Maçonaria & Política

 

Após a introdução das noções básicas sobre República, Democracia e Federação (PINHEIRO 2022a; b; c), bem como de algumas das interfaces que as aproximam, revela-se oportuno reflectir sobre o liame que efectivamente as vincula: a questão da representação. 

O nexo, sobretudo entre as duas primeiras (República e Democracia) já fora estabelecido, entre outras, na célebre manifestação de A. Lincoln, citado por Goulart (1995, p. 45): “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”, conforme visto, expressão que praticamente se confunde com o entendimento do que seja a República. A propósito, quase dois séculos antes, Montesquieu [1] (2000, p.45) já havia registrado que:

Quando, numa república, o povo como um todo possui o poder soberano, trata-se de uma Democracia. Quando o poder soberano está nas mãos de uma parte do povo, trata-se de uma Aristocracia. O povo, na democracia, é, sob alguns aspectos, o monarca; sob outros, o súbdito. (DESTAQUE NO ORIGINAL)

Preliminarmente, ambas as citações, tanto a de Lincoln quanto a de Montesquieu, mas sobretudo quando apreciadas conjuntamente, deveriam suscitar profundos questionamentos quando os olhos se voltam para a realidade brasileira, onde a Democracia parece estar, e cada vez mais, confinada ao mero atendimento (obrigatório!) ao chamado do calendário eleitoral, quando o povo, não sem antes ter enaltecido o seu orgulho (mediante campanhas oficiais na grande mídia), é então chamado, ressalta-se,  à responsabilidade. Todavia, passado esse momento, o eleitor se vê órfão e tolhido de instrumentos que tempestivamente (na Legislatura) assegurem a eficácia e a efectividade do voto atribuído àqueles que julga como seus representantes nos Executivos e nos Legislativos; tudo se passa, então, como se não houvesse comprometimento destes com aquele, o que remete a outra frase igualmente célebre: “O homem nasce livre, e por toda a parte encontra-se a ferros”, palavras vigorosas e com as quais Rousseau (2000, p. 53) iniciou o célebre “Do Contrato Social” [2], seguidas de outras tão contundentes quanto as primeiras: “Já disse, porém, que não há, de modo algum, uma verdadeira democracia” (op. cit., p. 209).

Atualizando os termos, somente no instante do voto o homem é verdadeiramente livre como quando no estado da natureza; passado este átimo volta a estar preso às amarras do Contrato Social – instituições, leis, regulamentos, regramentos, procedimentos, deveres e obrigações, etc. – onde, senão tudo, quase tudo se conforma não para assegurar a Democracia, mas antes a Aristocracia, podendo-se mesmo falar em Monarquia, pois são inúmeros os casos de efectivas dinastias que se perpetuam (ainda que pelo voto) nas instâncias dos Poderes, como se estas fossem transmitidas e asseguradas por hereditariedade consanguínea ou afinidade (contratual) familiar – o Senado Brasileiro é repleto de exemplos.

(Não restam dúvidas que historicamente o sistema eleitoral tem sido aperfeiçoado no sentido a assegurar a liberdade, a independência e o sigilo da manifestação do eleitor; todavia, ainda que antigo o tema revela-se inconcluso e controverso. Estudiosos alertam sobre a actualidade de subtis e sofisticados mecanismos e sistemas de direccionamento da vontade do eleitor operados (por grupos de interesses) a partir da desinformação, da informação parcial ou distorcida (SELDON, 2000), da construção de narrativas aparentemente lógicas porém distantes da realidade efectiva. Comumente apelam à dimensão psíquica e emocional, o que afasta as pessoas (os eleitores) da reflexão crítica-racional e, com apego e ênfase desmedidas aos detalhes de somenos importância desviam a atenção do que é essencial e relevante. Estas, entre outras tantas estratégias, ao fim e ao cabo comprometem a liberdade que deve ancorar, pela via do voto, a escolha consciente tanto dos representantes quanto quando frente a outras demandas – plebiscitos e referendos [3]. Trata-se, por analogia, da versão moderna dos Prisioneiros da Caverna (PLATÃO [4], 2000), que tinham como real o mundo apreendido pelas sombras – produtos das manipulações passageiras e operadas por terceiros; ou ainda pior: enquanto aqueles eram prisioneiros da ignorância inadvertida, actualmente o estado de desinformação e ignorância é produto de um planeamento implementado por grupos de interesse. Um aprofundamento sobre o tema pode ser visto em Noelle-Neumann (2017) e Derosa (2017), este último com exemplos e episódios referentes à realidade brasileira. Poderia ainda acrescentar, como factor de eventual comprometimento à liberdade da manifestação do eleitor, “o caso da urna electrónica”, mas este será tema outro texto mais específico.)

