Por: Luis Pellegrini
O racismo é, talvez, o mais abominável de todos os sentimentos humanos.
Ele é causa de incontáveis sofrimentos de indivíduos e de sociedades inteiras, vítimas das diferentes formas do preconceito racial.
Existe desde que o mundo é mundo, e continua a existir nos dias de hoje, como um estigma odioso que pode se manifestar em qualquer pessoa desavisada.
Racismo, como conceito filosófico, é a denominação que se dá à convicção que, além de proclamar a superioridade de uma raça, prega a separação, a subordinação ou a segregação de outras raças em relação àquela escolhida.
Branca e negra!
Qualquer postura racista é irracional, já que nenhum argumento lógico é capaz de sustentá-la.
Vários pensadores, no entanto, tentaram encontrar razões racionais para justificá-la.
No século dezoito, quando o alemão Blumembach diferenciou as características das raças humanas através da conformação craniana, aparecem as primeiras manifestações de um racismo pseudo racional. ]
Simplesmente baseado nas diferenças morfológicas dos crânios dos indivíduos das diferentes raças, o francês Gobineau aproveita para afirmar em sua obra Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas que a única raça pura é a ariana e, por isso, superior às demais.
Afirmação obviamente despropositada e ridícula, mas cujas consequências, ao longo da história, foram terríveis.
O pangermanismo, que surgiu na Alemanha nas últimas décadas do século 19, adota a doutrina de Gobineau para justificar sua tentativa de unir as “raças puras” que povoavam não só a Alemanha como outros países europeus.
Tal sentimento de “purismo racial” desembocou, finalmente, na primeira metade do nosso século, na loucura racista do nazismo antissemita, com todo o seu horrível séquito de muitos milhões de judeus, ciganos e indivíduos de outras minorias trucidados nos campos de concentração.
Tais fatos, deve-se lembrar, não aconteceram num passado remoto, num momento tão recuado da história que nos permita dormir tranquilos, como se nada tivéssemos a ver com eles.
São fatos muito recentes. Ocorreram há pouco mais de meio século, quando muitos de nós já tínhamos nascido.
E, por outro lado, e infelizmente, estão longe de serem fatos excepcionais.
De certa forma constituem mais a regra do que a exceção no conturbado mundo moderno em que vivemos.
Praticamente não há dia em que os jornais e as televisões não noticiem massacres étnicos em muitos países da África, renovados conflitos entre árabes e judeus no Oriente Médio, ou entre as diferentes etnias das nações da ex-União Soviética.
Ao mesmo tempo, na desenvolvida Comunidade Europeia, proliferam agora líderes políticos e partidos que desfraldam sem pudor a bandeira do racismo travestido na alegação de que “é preciso proteger nossas fronteiras nacionais contra a invasão dos refugiados”.
Na África do Sul, só há poucos anos, e a duras penas, aboliu-se o famigerado apartheid, regime que privilegiava a minoria branca em detrimento da grande maioria negra, esta última segregada em guetos em nada diferentes das nossas favelas. Nos Estados Unidos permanece a generalizada hostilidade contra os negros e os chicanos (imigrantes latino-americanos).
“País mulato”, um racista disfarçado.
O Brasil, por seu lado, não escapa ao racismo. “País mulato”, país da miscigenação, caldeirão de variadas raças que para cá vieram através da imigração, cultiva-se aqui, em larga escala, uma das piores formas de racismo.
Aquele que aparece como lobo em pele de cordeiro, travestido na ficção da “democracia racial”.
Mas a realidade é outra: qualquer pesquisa sociológica demonstra que as classes mais pobres e desvalidas da nossa população são constituídas por extrema maioria de negros, mulatos e outros mestiços.
Nosso país, que muitos ainda insistem em chamar de “coração do mundo e pátria do evangelho”, na assertiva generosa porem ingênua de Chico Xavier, trata com extrema crueldade os seus filhos mais carentes.
Na base dessa postura madrasta, na pior acepção dessa palavra, o que persiste na verdade é um profundo sentimento racista.
O racismo que prega a separação racial pela cor da pele é a forma mais exterior e evidente de estabelecer qualificações e separações entre as raças.
Mas se visualizarmos a questão como uma cebola composta de diferentes camadas, talvez nos surpreendamos com o que se encontra ao examinarmos os conteúdos dos seus estratos mais internos e ocultos.
Suas origens remotas, em termos de socio-antropologia, vão ser achadas nos componentes primitivos do homem entendido mais como animal do que como ser humano pensante e consciente.
Vêm do arcaico instinto de defesa territorial, que leva o bicho a tomar posse de um território e a atacar qualquer invasor que nele se aventure a penetr
Em termos psicológicos, o racismo tem outras explicações.
Deriva de uma patologia do ego individual e coletivo à qual dá-se o nome bem conhecido de egoísmo.
