como funcionava.. Essa parte do da produção científica do túnel é ceifada de debates. É o problema não computável por excelência. Não existe um algoritmo e não existe uma fórmula matemática que possa prever se um programa de computação vai parar num dado momento.

Turing chamou isso do problema da parada, de problemas não computáveis, não algoritimizáveis.

Na encruzilhada digital, você precisa de um ser humano. E o que eu digo sempre é: o cérebro humano foi moldado pelo processo de seleção natural como resultado da interação da nossa espécie com o ambiente e com outros organismos.

E esse processo ocorre com uma sequência quase infinita de passos aleatórios. Você não consegue criar uma fórmula, um algoritmo, para reproduzir o processo de evolução natural. Você não consegue expor para uma máquina esse processo e como o cérebro funciona de forma analógica na computação continua.

As distinções com o sistema digital são enormes e são incompatíveis. Desde os anos 1950, os precursores da Inteligência Artificial começaram a fazer essas comparações com o cérebro humano na tentativa de convencer a sua audiência e os seus financiadores.

Eles foram financiados principalmente pelo Departamento Defesa americano, que foi quem começou a remunerar pesquisas com a dita Inteligência Artificial. 

Os caras mais sérios que trabalham em Inteligência Artificial sabem que é impossível reproduzir isso na computação. O recurso se transformou em uma ferramenta de marketing muito grande porque existem interesses econômicos gigantescos por trás da tentativa de dizer que o trabalho humano vai ficar obsoleto.

Para você maximizar o lucro, para atingir um lucro máximo infinito, você precisa levar o trabalho humano a zero. O custo do trabalho humano tem que ir até zero.

Trabalho intelectual zero é “mito”

A IA não é inteligente porque a inteligência dela vem do programador, vem do criador do algoritmo. Ela é uma propriedade dos organismos. Essa é a definição de inteligência. Ela emerge quando organismos interagem com o ambiente e com outros organismos. E ela não é artificial.

Se a gente pensar na Revolução Industrial, que é a evolução da ciência, o que é evolução da produtividade, temos aquele exemplo clássico que é o tear mecânico. Enquanto 10 trabalhadores produziam uma quantidade de tecido com o tear manual, o mecânico fazia mais e deixou nove desempregados.

Esse aumento da produtividade sempre se deu no quesito do trabalho, mas você sempre tem um trabalhador fazendo o tecido. Sempre tem alguém que vai desenhar o motor da gasolina, que vai desenhar a máquina de concretagem.

Você sempre terá o cérebro humano produzindo. Me parece que se quer colocar agora é que a Inteligência Artificial substituiria não o trabalho mecânico, mas a concepção do trabalho, a organização do próprio trabalho. Um trabalho intelectual por valor zero. 

Isso é um mito. É muito difícil de colocar isso em outros espaços, mas aqui, no DCM, a gente pode. Na minha concepção, a grande batalha do século 21 daqui para frente, a famosa luta de classes, não se dá mais nos meios de produção. Porque os meios de produção, ou o controle dos meios de produção, vão ser automatizados.

Isso é inevitável, porque, se você tem um procedimento que é regido por regras muito claras como num jogo de xadrez, você consegue automatizar um jogo que é muito complexo. Ele tem um número explosivo de variáveis, mas também tem regras fixas.

Não é à toa que os robôs nas fábricas de automóveis substituíram boa parte da mão de obra humana. A grande batalha agora não é mais pelos meios de produção e sim pelo conhecimento e informação. E a sua disseminação é o campo de guerra atualmente.

Porque, no momento em que você consegue automatizar os meios de produção, você tem o monopólio da geração de informação e de conhecimento que é um passo acima.

Em geral ninguém fala isso também, mas a informação não é uma entidade física. Ela não tem uma partícula essencial. Os físicos ficam perdidos para falar sobre informação porque eles não conseguem usar o limbo que eles usam para matéria.

Para começar a falar da informação, ela requer a existência de um mensageiro inteligente e de um intérprete inteligente, né? Então esse domínio dos meios de produção de informação e de conhecimento e da sua disseminação é onde a batalha vai se dar.

Porque, se você tem esse a geração da informação, você pode criar qualquer realidade, pode inventar qualquer tipo de universo e pode inventar qualquer tipo de relacionamento social baseado em fatos.

O que a gente chama hoje em dia de fake news existe desde a Antiguidade. Hoje você pode manipular a realidade a seu bel prazer. Essa é a grande batalha que nós vamos enfrentar.

O cérebro é o nosso último bastião de liberdade, de privacidade, de criatividade. Ele era inatingível e eu continuo achando que isso não vai ocorrer. Nós não vamos copiar o cérebro humano, mas vamos avançar na eliminação do trabalho.

Vamos eliminar vários trabalhos e não são só trabalhos manuais. Você vai avançar em várias áreas na divisão da criatividade total e do trabalho manual. Nos Estados Unidos existe um movimento agora tentando impor sistemas ditos inteligentes de computação na triagem dos pronto-socorros dos hospitais.

Eu não acredito que isso vai chegar a lugar algum. Vai dar um problema enorme porque esses sistemas vão falhar num índice muito alto. Talvez bem mais rápido do que o ser humano. Porque tem coisas que são para um médico cuidar ou para uma enfermeira experiente.