Em síntese, a manifestação mediante o voto “livre” é exaltada como sendo a expressão máxima e mesmo como “prova material” (actualmente, no Brasil, talvez mais propriamente virtual) da condição democrática-republicana de um Estado-Nação; todavia, conforme o dito popular, “o diabo mora nos detalhes” [5] que, neste caso, pode ser identificado como “o problema da representação”. E por mais estranho que à primeira vista possa parecer, o problema remete à seguinte pergunta: afinal, quem o representante representa? Pois se não é claro quem é o representado, tampouco serão os compromissos do representante para com ele, o que levanta outro questionamento: qual é, então, o sentido e a razão de ser do voto?  E é em busca à resposta (ou às respostas) a esses questionamentos que este primeiro texto sobre representação se desenvolve.

O voto, conforme a perspectiva, pode ser o início ou o fim de um longo ciclo (estabelecido pela regularidade das eleições) na relação cidadão vs. governo e que passa pela escolha dos representantes, o acompanhamento da actuação destes, a prestação de contas e informações em geral, a condição de afastamento, punição ou mesmo recompensa como é o caso da recondução dos representantes ao cargo. Assim, em meio às demais outras indagações também se colocam: como operacionalizar a participação do povo no Governo do Estado? 

Uma vez assegurada a participação indirecta (pela via da representação) de acordo com o regramento estabelecido, de imediato outra sucede: como assegurar que os titulares (representantes) escolhidos agirão de modo congruente às expectativas dos representados ou, em outros termos, “farão o governo para o povo”? São vários pois, os questionamentos que inspiram este texto.

Maçonaria e representação

Antes de adentrar especificamente na questão da representação do povo (cidadãos) nas instâncias (governo) do Estado, algumas breves considerações sobre o tema no contexto da Maçonaria.

(Por oportuno, reitera-se uma premissa subjacente a todos os textos desta série (Maçonaria & Política): o ambiente da Fraternidade é, também, um microcosmo do “mundo profano” (com todos os seus vícios, virtudes e vicissitudes); assim, o estudo, a análise, as considerações e mesmo as inferências promovidas num domínio, mutatis mutandis, se aplicam ao outro e vice-versa. Realizar esse exercício pode ser deveras enriquecedor independentemente do Grau e do ponto de partida – da perspectiva do observador.)

São inúmeros os momentos em que a questão da representação se coloca para o Maçom, a maioria dos quais os Irmãos sequer se dão conta, como é o caso, por exemplo, de quando em visita às Lojas. Não é habitual solicitar a palavra para transmitir o tríplice e fraternal abraço do Venerável Mestre, bem como em nome da sua Loja convidar os anfitriões para visitá-la? Ora, trata-se ou não de um caso de representação? E em caso afirmativo haveria um modo mais adequado ou mesmo apropriado de conduta sabendo-se um representante?

Por vezes o carácter representativo está associado a uma instância superior à Loja, como é o caso das Potências, verificando-se aqui uma situação que é tanto inversa quanto controversa: quando da proibição de visita às Lojas da(s) Potência(s) com a(s) qual(ais) a Potência que jurisdiciona a sua Loja não mantém relacionamento, não a reconhece. Nesse caso a visita, numa criativa extensão semântica-conceitual, adquire carácter representativo da Potência, sendo pois proibida e mesma sujeita a sanções. Motivos sobre os quais ora não cabe abrir discussão, mas que podem ser vistos em Ismail (2021), em diferentes momentos e locais no Brasil (e também no exterior) levaram à proibição da intervisitação, o que, não sem constrangimentos, levou ao afastamento dos Irmãos de uma Ordem que, por outro lado, se apresenta como universal. Assim, é possível que uma iniciativa individual inadvertidamente adquira carácter representativo. É melhor, pois, conhecer as regras do sistema.

