A Bíblia e as lendas maçónicas entre o imaginário e o fidedigno

 

bíblia

“Nas fantasias da Maçonaria Operativa medieval e dos tempos modernos, os grémios de pedreiros-livres e canteiros teceram lendas e adaptaram aos seus estatutos ou usos codificados a ideia de que a Maçonaria teria existido desde os tempos de Adão”.

Varoli Filho, pág. 85, 1977

Introdução

Durante o período da nossa história que recebeu o nome de Maçonaria Operativa, havia uma boa quantidade de lendas sendo difundidas entre os pedreiros-livres.

Estes relatos lendários ficaram registrados em vários documentos produzidos durante a Idade Média, que receberam o nome de Antigos Documentos e que na língua inglesa eram chamadas de “Old Charges”.

Ao tomarmos conhecimento dos temas abordados nessas lendas, logo percebemos que a Bíblia serviu de inspiração para a maioria delas, mas, nem todas se mantiveram exatamente iguais ao formato como as conhecemos hoje.

O presente trabalho tem como proposta mostrar um panorama dessas lendas e mitos da época da Maçonaria Operativa, especificamente os que possuem base na Bíblia, abordando os aspectos relativos à sua difusão, já que os pedreiros-livres eram analfabetos na sua maioria, assim como, sobre quais os episódios bíblicos e personagens que eram mais utilizados, quais os documentos mais famosos, além das opiniões abalizadas dos estudiosos e historiadores da Maçonaria.

Os significados de “fidedigno” e de “imaginário”

Fidedigno: diz-se daquilo ou daquele que merece crédito; em que se pode acreditar: procurou informação num site fidedigno, encontrou uma tradução fidedigna da obra.

Imaginário: diz-se do que ou de quem existe na imaginação de alguém; diz-se do que não é real ou verdadeiro; que é fictício, quimérico ou fabuloso.

As origens

Consta num artigo do Irmão Assis Carvalho, que na época dos monges católicos romanos, os maçons operativos, analfabetos na sua quase totalidade, ouviam desses monges encantadoras lendas bíblicas versando sobre o Génesis, Adão e Eva e os filhos, Noé e os filhos, a aliança com Deus, o Dilúvio, Davi, Salomão e o Templo de Jerusalém. Num dos comentários do autor, ele diz que algumas das lendas tinham as suas raízes bíblicas verdadeiras, enquanto outras, eram fruto da imaginação dos instrutores, portanto, frutos das suas criações.

O Irmão Assis Carvalho, escreveu ainda que a Maçonaria que hoje praticamos nasceu e floresceu na Grã-Bretanha. Que ela foi operativa na sua totalidade, no período compreendido entre 1356 e 1600. Que de 1600 até 1700, ela passou a ser uma Maçonaria Mista, isto é, Operativa (Maçonaria de Ofício) e Maçonaria Especulativa (dos Aceitos). Que esse longo século foi de transição, da decadência dos operativos e a ascensão dos “ Aceitos ”. E que de 1700, até o presente momento, os “Aceitos ” reformularam e estudaram uma Maçonaria que já passou dos 300 anos. (Assis Carvalho, pág. 75, 1993)

Se o Livro Sagrado é a fonte maior utilizada na composição das lendas daquele período, na sequência, poderemos acompanhar num sucinto histórico, algumas particularidades a respeito da introdução e das primeiras traduções da Bíblia na Inglaterra, o que irá permitir que nos situemos melhor com relação aos acontecimentos da época e a sua evolução no plano histórico.

A Bíblia nas Ilhas Britânicas

A chegada do Cristianismo às ilhas britânicas também é contada por via de uma lenda medieval: José de Arimateia, aquele que teria sepultado Jesus, tinha chegado àquelas ilhas para o cumprimento de uma missão que era a de converter o povo local. A lenda, inclusive, foi enriquecida com um rico detalhe, o de que José teria levado consigo o Santo Graal, o copo que Jesus utilizou por ocasião da última Ceia. Não existe, porém, comprovação de que isto tenha acontecido.

