Entre a luz do Iluminismo e as sombras do autoritarismo, a Maçonaria brasileira enfrenta o desafio de reencontrar sua missão libertadora e humanista.
A Maçonaria, desde sua origem moderna no Iluminismo europeu, apresenta-se como uma ordem iniciática dedicada à liberdade de pensamento, à fraternidade entre os povos e ao progresso da humanidade.
No entanto, o percurso da Maçonaria brasileira revela uma história marcada por ambivalências: de um lado, sua contribuição decisiva para a Independência, a República e a abolição; de outro, o silêncio, a omissão, e por vezes o apoio direto, a regimes autoritários e antidemocráticos.
Este artigo propõe uma crítica histórica e filosófica à trajetória recente da Maçonaria no Brasil, sobretudo diante do obscurantismo que se alastrou durante o governo Bolsonaro.
Sob uma perspectiva humanista, existencialista e libertadora, busca-se evidenciar os paradoxos que envolvem a ordem no Brasil e propor caminhos para a sua reaproximação com os ideais progressistas que a fundaram.
A gênese revolucionária da Maçonaria e o mito da neutralidade - A Maçonaria não nasceu para ser neutra. Seu surgimento moderno está diretamente ligado às lutas contra o absolutismo, contra o dogmatismo religioso e em defesa da razão, da ciência, da igualdade civil e da liberdade dos povos.
No Brasil, figuras como Luiz Gama, José Bonifácio, Gonçalves Ledo, Rui Barbosa, Castro Alves, Antônio Carlos Gomes (Carlos Gomes) e Benjamin Constant, dentre inúmeros outros, foram protagonistas de movimentos emancipatórios que moldaram a identidade nacional.
Entre esses nomes, Luiz Gama se destaca como um dos maiores símbolos da luta pela justiça. Nascido livre, mas vendido como escravizado, Gama conseguiu sua própria alforria e se tornou advogado autodidata, libertando centenas de pessoas escravizadas por meio de sua atuação jurídica. Como maçom, ele reforçou os princípios de liberdade e igualdade, tornando-se um dos maiores abolicionistas do país.
Negar esse legado ou reduzi-lo a uma tradição meramente protocolar, como frequentemente ocorre nas Lojas hoje, é trair o próprio espírito da Maçonaria.
O lema “levantar templos à virtude e cavar masmorras aos vícios” deveria ser um chamado à ação, e não apenas uma frase decorativa em rituais.
Entretanto, o que se observa em muitos quadros da Maçonaria brasileira contemporânea é o oposto: uma aversão ao debate político, um apego servil ao status quo e uma complacência perigosa com figuras que representam tudo o que a Maçonaria historicamente combateu, o obscurantismo, o autoritarismo e a ignorância.
O bolsonarismo como ponto de inflexão moral
O apoio explícito ou velado de diversos maçons ao projeto político de Jair Bolsonaro representa um dos capítulos mais obscuros e ideologicamente distorcidos da história recente da Maçonaria brasileira.
A adesão de membros da ordem, ainda que não institucional, a um governo que subverteu princípios fundamentais da razão e do progresso, promovendo o negacionismo científico, o terraplanismo, o revisionismo histórico, o ataque sistemático às instituições democráticas e a apologia da ditadura militar, expõe uma crise mais profunda: a erosão do horizonte ético e humanista que deveria nortear a Maçonaria como um instrumento de transformação social.
Esse alinhamento com forças que representam o retrocesso não apenas contradiz os valores de liberdade, igualdade e fraternidade, mas também coloca em xeque o papel da ordem como guardiã da razão e da justiça.
Durante o bolsonarismo, assistimos à banalização do mal institucionalizado: ataques à educação, incentivo à violência policial, racismo estrutural naturalizado, LGBTfobia legitimada por discursos oficiais, devastação ambiental em nome do lucro.
O que fez a Maçonaria?
Em muitos casos, silenciou.
Em outros, coadunou-se.
Em quase nenhum, resistiu.
Essa omissão não é neutra.
É cúmplice.
A Maçonaria, quando fiel aos seus princípios, deveria ser um instrumento de transformação e progresso.
Seus membros progressistas sempre estiveram na vanguarda das lutas por direitos e pela construção de uma sociedade mais justa.
No entanto, ao longo do século XX e XXI, a ordem passou por momentos de maior conservadorismo, refletindo as mudanças políticas do país.
Ainda assim, há grupos dentro da Maçonaria que continuam a defender valores progressistas, reafirmando seu compromisso com a liberdade e a justiça social.
O paradoxo histórico: glorificar Dom Pedro I e esquecer o povo
Como explicar que uma instituição que foi perseguida por Dom Pedro I e colocada na ilegalidade hoje o exalte como um “maçom notável”?
Como conciliar a exaltação à monarquia com o papel protagonista da Maçonaria na Proclamação da República?
Como defender causas humanísticas e, ao mesmo tempo, apoiar regimes autoritários que perseguem, torturam, matam e escravizam?