O Venerável é o representante natural da Loja, e embora a Maçonaria sob certa perspectiva seja única, existem especificidades (de Rito, perfil dos Irmãos, Oriente, localização, condições e necessidades da Loja, etc.) que cabem a ele, quando oportuno e necessário, ser levadas a quem de direito (hierarquia, fóruns, assembleias, etc.) a fim de que sejam tempestivamente consideradas ante às decisões que a todos afectarão. Poucos Irmãos sabem, por falta de interesse ou porque não são (quando deveriam ser) informados, de que as Luzes da Loja e os cargos auxiliares, eleitos pelo voto ou aclamação, de regra também respondem pela Associação (a pessoa jurídica) que representa o outro lado moeda, por isso não se confunde com a primeira (a Loja) afecta exclusivamente às questões do simbolismo, mas que juntas (Loja e Associação) compõem uma só unidade; vide, por exemplo, Pinheiro (2020). Eventualmente, essa falta de atenção aos seus então representantes e administradores da pessoa jurídica pode trazer dissabores ao Quadro da Loja independentemente do Grau ou dignidade, eis que todos são igualmente associados e compartilham das responsabilidades decorrentes do atendimento ou não às exigências que recaem sobre a Associação.

No plano mais amplo, é importante lembrar que cada Irmão, por suas atitudes e comportamentos e em qualquer ambiente é um representante natural da Ordem, sendo as suas acções ou omissões, excessos ou comedimentos, estendidos (devida ou indevidamente) à Maçonaria em geral.

Todavia, os exemplos mais comuns e que de imediato vêm à mente dos que se prestam a reflectir sobre o tema são os da representação por delegação específica, quando um a Irmão isoladamente ou em Comissão são delegados poderes para manifestação sobre tal e qual matéria, com limites, condicionamentos ou mesmo ampla e irrestrita liberdade. É o caso, por exemplo, de matérias (orçamentárias, mudanças na legislação, etc.) anunciadas no acto convocatório (a exemplo de uma Assembleia) de representantes sobre as quais pode (ou não) haver prévio debate interno (de todo o Quadro) para estabelecer o posicionamento da Loja: a favor, contra, com condicionamentos, sugestões, etc.

Os casos acima revelam que a questão da representação, individual ou colectiva, por delegação específica ou com amplos graus de liberdade, também se apresenta no seio da Ordem em geral e de cada Loja em particular ainda que no dia a dia nem todos se apercebam. Pensar a representação (processo de escolha, candidaturas, exigências, procedimentos, expectativas, etc.) no âmbito das Lojas ajuda a reflectir sobre a realidade quotidiana no “mundo profano”, inclusive os seus eventuais desdobramentos (problemas); por exemplo: nas Lojas que elegem o Venerável Mestre a partir da eleição de chapas [6], se no primeiro momento o eleito representa os seus eleitores (e dos quais recebeu votos e espera cobranças), no momento subsequente passa a ser representante de todo Quadro da Loja, ou seja, também daqueles dos quais não recebeu o voto, o que, por não ser claro para todos, pode vir a ser foco de tensões internas … tal qual como no “mundo profano”.

Representação – considerações preliminares

Conforme já foi dado a perceber na seção anterior, o estudo do problema da representação admite diversos recortes analíticos e que na sequência serão ampliados: representante vs. representado; representante com delegação específica vs. com “carta branca – por vezes um cheque”; análise das estruturas (canais) de representação (a ex. das Comissões, dos elementos do Sistema Político-Partidário, do Sistema Eleitoral, do Aparelho do Estado em geral); análise da funcionalidade e efectividade da representação, etc.

Assim, como já alertado nos textos anteriores, neste caso também é impossível cobrir a contento todos os desdobramentos que o tema comporta, razão pela qual os recortes aqui e ali se combinam sem aprofundamento (pretende-se, antes, despertar a curiosidade para estudos complementares), e também porque o texto tem por objectivo antes de tudo chamar a atenção do leitor/eleitor para a seguinte realidade: no que tange à representação nós vivemos uma efectiva ficção.

