O nome de Maria Quitéria de Jesus (1792-1853) não pode faltar em nenhuma antologia que se propõe a resgatar grandes personagens femininos da História do Brasil
Reprodução/Foto-RN176 Maria Quitéria de Jesus foi uma combatente baiana da Guerra da Independência do Brasil
Maria Quitéria estava em casa, na fazenda Serra da Agulha, quando representantes do Conselho Interino da Província bateram à porta de seu pai, o fazendeiro Gonçalo Alves de Almeida, para recrutar soldados.
O viúvo explicou que não tinha filhos com idade para servir, nem enviaria escravos para o campo de batalha. E mais: ele próprio estava muito velho para lutar pela Independência do Brasil. Era setembro de 1822.
Assim que os emissários foram embora, sua filha pediu permissão para se alistar. “Mulheres fiam, tecem e bordam. Não vão à guerra”, resmungou o pai. Maria Quitéria não aceitou o ‘não’ como resposta. Correu até a casa da irmã, que lhe emprestou o uniforme do marido. A jovem, então, cortou o cabelo bem curto, vestiu a farda militar do cunhado e, sob a alcunha de ‘Soldado Medeiros’, foi se apresentar ao comando de Cachoeira.
O pai, ao notar o desaparecimento da filha, saiu à sua procura. Logo, a encontrou entre os oficiais da infantaria. Mesmo depois de ter seu disfarce revelado, não abandonou o Exército. Ela integrava o Batalhão dos Periquitos, apelido dado ao regimento que usava uniforme com verde e amarelo nos punhos e na gola. Entre outras proezas, a moça-cadete capturou prisioneiros entre as tropas portuguesas durante uma batalha em Itapuã.
“No dia 1º de abril de 1823, ao lado de outras mulheres, Maria Quitéria, com água quase até o pescoço, avançou em direção a uma barca portuguesa e impediu o desembarque dos que não reconheciam a Independência”, descreve o jornalista Eduardo Bueno, autor de Dicionário da Independência — 200 Anos em 200 Verbetes. “Dom Pedro I a condecorou com a insígnia de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro”.
Terminada a guerra, Maria Quitéria voltou para casa. Meses depois, se casou com o agricultor Gabriel Pereira de Brito, com quem teve uma filha, Luísa Maria da Conceição. Morreu em 1853, aos 61 anos, quase cega e sem dinheiro. Quanto ao seu pai, ele nunca a perdoou por tê-lo desobedecido.
Mulheres à frente de seu tempo
O nome de Maria Quitéria de Jesus (1792-1853) não pode faltar em nenhuma antologia que se propõe a resgatar grandes personagens femininos da História do Brasil. Como o recém-lançado Independência do Brasil — As Mulheres que Estavam Lá, organizado por Heloísa Starling e Antonia Pellegrino.
A obra apresenta a biografia de sete autênticas heroínas, como Hipólita Jacinta Teixeira de Melo (1748-1828), Bárbara de Alencar (1760-1832), Urânia Vanério (1811-1849), Maria Felipa de Oliveira (1800-1873), Maria Leopoldina (1797-1826) e Ana Lins (1764-1839), além de Maria Quitéria.
“As mulheres reunidas neste livro têm um traço em comum: elas assumiram protagonismo e decidiram agir politicamente em público, o espaço por excelência da política, um espaço rigorosamente proibido para uma mulher”, explica a historiadora e cientista política Heloísa Starling.
“Seja no Brasil, seja na Europa, as mulheres atuavam confinadas em casa. Podiam ganhar a vida com o próprio trabalho ou, então, sustentar maridos. Mas, de jeito nenhum, podiam reivindicar voz pública, visibilidade e participação política”.
Coordenadora do Projeto República, núcleo de pesquisa, documentação e memória do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Heloísa acrescenta que as sete personagens do livro levaram a sério um projeto de Independência para o Brasil. E viveram esse projeto de diferentes maneiras, partiram de patamares sociais desiguais e atuaram de forma diversa.
Algumas empunharam armas. Outras se engajaram no ativismo político. Outras, ainda, fizeram uso da palavra escrita no debate público. Mas, todas recusaram o lugar subalterno que lhes era reservado. “Até hoje, sabemos pouco ou quase nada sobre a história dessas mulheres e o modo como se posicionaram na cena pública brasileira durante a Independência. Seu protagonismo continua ignorado.
A vedação ao acesso da mulher ao mundo público foi de tal forma enraizada na sociedade que se mantém no centro da desigualdade de gênero até hoje. Para as mulheres brasileiras, a fronteira da política foi e continua sendo a mais difícil de transpor”.