O ego neurótico, ao concentrar-se cada vez mais em si mesmo, ao desenvolver a convicção falsa de que é o centro do mundo, de que é uma espécie de sol ao redor do qual tudo e todos giram como satélites, começa a perder cada vez mais a sua capacidade de ver o outro, e portanto de estabelecer relações verdadeiras com o outro.
Não mais é capaz de projetar-se com entusiasmo e coragem no mundo, e de perceber o mundo naquilo que ele realmente é: um paraíso de diversidade.
Longe disso, o ego autocentrado torna-se cada vez mais endurecido, menos flexível e maleável, e menos apto a desempenhar o seu verdadeiro papel de intermediário entre a consciência desperta e as coisas e fenômenos do mundo. Perdido no interior de si mesmo, esse ego doente vive na solidão e no medo.
A patologia que imediatamente decorre dessa situação é o terror do diferente.
Tudo aquilo que não o espelha e reflete, tudo aquilo que ele não reconhece como igual ou semelhante a si mesmo, e portanto como parte integrante de si mesmo, passa a ser para esse ego um perigo e uma ameaça.
O contato com qualquer diferença o acua e amedronta, e ele, por instinto de defesa, tende a esmagar e destruir o que, neuroticamente, considera um “inimigo”.
Microcosmo que concentra todo o macrocosmo!
No entanto, cada um de nós é um microcosmo que concentra e sintetiza em si todo o macrocosmo. Em cada um de nós convivem, de forma manifestada ou em potencial, todas os diferentes fenômenos do mundo e da natureza humana.
E assim, quando combatemos aquilo que é diferente de nós apenas pelo fato de que é aparentemente diferente, estamos na verdade combatendo alguma coisa que existe em nós, que faz parte de nós, e que pode vir à tona e se manifestar a qualquer momento.
O terror do diferente é portanto o terror da nossa própria diversidade.
O racismo, consequência direta do medo do diferente, é uma anomalia perigosa e mortal, porque antes de levar a pessoa racista a matar os seus pretensos inimigos, ele mata a alma do próprio racista.
Ao contrário do ego neurótico, aquela componente fundamental da psique a que damos o nome de alma ama a diversidade.
A alma sadia tende a se interessar e a integrar tudo aquilo de diferente com que entra em contato. Ela se alimenta das diferenças, e por isso não têm limites a sua curiosidade e o seu interesse pelos múltiplos fenômenos que ocorrem no mundo exterior e no mundo interior do ser humano.
Por isso diz-se, com acerto, que a alma é a sede da criatividade.
Sempre interessada pelo novo, pelo inédito, pelo transformado, é ela quem nos arrasta consigo, fazendo-nos mergulhar com ela na aventura do mundo onde vamos encontrar todas as infinitas formas criadas.
É ela, a nossa alma aventureira, que, ao agir de tal forma, impede a cristalização da nossa pessoa, fazendo com que sejamos realmente seres em permanente processo de evolução, e não pedras enrijecidas perdidas à beira dos caminhos.
Se o ego é o instrumento que nos liga ao mundo, a alma é o instrumento que nos conduz ao Self, o Eu Superior, a centelha divina que, segundo todos os grandes sistemas religiosos e a moderna psicologia, brilha no mais profundo de cada um de nós.
Uma alma mal servida pelo ego ao qual está ligada, uma alma impedida por esse ego de lançar-se livremente no mundo de modo a poder alimentar-se de diversidade, certamente definhará e decairá. E uma alma definhada e decaída não tem condições de desempenhar aquela sua função primordial de ponte de conexão entre o indivíduo e o seu Self.
Convém sempre lembrar que entre um indivíduo desconectado de seu Self e um indivíduo morto há, na verdade, pouquíssima diferença. Porque a vida sem o Self não é mais que existência mecânica, uma ilusão transitória e falível.
A natureza ama a diversidade
O racismo, algoz da alma, é um sentimento antinatural.
Porque a mãe natureza, da mesma forma que a alma humana, também ama a diversidade. Nenhuma criação natural se repete; todas elas são infinitamente variadas.
Não há uma única impressão digital igual a outra; nenhum rosto exatamente igual a outro, desde que o homem existe sobre a terra; nenhum planeta ou estrela, nenhuma folha; nenhum dia ou noite que se repitam.
Como cada pessoa, cada coisa que existe é única, irrepetível, e diferente de todas as outras.
Por que, então, só aceitar e acolher aqueles ou aquilo que é igual a nós?
A partir de tudo isso, pode-se entender que o racismo é um conceito muito mais amplo do que aquele limitado às diferenças causadas pelo maior ou menor teor de melanina na pele humana.
É também racismo, por exemplo, o ódio ou desprezo por aqueles que professam crenças religiosas diferentes das nossas; que defendem ideias, posturas existenciais, preferências afetivas ou sexuais que não correspondam exatamente às nossas.
Do ponto de vista da espiritualidade o racismo é um tremendo equívoco.
Ele contraria preceitos fundamentais de qualquer religião verdadeira. A começar pela religião de Cristo: “ama ao próximo como a ti mesmo”.