Essas contradições são sintomas de um revisionismo acrítico, onde símbolos substituem a reflexão e rituais se esvaziam de sentido histórico.
Dom Pedro I não foi um campeão da liberdade.
Seu governo foi marcado por decisões autoritárias que restringiram direitos e reprimiram opositores.
Seu ingresso na Maçonaria, em 1822, foi estratégico, utilizado como ferramenta política para consolidar a independência do Brasil.
No entanto, após assumir o trono, ele rapidamente rompeu com a ordem, dissolvendo a Assembleia Constituinte de 1823, impondo uma Constituição autoritária e perseguindo maçons, fechando lojas maçônicas e lançando a instituição na ilegalidade.
A tentativa de mitificá-lo dentro da Maçonaria revela um esvaziamento crítico que deve ser urgentemente combatido.
A ordem, que historicamente se posicionou contra o absolutismo e pela liberdade, não pode se tornar cúmplice de narrativas que distorcem sua própria história.
A verdadeira Maçonaria deve resgatar seu papel como instrumento de transformação social, reafirmando seu compromisso com a justiça e a democracia.
A verdadeira herança maçônica está nos movimentos abolicionistas, nos republicanos de 1889, nos que lutaram contra o Estado Novo, nos que resistiram à Ditadura Militar, e não nos que bajularam o trono ou se calaram diante da repressão.
O silêncio da Maçonaria durante a ditadura militar e o golpe de 1964
A Maçonaria brasileira já demonstrou, por diversas vezes, sua capacidade de resistência. No entanto, durante a Ditadura Militar, novamente setores da ordem se aliaram ao poder autoritário, abandonando qualquer compromisso com a liberdade, a justiça e a dignidade humana.
Em nome de uma pretensa estabilidade institucional, muitos maçons tornaram-se cúmplices de torturas, perseguições, desaparecimentos e censura. Não há como relativizar isso: foi traição aos princípios da ordem.
O mesmo se repetiu, em menor escala, durante o governo Bolsonaro, onde parte da Maçonaria demonstrou mais preocupação com protocolos e formalidades do que com a barbárie política e ética que se instalava no país.
A crise contemporânea: ignorância, apatia e elitismo
A Maçonaria, que um dia formava pensadores, educadores, juristas, poetas, médicos e líderes revolucionários, hoje abriga, com honrosas exceções, homens que se orgulham de não ler, que se limitam a repetir jargões ritualísticos, que não compreendem a história nem da própria instituição à qual pertencem. Trata-se de um emburrecimento institucionalizado.
Essa degradação intelectual reflete uma Maçonaria que, em muitos de seus círculos, abandonou sua vocação histórica de transformação social para se tornar um espaço de vaidade e status, mais preocupado com títulos e formalidades do que com a elevação moral e a luta por justiça. O que deveria ser um instrumento de progresso e emancipação se converte, em diversas instâncias, em um reduto de alienação, onde o compromisso com a liberdade e a igualdade dá lugar ao conformismo e à complacência com estruturas opressivas.
Esta Maçonaria contemporânea, salvo raras exceções, resiste ao progresso, teme a justiça social e se distancia das causas populares, tornando-se um espaço de acomodação e indiferença.
Em vez de se posicionar ao lado dos menos favorecidos, demonstra desconfiança em relação aos movimentos sociais, silencia-se diante do extermínio da juventude negra, ignora a precarização do trabalho, negligencia a degradação ambiental e se esquiva do enfrentamento à corrupção sistêmica.
Seu discurso, frequentemente revestido de um falso moralismo, apenas reforça privilégios e perpetua a retórica de uma elite avarenta e intelectualmente desonesta.
O que poderia ser um agente de transformação e um espaço de reflexão crítica muitas vezes se converte em cúmplice da estagnação, legitimando desigualdades e fortalecendo estruturas de dominação.
Para honrar sua essência, a Maçonaria deve resgatar seu papel histórico, promovendo mudanças reais e reafirmando seu compromisso com a justiça, a liberdade e a dignidade humana.
A verdadeira Maçonaria, aquela que se alinha aos princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, não pode se furtar ao seu papel histórico.
Não há neutralidade diante da injustiça.
O silêncio é conivência.
A omissão é cumplicidade.
E a recusa em enfrentar essas questões é a prova definitiva de que, para muitos, a Maçonaria deixou de ser um instrumento de transformação para se tornar apenas um símbolo esvaziado de significado.
Não há Maçonaria autêntica sem luta social.
Caminhos de reconstrução: do templo simbólico ao templo político e ético
Se a Maçonaria quiser sobreviver como instituição relevante no século XXI, precisará revolucionar-se a partir de dentro.
Abaixo, propomos alguns caminhos concretos:
- Educação política maçônica: Instituir estudos obrigatórios sobre democracia, direitos humanos, história dos movimentos sociais e filosofia crítica. A Maçonaria precisa formar militantes da liberdade, não apenas ritualistas.