Há inúmeros problemas estruturais e funcionais (alguns serão apresentados) que, ao encontro da citação de Rousseau (“Já disse, porém, que não há, de modo algum, uma verdadeira democracia”), são determinantes para que a realidade esteja muito mais próxima do célebre “não me representa” do que da representação efectiva, embora esta não só ocupe o imaginário colectivo como seja largamente explorada pelo establishment político em geral e governamental em particular, notadamente no período pré-eleitoral. Quanto ao juízo de valor acerca dessa exploração, é tema de estudos permanente e ampla discussão, pois alega-se que em razão da natureza humana essa ficção é necessária à estabilidade política, à organização em geral e à paz social, inexistindo mecanismo melhor ou pelo menos isento de problemas que a substitua. Note-se, e não é por acaso, que a “questão da representação”, feitos os devidos ajustes, carrega o mesmo juízo de valor que W. Churchill, apud Pinheiro (2022b), atribuiu à Democracia: “a democracia é a pior forma de governo, à excepção de todas as demais formas que têm sido experimentadas ao longo da história”. É importante observar que o reconhecimento do seu carácter ficcional não implica que a sua justificação se dê a partir de informações falsas e narrativas distorcidas da realidade.

O fato é que a vida em sociedade não pode prescindir de algum modelo de representação, senão por motivos psicológicos [7] por razões meramente funcionais, posto que é impossível contar com a participação directa de todos os interessados e em todos os momentos nos quais quotidianamente são debatidos os mais diversos temas de interesse, a saber: a agenda de valores ((des)sacralização da cultura, novas configurações familiares, eutanásia, aborto, maioridade penal, sistemas de valorização, recompensa e punição, etc.), a agenda económica (maior/menor “abertura da economia”, privatização vs. estatização, etc.), a geopolítica internacional (alinhamento (in)condicional com determinados Estados e ideologias), entre tantos outros. 

Portanto, dada a infinidade de temas, e no âmbito de cada tema a diversidade de possibilidades, é praticamente impossível encontrar alguém ou algum instituto de representação (a exemplo dos Partidos Políticos ou de uma Escola de Pensamento) que represente 100% as opiniões e os posicionamentos de cada actor (cidadão, eleitor, grupos de interesse) participante do processo.

Destarte, para evitar frustrações, mas também para não ser inocente útil e instrumentalizado por sofistas e demagogos, é preciso ter claro, como ponto de partida, que os esforços historicamente têm sido no sentido a, senão a superar os entraves da representação, a mitigar os efeitos deletérios do modelo vigente, sem ainda desconsiderar que a realidade varia no tempo (o que “ontem” era bom, funcionou, “hoje” pode não funcionar) e no espaço (o que se aplica a uma realidade cultural não necessariamente se aplica a outra). Nesse contexto, não só é fácil apontar os problemas e as limitações (o que leva ao paradoxo [8] de que “todos têm razão mesmo quando defendem opiniões opostas”), como a busca pelos aprimoramentos se impõe como objectivo permanente.

Representação – a origem do problema e as primeiras soluções

O problema da representação surge a partir do momento em que homem não pode se fazer presente em todas as discussões e tomadas de decisão sobre as matérias do seu interesse.

Como sempre, é possível retroagir até as origens da História e encontrar elementos pertinentes ao tema e que ainda hoje perduram. Nas sociedades patriarcais os homens chefes-de-família eram os representantes naturais (perante às demais famílias e clãs) dos interesses dos seus familiares, cabendo o mesmo papel às mulheres nas sociedades matriarcais. 

O ambiente e o modo de vida (se predominantemente caçadores, colectores, sedentários agrícolas, se em presença de inimigos, conforme o modelo de organização familiar, etc.) em grande medida contribuíram para o estabelecimento dos atributos (força, velocidade, sagacidade, fertilidade, etc.) que as lideranças representativas deveriam reunir; houve momentos em que senioridade (eis que a idade mais avançada sugere experiência e maior sabedoria) teve peso na escolha dos representantes. 

Creio que todos têm ainda na lembrança as velhas lições que davam conta dos Conselhos dos Anciões na Grécia e Roma antigas – precursores do Senado contemporâneo. 

E não faltou quem, no curso da Revolução Agrícola, de algum modo tivesse estabelecido interlocução como o Mundo dos Mistérios e que desde então atribua a si a prerrogativa de representante e intérprete daquele que definia a ordem natural (secas, enchentes, etc.) que afectava a vida de todos – é quando então surgem as oferendas e as festividades, ora em súplica, ora em agradecimento às divindades. 

A Bíblia é repleta de exemplos de escolha de representantes uma vez que as organizações a partir de certo estágio de crescimento e desenvolvimento experimentam um processo natural de departamentalização.