A Sociedade Teosófica defende em primeiro lugar a ideia da fraternidade universal, sem distinção de credo, raça ou cor.
No entanto, quando se examina a história das religiões, o que mais se vê são episódios de racismo, radicalismo e intolerância fratricida.
Quase nenhuma Igreja escapa a esse estigma.
Quantos milhares, ao longo dos séculos, a Inquisição católica assou nas fogueiras, torturou até à morte nos calabouços, fez sucumbir sob as lanças e espadas dos cavaleiros da Cruzadas, sob o mero pretexto de “destruir os inimigos de Deus”?
Agiram da mesma forma diferente, em muitos momentos da história, os judeus seguidores de Jeová, e os muçulmanos seguidores de Maomé. E também os hindus de Rama e Krishna, os budistas de Buda, e os chineses taoistas de Lao Tsé.
Razão pela qual, desde sempre, os conflitos religiosos constituem uma das principais causas de guerras, mortandades e sofrimentos sem fim.
Não é igual a mim, deve ser destruído.
Na origem de toda essa discórdia, lá está, antecedendo a todos os argumentos de ordem territorial, política, econômica, militar, a grande patologia do medo daquilo que é diferente. “Não é igual a mim, é perigoso e deve ser destruído”, afirmam na sua loucura os racistas.Trazendo esse tema para bem perto, testemunhei há alguns anos um episódio exemplar de como o racismo patológico penetra no seio de movimentos religiosos travestido de ato de “purificação espiritual”.
Um exu ou uma pombagira, no panteão afro-brasileiro, representam, entre outras coisas, a liberdade, a sensualidade, a esperteza lícita, a rebeldia contra os preconceitos descabidos e contra os condicionamentos que oprimem o indivíduo e a sociedade; os caboclos representam a sabedoria, o discernimento, a capacidade de lutar por ideais justos, a defesa dos valores que elegemos para nós e nos quais acreditamos; e os pretos-velhos representam, antes de tudo, a raríssima capacidade do amor compassivo, a compaixão.
Por que, por quais motivos devem ser exorcizados todos esses valores? Resposta: por racismo.
Criança não tem preconceito
Racismo pela cor da alma
Essa igreja dos exorcismos certamente daria o seu aval a todos aqueles valores, e sem pestanejar os incluiria na categoria dos fundamentos superiores da espiritualidade.
Mas com uma condição: desde que eles viessem da Bíblia, ou da boca dos seus pastores, e nunca de outras fontes.
O recado que ela queria dar àqueles candidatos era portanto bem claro: seriam aceitos desde que renunciassem publicamente a tudo neles que cheirasse a negritude, tudo que tivesse sabor de índio, tudo que fosse diferente dos padrões eleitos pela igreja.
Racismo puro. Mas não racismo pela cor da pele, e sim pela cor da alma. Racismo cultural e religioso.
Mas há, felizmente, uma grande diferença entre religião e espiritualidade, e nunca será demais insistir nela.
Religiões são sistemas de crenças que vão se cristalizando no tempo e no espaço, até tornarem-se, via de regra, organismos duros e impermeáveis.
O movimento das religiões é em geral de tipo côncavo, voltado para si mesmo.
Como o ego neurótico que pouco a pouco perde o contato com o mundo exterior e que desenvolve uma fobia para com tudo aquilo que é diferente dele, a maioria das religiões acaba comprimida e limitada em si mesma, isolada de qualquer contexto maior.
Por isso precisa de dogmas, de postulados e fundamentos arbitrários, muitas vezes destituídos de qualquer lógica, para preservar o seu poder e a sua ortodoxia.
Para as religiões, racismos disfarçados constituem uma triste constante.
Espiritualidade é o contrário de tudo isso.
A verdadeira espiritualidade é aberta.
Seu movimento é de tipo convexo, heterodoxo, voltado para o mundo e para o cosmo.
Espiritualidade não é coisa do ego, e sim da alma.
Aquela parte de nós que, por estar mais perto do Self, não conhece barreiras nem limites, e está a um passo de Deus.
Espiritualidade é livre, e não precisa de nenhuma lógica para existir, porque ela é a própria lógica na acepção superior da palavra.
Suas crenças – se é que neste caso podemos usar o termo crença – são colhidas no vasto celeiro da Sabedoria Universal.
Aquele acervo infinito de valores que, por não pertencerem a ninguém, pertencem a todos.
E por isso podem ser encontradas na própria base da sabedoria de qualquer religião verdadeira, seja ela ocidental ou oriental, preta, branca, amarela, azul ou violeta.
A espiritualidade, como a mãe natureza e como a alma humana, também ama a diferença, pois sabe perfeitamente que Deus, a Unidade, manifesta-se no mundo através da diversidade.
E sabe que cada parte diversa que existe no mundo é uma parte de Deus.
Por isso, para a espiritualidade, qualquer
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