Com relação ao Livro Sagrado, até antes do século XIV não havia uma Bíblia completa em inglês, o que havia eram traduções anteriores de partes da mesma em antigos dialectos ingleses.

Mas, a primeira tradução completa da Bíblia para o inglês teria ocorrido em 1382, estimulada pelo reformador religioso John Wycliffe, que pouco tempo depois nomeou alguns dos seus seguidores para que se tornassem ministros viajantes e assim lessem e apresentassem a Bíblia, assim como, os seus ensinamentos para todas as pessoas, o que desgostou aos líderes da Igreja, que acusaram-no de torná-la propriedade das massas e comum a todos, o que em outras palavras, era o mesmo que dizer que a pérola dos evangelhos estava sendo atirada aos porcos. (Miller & Huber, págs. 154-155, 2006)

A actual versão da Bíblia que circula na Inglaterra é praticamente fruto do trabalho de outros dois importantes homens: William Tyndale (1490-1536) e Miles Coverdale (1488-1568).

Lendas e fantasias da maçonaria operativa medieval

São muitas as definições, são muitos os sinónimos que podemos encontrar para a palavra lenda. Parece que todo mundo sabe o que significa, o problema surge mesmo é na hora que tentamos explicar com as nossas próprias palavras.

Pesquisando na Internet, escolhi uma das tantas definições, e que do meu ponto de vista é completa o suficiente. Ei-la:

Lenda: narrativa de carácter maravilhoso, em que fatos históricos são deformados pela imaginação popular ou pela invenção poética. As lendas frequentemente contêm um elemento real, mas às vezes são inverídicas”.

Há uma variedade muito grande de lendas encampadas pela Maçonaria onde vemos desfilarem santos, heróis, mártires, reis e outros tipos de personagens.

A Bíblia, fonte de inspiração para a maioria delas, serviu para que as corporações medievais criassem muitas dessas lendas e as adaptassem aos seus estatutos, onde a ideia que deveria prevalecer era a de que a Maçonaria era contemporânea até mesmo de Adão. 

Sendo assim, as lendas tinham como pano de fundo episódios como o da Torre de Babel, personagens como Nabucodonosor, Nemrod [1] e outros mais, como veremos mais adiante. (Varoli Filho, págs. 85-86, 1977)

As Old Charges, o Livro da Lei=fonte das lendas

Old Charges” ou Antigas obrigações, são os documentos maçónicos mais antigos, através dos quais tomamos conhecimento de vários aspectos relativos aos costumes, práticas e influências da Maçonaria Operativa, anteriores a 1717, já que, a partir dessa data a Maçonaria passou a ser designada com outro nome, o de Especulativa.

É que, fundamentalmente, as lendas e tradições cultuadas no período chegaram até nós por intermédio deles.

Assim também, todas as nossas normas, leis e regulamentos actuais foram espelhados nos estatutos dispostos nesses antigos documentos, daí a importância de procurarmos conhecer o conteúdo dos mesmos para melhor entender a jurisprudência que rege a nossa Ordem, entre outras coisas.

Existia uma tradição nesses documentos, uma espécie de padrão no tocante à sua apresentação, comum a todos, consistindo na seguinte ordem:

  1. Oração inaugural ou Invocação
  2. Parte histórica (quase sempre envolvendo relatos lendários)
  3. Parte deontológica, as regras do Ofício
  4. Oração final

Alguns documentos são mais famosos e outros menos, sendo que os mais antigos seriam: a “Carta de Bolonha” e o “Poema Régius”. A totalidade daqueles manuscritos oficialmente reconhecidos pela sua autenticidade alcançam um número que sobrepassa o de 130 documentos.

Na sequência, conheceremos algumas informações básicas com referência a alguns dos mais conhecidos, até porque podem nos fornecer mais subsídios para o desenvolvimento do tema proposto.

Constituição de York (a sua autenticidade é duvidosa)

A Constituição de York é de 926. Consta de um magnífico preâmbulo, onde uma invocação a Deus Eterno, Pai e Criador do Céu e da Terra. Na sequência trata da tradição da corporação e após das leis e obrigações que foram prescritas ao Maçons pelo Príncipe Edwin, sendo que estão prescritas como o primeiro dever: honrar a Deus e observar as leis dos noaquitas. Depois, há uma prescrição sobre a fidelidade ao rei.