Uma mulher entre os inconfidentes
Além de organizar a obra, Heloísa Starling assina o capítulo dedicado à mineira Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, a única mulher a participar da Conjuração Mineira, em 1789, um dos principais movimentos separatistas do Brasil Colônia, que abre a antologia.
Filha de um rico casal de portugueses, Hipólita se casou tarde, por volta dos 33 anos, com o coronel Francisco de Oliveira Lopes, amigo do alferes Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), o Tiradentes. “Pouco se sabe sobre essa mulher, mas uma coisa salta aos olhos: era destemida. Quando a notícia da prisão de Tiradentes chegou à fazenda da Ponta do Morro, na noite de 20 de maio de 1789, Hipólita decidiu, sozinha, levar a revolta adiante. Tudo indica que partiu dela a ordem de dar início ao levante militar”, afirma Heloísa Starling.
Hipólita escreveu cartas para o marido e demais inconfidentes, relatando a prisão de Tiradentes e denunciando a traição de Joaquim Silvério dos Reis (1756-1819). Pedia a todos que tomassem cuidado e lembrava a eles que estavam lutando por algo maior. “Quem não é capaz para as coisas, não se meta nelas”, dizia a carta. “Mais vale morrer com honra do que viver com desonra”.
Em 19 de abril de 1792, seu marido foi condenado ao exílio na África, onde morreu. Hipólita, então, teve seus bens confiscados. No entanto, argumentou que boa parte de seu patrimônio tinha sido herança paterna. Ao fim de uma longa batalha, que durou até 1795, conseguiu reaver sua fortuna.
“Ao se colocar como exímia negociadora e competente administradora, Hipólita rompeu com a imagem de mulher submissa”, afirma a jornalista Duda Porto de Souza, coautora de Extraordinárias — Mulheres Que Revolucionaram o Brasil. “Por um lado, Hipólita se mostrou implacável na defesa de seu patrimônio. Por outro, se revelou generosa ao distribuir parte dele entre os mais pobres da região”.
As sentinelas da Ilha de Itaparica
Duas das heroínas do livro lideraram revoltas populares: Maria Felipa de Oliveira, na Ilha de Itaparica, na Bahia, e Bárbara de Alencar, em Crato, no Ceará. “Não se sabe ao certo se Maria Felipa de Oliveira, negra da ilha de Itaparica, era escrava, se foi alforriada ou se nasceu livre”, observa a jornalista Aryane Cararo, coautora de Extraordinárias. “Como se voluntariou para lutar contra os portugueses, a opção mais provável é a última”.
Reprodução/Foto-RN176 Filomena Modesto Comandou mulheres que conseguiram expulsar tropas portuguesas da Ilha de Itaparica/Arquivo Público do Estado BahiaMaria Felipa combateu marinheiros portugueses e incendiou navios
Maria Felipa era marisqueira (vendedora de frutos do mar) e liderou as Vedetas da Praia. Armadas de facas, arpões e peixeiras, emboscavam os soldados da Coroa que mal atracavam nas imediações da Ilha de Itaparica. Às vezes, surravam os portugueses com galhos de cansanção, arbusto espinhoso que provoca úlcera e coceira. Outras, ateavam fogo em suas embarcações com tochas feitas de palha de coco e chumbo.
“Embora suas habilidades como guerreira sejam cantadas em prosa e verso, é necessário destacar seus predicados como comerciante e navegadora numa guerra em que as questões ligadas ao abastecimento de comida foram determinantes para os portugueses abandonarem a derradeira batalha de 2 de julho de 1823, em Salvador, escapando pelo mar. Eles não tinham mais o que comer”, revela a escritora Cidinha da Silva. “Segundo registros históricos, morreram mais soldados vitimados pela fome e por doenças do que por balas”.
Violência política de gênero
Filha de mãe indígena e pai português, Bárbara de Alencar tinha 57 anos quando, em maio de 1817, conduziu a multidão da cidade de Crato, a 508 km de Fortaleza, até a Câmara Municipal. Acompanhada de seus filhos, familiares e outros combatentes, todos homens, retirou a bandeira da Coroa Portuguesa e hasteou outra, branca, símbolo dos republicanos, em seu lugar. Não satisfeita, ainda destituiu seus membros e nomeou novos representantes que aboliram impostos, soltaram presos e confiscaram armas e bens dos portugueses.
Acusada de traição, rebeldia e resistência à prisão, Bárbara foi mandada para a Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção, na capital cearense. De lá, foi transferida para prisões no Recife e em Salvador. Foi solta, quatro anos depois, em 17 de novembro de 1821, graças a um decreto de Dom João 6º que anistiou presos políticos.
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