Todavia, as referências mais citadas e conhecidas são as eclésias (assembleias do povo) que ocorriam nas ágoras (lugares, a exemplo de praças), palcos, na Antiga Grécia, dos debates sobre as matérias da esfera pública, portanto do interesse da polis. Foi a época da democracia directa e participativa – a Democracia dos Antigos. 

O crescimento das cidades e das populações, assim como a diversidade dos temas de interesse vis-à-vis às crescentes necessidades individuais (trabalho, família, estudo, repouso, lazer, etc.) surgem como entraves naturais à participação directa e continuada nos debates da res publica (interesses da colectividade), o que remete ao imperativo da escolha de representantes.

Às primeiras representações eram conferidos poderes limitados: aos representantes era dado participar do processo de decisão sobre tais e quais assuntos e nos estritos limites estabelecidos por aqueles [9] que outorgaram a delegação. 

Este modelo, se por um lado assegura efectividade e permite maior controle dos representados sobre o representante, por outro apresenta grandes limitações, a começar pela frequência com que a necessidade de representação se apresenta, pois cada tema/evento exigirá prévia reunião para deliberar os termos da representação. 

O leitor que acompanhou o debate em Pinheiro (2022a) observa paralelos entre os impasses que levaram à migração do arranjo Confederado ao Federado e os que ora se colocam à representação por delegação. 

Há ainda outros entraves: nem sempre o representante disponível possui o domínio técnico necessário à apreciação da matéria em lide; contratar sucessivos e diferentes representantes pode se revelar mais oneroso do que contar com apenas um representante fixo que, aos poucos tornado especialista nos usos e costumes da representação, pode proporcionar vantagens adicionais aos interesses dos representados.

Ademais, se hoje é habitual que os Parlamentos sejam permanentes, e mesmo quando em recesso se institui uma Comissão de representantes, seja para urgências ou mesmo para efeito simbólico; nem sempre foi assim: houve época que o Parlamento (ou o seu equivalente) aguardava (até anos) a convocação do Rei para deliberar (e houve monarca que perdeu a cabeça – literalmente – por não convocar o Parlamento!). 

Somente aos poucos os Parlamentos se tornaram permanentes, tendo antes passado por uma etapa de agenda regular e periódica: uma ou duas reuniões ordinárias/ano para deliberar, sobretudo, matérias de natureza financeira-orçamentária, mais especificamente, o estabelecimento de tributos.

A questão da representação é, pois, dinâmica, e deve responder às necessidades e condições do seu tempo-espaço, o que não elide os casos circunstanciais. Por isso a contrariedade e o inconformismo quando os representantes (uma vez eleitos mas não quando candidatos) resistem às mudanças em que pese não só as condições de origem terem mudado como também devido à oferta de novas possibilidades tecnológicas [10] que poderiam reconfigurar, por completo, as estruturas e os processos que implicam na qualidade funcional – na efectividade – da representação.

O comentário anterior, acerca do desapontamento do representado, convida à exploração de um problema clássico: o da expectativa do representado (eleitor) junto ao representante.

Representação – o modelo input de demanda

O lugar comum, o que ocupa o imaginário colectivo, é o de que o representante … represente os pontos de vista e os interesses do representado, em geral o eleitor, nas devidas instâncias. Mas para que isso ocorra torna-se necessário a perfeita congruência entre o pensamento, valores, interesses, etc. dos representantes e os dos eleitores-representados (MILLER e STOKES apud CAMPILONGO, 1988). Embora lógica à primeira vista, a expectativa chega a ser ingénua porque desprovida das condições de possibilidades sob quaisquer perspectivas, seja a do representado ou a do representante. E não é difícil demonstrá-lo.

E como também é habitual ouvir que “todo político é igual”, o que ora se pretende é reduzir o carácter pessoal desta afirmativa, em determinadas circunstâncias quase uma sentença, ao trazer à luz e debater os aspectos lógicos e institucionais determinantes do comportamento dos políticos. Por outras palavras, mesmo as diferenças pessoais tendem a ser obliteradas sob o peso das regras do jogo; se estas não determinam, é certo que induzem determinados comportamentos, daí que para mudar estes se faz necessário se não antes, concomitantemente, mudar aquelas.