Com relação ao termo noaquita, este é derivado do nome de Noé em hebraico que é Noah. Conforme Alberton, Anderson na sua 2a versão das suas Constituições modificou o texto do 1° artigo para dizer que o Maçom deve observar a Lei Moral como um verdadeiro Noaquita, ou seja, que ele deve estar de acordo com os três grandes artigos de Noé. Alberton, refere-se também ao facto de que o personagem bíblico Noé aparece também num outro documento antigo, o “Graham Manuscript”, de 1726. (Alberton, pág. 73, 1981)

A carta de Bolonha (o mais antigo)

A Carta de Bolonha é de 1248. Também foi redigido originalmente em latim, sendo que o documento original hoje faz parte do acervo do Arquivo de Estado da Cidade de Bolonha, na Itália.

A sua importância somente passou a ser reconhecida a partir dos anos 80, apesar de que no ano de 1899 o documento tinha sido publicado no n° 21 do Boletim do Instituto Histórico Italiano. Seria impossível ignorar um certo descaso, que soa proposital, de parte de alguns estudiosos da Maçonaria, interessados em atribuir única e tão só origens inglesas à Maçonaria.

O poema Régio (antigo e mais famoso)

O mais célebre poema dos documentos antigos maçónicos. Há quem situe a sua origem no final do século XIV (1390), sendo que outros atribuem-no ao século XV. Está composto de 794 versos escritos em latim. Também é denominado de Documento Haliwell, em homenagem a J. Haliwell, que não era Maçom, mas, que o descobriu e fez um comentário acerca do mesmo. A Loja Quatuor Coronati n° 2076 de Londres analisou-o e publicou-o várias vezes.

O documento menciona que a Maçonaria teria sido introduzida na Inglaterra no tempo do rei Athelstan, o qual teria sido responsável por uma convocação para um encontro de Maçons, de onde teriam saído definidas as leis, as regras e os estatutos referentes à sociedade dos pedreiros.

Usando de uma passagem da obra do pesquisador Alberton, podemos detalhar melhor o conteúdo do Poema Régio:

“Compõem-se de uma história lendária, de uma Ordenação concernente às futuras assembleias, do ‘Ars Quatuor Coronatorum’ (vide mais adiante), de uma série de lendas sobre a Torre de Babel, Nabucodonosor, Euclides e os seus ensinamentos e, finalmente, de regras para o comportamento na Igreja e para o cerimonial”.

(Alberton, pág. 74, 1981)

Comentários

No presente trabalho, em referência aos Antigos Manuscritos, não nos poderíamos restringir aos documentos provindos somente das ilhas britânicas sob o risco de omissão, pois, mesmo que na sua maioria os Antigos Documentos sejam provenientes da Escócia e de algumas localidades da Inglaterra, por uma questão de fidelidade e respeito à verdade, o documento mais antigo evidentemente é esse denominado de Carta de Bolonha e, também pelo facto de que o próprio Anderson quando se referiu às consultas que realizara para a redacção das suas Constituições, declarou ter usado de fontes documentais da Maçonaria Operativa provindas da Escócia, Inglaterra e Itália.

Com relação à Constituição de York, ainda que tenha sido posta em dúvida a sua autenticidade, muitos autores a consideram autêntica, daí a sua menção neste trabalho, ao mesmo tempo em que colhemos da mesma preciosas informações sobre a influência do Livro Sagrado, ainda que, o facto de colocarmos dados sobre a história da Bíblia na Inglaterra nesse período é de se acolher com reservas.

Já no tocante às lendas que aparecem no Manuscrito Régio, citadas por Alberton no parágrafo reproduzido anteriormente, encontrei um trabalho do Irmão Sérgio Luiz Alagemovitz, fruto da sua pesquisa meticulosa, já que é um grande estudioso da Maçonaria e de assuntos esotéricos, que nos traz informações interessantes sobre a presença ou não da lenda do Templo de Salomão nos Antigos Documentos.