- Resgate do papel social: Retomar a participação ativa em movimentos pela justiça social, contra o racismo, a homofobia, o machismo e todas as formas de opressão. Isso é coerente com o lema “tornar feliz a humanidade”.
- Rompimento com figuras autoritárias: Estabelecer, oficialmente, a incompatibilidade entre valores maçônicos e o apoio a figuras ou regimes que preguem o autoritarismo, o sectarismo, a intolerância, o extremismo, a violência e sobretudo a exclusão social.
- Aliança com forças progressistas: A Maçonaria deve dialogar com os setores da sociedade que lutam pela transformação social, não contra eles. Isso inclui os sindicatos, os movimentos populares e os defensores dos direitos humanos.
- Revisão histórica crítica: Reavaliar oficialmente a postura da ordem frente a momentos históricos em que se omitiu ou se alinhou ao autoritarismo. Isso inclui um pedido público de desculpas pela postura de setores da Maçonaria durante a Ditadura Militar.
“Tornar feliz a humanidade”, uma urgência e não um mero símbolo
A Maçonaria brasileira encontra-se diante de uma encruzilhada histórica. Ou reafirma com coragem seus princípios fundadores, liberdade, igualdade, fraternidade, laicismo, autodeterminação e justiça, ou se condenará à irrelevância, tornando-se apenas uma instituição medíocre, anacrônica e vazia, uma verdadeira sombra do que um dia foi, um espaço esvaziado de significado, onde rituais se repetem mecanicamente e palavras antes carregadas de propósito se transformam em meros formalismos.
Se os maçons brasileiros abdicarem de seu papel na transformação social, se continuarem a se esquivar dos desafios contemporâneos e a se acomodar na nostalgia de um passado idealizado, estarão fadados a se tornar um museu de homens envelhecidos, presos a um discurso que já não compreendem e incapazes de enxergar a urgência das lutas que se desenrolam ao seu redor.
Resgatar o projeto maçônico como força transformadora é possível, mas exige muito mais do que belas palavras e paramentos.
Será necessário romper com a complacência, sujar os pés na lama, descer aos infernos dos tormentos sociais, encarar objetivamente a realidade, enfrentar os próprios fantasmas, desafiar o elitismo reacionário e, acima de tudo, reencontrar o povo.
Sem esse compromisso genuíno com a justiça e a equidade, a Maçonaria corre o risco de se tornar apenas um símbolo esvaziado de significado, distante das verdadeiras batalhas que definem o presente e moldam o futuro.
A essência revolucionária da Maçonaria e o imperativo da coerência histórica No âmago da tradição maçônica repousa uma máxima que transcende a mera liturgia: “tornar feliz a humanidade”.
Esse princípio, mais do que um lema ou um ritual simbólico, deve ser compreendido como o verdadeiro norte da ordem, uma missão ética e política que desafia seus membros a transformar a realidade social a partir do compromisso com a justiça, a liberdade e a fraternidade.
Quando essa máxima é reduzida a uma formalidade vazia, a Maçonaria perde sua razão de ser.
Tornar feliz a humanidade não significa apenas desejar um mundo melhor em abstração, mas implica em ações concretas que questionem as estruturas opressoras, desconstruam as desigualdades e ampliem as possibilidades de emancipação para todos os seres humanos.
É um chamado para que a ordem assuma seu papel histórico como agente de mudança, enfrentando os poderes que limitam o desenvolvimento humano e a dignidade.
Este é um desafio radical e revolucionário.
Pois, no mundo contemporâneo, marcado por crises econômicas, sociais, ambientais e políticas, a felicidade coletiva depende diretamente da superação dos sistemas de exploração e dominação.
Requer coragem para romper com o conservadorismo, para abrir diálogo com os movimentos populares e para transformar as práticas internas, muitas vezes marcadas por elitismo e apatia.
A verdadeira revolução maçônica, portanto, é uma revolução ética e social.
Ela exige que cada maçom encarne essa missão em sua vida pública e privada, promovendo a inclusão, a solidariedade e o pensamento crítico. Somente assim será possível que a ordem recupere seu prestígio histórico e cumpra o propósito para o qual foi criada.
E, neste percurso, a história será implacável.
Ela não esquece nem perdoa contradições, silêncios cúmplices ou desvios ideológicos.
A coerência entre discurso e prática é o que define a autenticidade de uma instituição que pretende se manter viva e relevante.
Assim, a Maçonaria brasileira está convocada a não apenas reiterar suas palavras, mas a transformar suas ações, mostrando ao mundo que seu compromisso com a felicidade da humanidade é, de fato, revolucionário e que, no tribunal da história, saberá responder com integridade e coragem.
“Tornar feliz a humanidade” não é apenas um ideal ritualístico. É uma tarefa revolucionária.
E a história, como sempre, cobrará coerência.
Ivan Souza Rios é Mestre Maçom, iniciado na Maçonaria em 20/11/2010, membro da Loja Maçônica Fraternidade São Felipense nº 232 da GLEB (Grande Loja Maçônica do Estado da Bahia).
(Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do BLOG)
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