Se reconhecido que cada ser humano é um universo em si mesmo, com incoerências e contradições internas, como alimentar a expectativa de que o representante, tal qual um clone, atenderia as suas complexas demandas sempre que frente às necessidades de representação nos mais diversos fóruns, a exemplo dos Parlamentos (municipal, estadual ou federal), locais de debate e regulamentação dos mais variados temas? 

Obviamente é impossível consolidar e transmitir as demandas aos representantes e tampouco exigir o atendimento. 

Antes ainda, o modelo de input de demanda pressupõe que cada um (eleitor-representado) possua uma clara visão, assim como posicionamento senão sobre todos, acerca da maioria dos assuntos em debate, o que não encontra a menor evidência empírica consistente, nem mesmo entre o público supostamente mais esclarecido: os diplomados com o terceiro grau. 

Mas admita-se por hipótese que cada um tivesse um posicionamento esclarecido, bem definido e fosse possível levá-lo ao representante (ou ao candidato à representação), nesse caso, como consolidar todas as demandas (expectativas de milhares de eleitores) junto a um só representante, formar expectativas objectivas e exigir a prestação de contas? 

Trata-se de mais uma impossibilidade. 

Não há pois, só por isso, como esperar congruência e identidade entre as expectativas do representado (eleitor) e o comportamento dos representantes.

A alternativa, do ponto de vista prático, é sintetizar as demandas em grandes (e por isso difusos) rótulos, a exemplo da congruência representado-representante ao longo do espectro político, ambos mais à esquerda, à direita ou ao centro. 

Ou ainda a partir de uma escala de princípios, valores e atitudes: conservador, liberal, progressista, entre outros. Contudo, o problema ainda não se encontra devidamente equacionado, pois são tantos os temas e as questões em debate (modelos de educação, prestação de serviços públicos em geral, política económica, agenda de costumes, inclusão das minorias, política externa, etc., etc.), as possibilidades contempladas em cada tema, assim como as opiniões e os posicionamentos individuais, que as categorias são insuficientes para reunir o conjunto sem o risco de formar algo ainda mais assombroso do que Frankenstein. O “tudo junto misturado” leva à clara percepção de inconsistências e ao descrédito (ainda maior) do eleitor no sistema político-representativo em geral.

Não bastassem esses motivos que colocam em xeque o modelo de input de demanda do eleitor atomizado (e por consequência a expectativa quanto ao seu atendimento), não se pode perder de vista que mesmo antes de ser eleito, os candidatos já recebem demandas e pressões (que iniciam na forma das mais variadas formas de apoio) institucionais – demandas que reúnem interesses colectivos comuns – das corporações privadas individualmente ou de determinado(s) sector(es), das corporações profissionais do Aparelho do Estado, da sociedade civil organizada (ONGs, Sindicatos, Federações, etc.), interesses regionais, locais, etc. 

Porém, também aqui os problemas já apontados, em algum grau se reproduzem. 

Nesse contexto, fazer com que o ainda candidato se comprometa publicamente pode vir a se constituir num instrumento de cobrança (enforcement) a ser utilizado pelos demandantes, mas também uma arma à disposição dos adversários políticos, eventualmente um risco na agenda eleitoral.

E é importante que se tenha em conta que o problema não se deve apenas à atomização e hipossuficiência do eleitor, pois nem mesmo as demandas dos grandes grupos (que não raro envolvem vultosos interesses mercadológicos) têm assegurado o encaminhamento (e tampouco o êxito) devido não só à acção dos lobistas defensores dos interesses contrários, mas também às normas e regramentos que regem o funcionamento das instituições políticas, onde senão tudo, quase tudo, conforme será visto, é projectado para desresponsabilizar (com isenção) os representantes perante os representados. 

Destarte, para a efectividade da congruência faz necessário uma conjunção de eventos favoráveis, o se verifica na mesma frequência das efemérides astronómicas contempladas a olho nu.

À luz de todas essas dificuldades, mas também por conta delas, na perspectiva do representante resta em aberto uma dúvida também impossível de ser solucionada: como fazer a leitura e a interpretação correcta das expectativas do eleitor individual ou mesmo organizado em colectivo? 