Eles conseguem detectar um paciente que está numa situação emergencial.

O cérebro humano é um grande camaleão. Os entusiastas da IA não vão conseguir reproduzir o cérebro humano, mas eles vão conseguir fazer com que a gente se comporte como máquinas digitais. Porque todas as recompensas da sociedade, tanto financeiras quanto emocionais, vai ser baseada em algoritmos digitais.

Esses caras estão penetrando em todos os aspectos do comportamento humano.

Sobre a propaganda da Maria Rita com um corpo com rosto da Elis Regina: aquilo é computação gráfica, que você adapta o rosto no movimento corporal.

Existe há muito tempo, pelo menos duas décadas. Você usa a computação gráfica para criar essa situação ilusória.

Hoje, a Inteligência Artificial é alimentada com determinados elementos. O recurso pode ser usado para escrever uma notícia num site jornalístico. Na mesma página, esse recurso pode gerar uma crônica. No limite, a IA pode escrever um romance.

É possível, pelo recurso, ter acesso a uma vastidão de conhecimento, acessar informações de uma maneira muito imediata, muito rápida e para compor um best-seller.

Uma febre como Harry Potter, que estourou no começo dos anos 2000, cria uma fórmula em que pode ser reproduzida. Mas acho que ninguém vai escrever um Grande Sertão Veredas com Inteligência Artificial. É possível usar uma fórmula já aplicada e que vende.

O “futuro sem futuro” da Inteligência Artificial

Esses sistemas apelam para três características muito importantes da sociedade moderna. 

Primeiro é a conveniência. Se você gosta de um autor, ele precisa de um tempo para escrever um novo livro. Agatha Christie, que era extremamente profícua, precisou de seis meses para escrever um novo livro.

Ela tinha uma fórmula muito muito clara. A conveniência é resolvida porque você pode ter um sistema que pega todos os livros da Agatha Christie. Basta estudar a distribuição estatística do uso de frases e de palavras. E a Inteligência Artificial reconstrói rapidamente um número enorme de novos livros que não são exatamente novos.

São livros baseados na no banco de dados, porque todos desses sistemas precisam basicamente treinar um recurso de Deep Learning. É uma síntese que foi alimentada.

Eu chamo isso do futuro sem futuro. Porque, se você chegar para um sistema desses e pedir para a Agatha Christie criar um livro do Jorge Amado, não sai nada. Ou do Machado de Assis.

A IA nunca vai criar um estilo novo de literatura. Assim, nós vamos destruir a criatividade, que é uma das grandes um dos grandes atributos que você tem aqui no processo evolucional.

Nós tivemos que improvisar para sobreviver toda a sorte de catástrofes ambientais, pandemias, seja o que for. E essa criatividade vai ser removida da nossa vida cotidiana, porque nós só vamos poder consumir o que vem do passado.

E esse é o segundo atributo que a Inteligência Artificial possui. É a velocidade. Uma produção muito mais rápida. Ela basicamente estimula esse consumo do passado, esse consumo do que já foi criado. E não da criatividade.

Se o cérebro das nossas crianças forem circundado pela IA, ele aperta um botão e sai seu trabalho de casa. Ou sai o cálculo da raiz quadrada. Ou sai um novo romance. 

Você não vai estimular as funções cognitivas das próximas gerações, permitindo que elas sejam criativas. Elas vão consumir o passado.

É uma nova etapa do capitalismo. Ele visa o lucro infinito e a redução do custo do trabalho a zero. Ele nos transforma simplesmente em estatísticas de consumo, porque a nossa produção própria desapareceria nesse contexto.

Tanto é assim que agora temos uma greve pela primeira vez em 63 anos dos artistas de Hollywood. Eles se revoltaram contra o uso que os estúdios fizeram de suas imagens, como foi feito no comercial da Elis Regina, para criar novos filmes sem pagar nada por isso.

Os roteiristas também entraram em greve e não só por esse motivo. Eles querem direitos autorais sobre streaming. Existe uma pauta extensa.

Nós estamos criando uma ‘igreja da tecnologia’. Criando cultos à máquina em detrimento ao fato de quem cria máquinas somos nós. A máquina não tem não tem ego. Não tem alianças emocionais. As máquinas não criam alianças sociais.

A máquina é uma criação, uma extensão do nosso cérebro para melhorar a nossa qualidade de vida. E para melhorar o futuro da humanidade.

As pessoas estão transferindo para as máquinas atributos humanos. Não podemos permitir que essa esses ganhos tecnológicos sejam usados para escravizar a humanidade.

Para reduzir a nossa capacidade cognitiva e para extrair lucros infinitos em detrimento da nossa qualidade de vida. É isso que não pode acontecer.

O problema é que tem toda uma camada de hype com a IA, há toda uma camada de marketing em cima disso. Na minha área, isso acontece na neurotecnologia. Várias startups americanas foram criadas gerando expectativas que nunca vão se realizar. Querendo implantar chips em adolescentes, o que tem riscos e não faz o menor sentido.

Um grande índice das provas que são feitas em casa estão sendo plagiadas usando a ferramentas de Inteligência Artificial. Estou conversando com os meus editores lá nos Estados Unidos e uma editora aqui no Brasil. As empresas estão recusando livros porque eles percebem como programas de Inteligência Artificial estão gerando um atrás do outro.

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