No caso específico do Manuscrito Régio, envolvendo as lendas ali contidas, ele tece comentários sobre dois personagens bíblicos importantes, Ninrod e Salomão, onde, com o tempo houve a substituição de um personagem pelo outro, pois, ainda que a maioria dos Maçons tenham a opinião formada de que Salomão e o seu Templo ocuparam sempre o lugar de destaque dentro da tradição maçónica, principalmente no que tange ao simbolismo, a verdade é que nem sempre foi assim. No “Manuscrito Régius” , ainda não existiam referências a Salomão e à construção do seu Templo. Vamos conhecer uma parte dos comentários do Irmão Sérgio Algemovitz, evidentemente, com parágrafos que foram previamente escolhidos para termos uma ideia de como se processou essa mudança e que ajuda a entendermos melhor como as lendas maçónicas foram tecidas, como chegaram até nós, sem esquecermos que, tudo é passível de mudanças.

O Rei Ninrode e a Torre de Babel & o Rei Salomão e o templo

As passagens a seguir foram extraídas do trabalho “Torre de Babel e Rei Ninrode no Lugar de Salomão e o seu Templo” de autoria do Irmão Sérgio Luiz Alagemovits:

“Por mais estranho que pareça, o Rei Salomão nem sempre ocupou um lugar de destaque na tradição maçónica. (…) Esta situação está consignada na mais antiga das ‘Velhas Instruções’, o conhecido ‘Manuscrito Régius’ que, segundo alguns autores data de 1390.

Neste documento, está registrado que ‘o nosso primeiro e mui excelente Grão-Mestre, foi o próprio Rei Ninrode, construtor da famosa Torre de babel…’. No texto, há ainda, a afirmação, segundo a qual, foi ele, Rei Ninrode, e não o Rei SALOMÃO, que deu aos pedreiros operativos do seu tempo as primeiras ‘Instruções’, as normas de proceder e a regulamentação da Confraria de Pedreiros, pela qual ele e os seus descendentes seriam governados.

De acordo com Mackey a lenda de Ninrode e da Torre de Babel persistiu em alguns países até o final do século 18 quando sucumbiu à força e à popularidade do Rei SALOMÃO, que passou a ser considerado o Primeiro Grão-Mestre e paralelamente, é claro, o seu sumptuoso Templo substituiu a Torre de Babel na preferência dos membros da Confraria. (…)

Que fatores determinaram esta mudança radical na tradição?

Na realidade a alteração não foi na tradição, mas na forma da tradição. Os elementos básicos da lenda continuam os mesmos: um grande Rei e uma grande construção, que apenas mudam de nome.

Um dos factores que mais contribuiu para esta modificação da lenda maçónica foi, sem dúvida, o surgimento de condições políticas e sociais que, mais tarde, redundariam no período de transição entre a Maçonaria Operativa e Especulativa.

A partir de um determinado momento histórico, os temas e as questões ligadas à arte de construir não estavam despertando mais o interesse e o entusiasmo entre os membros da Confraria, que se estavam a dedicar com mais afinco aos estudos filosóficos e espirituais.

Para aqueles Irmãos, portanto, não convinha considerar a sua Confraria, de objetivos espiritualizantes, como originária da Torre de Babel, estrutura pagã, construída com o propósito de desafiar a Divindade e sob o patrocínio do, agora, pagão e rebelde Rei Ninrode.

Foi fácil adotar SALOMÃO como primeiro Grão-Mestre. 

Ele tinha construído um sumtuoso Templo para glorificar o Deus único e verdadeiro. 

Suas qualidades espirituais, eram exemplares. Além disso, a sua figura já gozava de grande popularidade pois, do século XII ao século XIV, a sua sabedoria, suas façanhas, o esplendor do seu Templo povoavam a imaginação popular através dos cantadores, autores populares, fazedores de fábulas, etc…

Toda esta popularidade do Rei SALOMÃO foi amplamente reforçada quando, ao final do século XIV, começaram a surgir as primeiras traduções vernáculas da Bíblia, o que divulgou e popularizou, ainda mais, o nome do fabuloso SALOMÃO. (…)”

(Alagemovits, pág. 62, 1997)

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