Cabe lembrar que também aqui se observa o problema já apontado na representação por delegação: a insuficiência dos representantes, dos quais somente são exigidos, além dos requisitos (e diga-se: mínimos) legais, antes e acima de tudo as condições de liderança, visibilidade pública e patrocínio, deixados à margem, por exemplo, o domínio de conhecimentos básicos acerca da realidade sobre a qual actuarão.

Por fim, mas sem pretender exaurir o tema, há uma condição inerente a todo representante e que não raro cria impasses que só não são insolúveis porque equacionados e solucionados à revelia, quando então o titular da representação se justifica perante as bases sob a alegação de que foi voto vencido. 

Trata-se da mudança de status da representação conforme o momento: se antes ou após a eleição. 

Antes, sobretudo durante a proximidade do período eleitoral, o candidato se vê obrigado e escolher o “nicho de mercado” (uma categoria profissional, um determinado perfil demográfico – idosos, jovens, mulheres, etc. -, causa, região, localidade, etc.) que pretende explorar, senão por outros motivos, por conta das restrições orçamentárias que o obrigam a delimitar o escopo das iniciativas de marketing e logística na peregrinação por votos. 

Nesse momento é de suma importância criar uma imagem bem definida (pelo foco da actuação) junto ao eleitorado perante o qual se apresenta como futuro aliado e representante na luta pelos seus interesses. Ocorre que realizadas as eleições, e se eleito, o empossado torna-se automaticamente também representante de toda a jurisdição (que no Brasil se organiza em três níveis) e não apenas do nicho que escolhera e o elegeu. 

Os caminhos para os conflitos são então múltiplos e largos, e para não me estender em demasia basta ter em consideração as restrições orçamentárias (recursos sempre escassos e disputados por muitos) que dificultam ou mesmo impedem o atendimento das demandas auscultadas desde as bases.

Em síntese, são tantas as insuficiências da demanda por input individual, e mesmo quando formuladas por colectivos, que aos olhos do observador minimamente crítico não se justifica o peso, porque falso, conferido sobretudo ao longo das campanhas públicas e pré-eleitorais acerca da importância do voto, como se ele tivesse o condão do auto cumprimento das expectativas e da responsabilização –  nem ex-ante e tampouco ex-post fato. 

A realidade descrita, ainda que seja apenas a ponta de um iceberg, pois há muitas outras formas de aumentar o distanciamento e a falta de comprometimento do representante vis-à-vis aos interesses dos representados, longe de configurar uma visão niilista deste autor, presta-se, antes, conforme esclarecido, a alertar os leitores-eleitores não só para evitar desapontamentos como para, mais atento e informado, actuar no sentido a mitigar os problemas reconhecidamente existentes ainda que em alguma medida insuperáveis. Alfred de Grazia [11], citado por Campilongo (op. cit., p. 30), assim descreve o processo de representação:

[…] uma acção teatral gerida por actores autónomos nos limites fixados pelo Estado, pelo ambiente e por mutáveis gostos dos espectadores. Estes actores desenvolvem um papel significativo, mas este papel não tem nenhuma relação directa com o bilhete de ingresso pelo qual os espectadores fazem fila.

Resulta que essa realidade é, simultaneamente, causa e efeito da dinâmica política-eleitoral-parlamentar: estratégias (individuais e partidárias) empregadas nas disputas eleitorais, alianças, logrolling (TULLOCK, SELDON e BRADY, 2005), manobras nos limites extremos dos regulamentos (prazos, formação de maiorias, quóruns, solicitação de vistas, documentação, questões de ordem, filigranas, etc.), entre outros tantos aspectos que serão abordados nesta série.

Em meio a tantas possibilidades, por vezes até mesmo podem ser encontradas iniciativas tendentes à congruência, quando então e devido a, são largamente capitalizadas pelo universo político.

Mas se os inputs de demanda parecem ser insuficientes para explicar a longevidade da relação representante-representado e a dinâmica eleitoral, o que então assegura a continuidade indefinida da “acção teatral”? 

Por oportuno, cabe lembrar, conforme já explorado nos textos anteriores da série, que a Democracia enquanto construto não se define e tampouco se encerra apenas no sistema político-partidário-eleitoral, e assim como há pseudodemocracias, há também pseudo-representantes concebidos para efectivamente não representarem aqueles que sugerem que são os seus representados, pois meramente encenam papeis ao longo da representação teatral que se estende para além do momento eleitoral.

Inúmeros fatores concorrem para a continuidade da representação referida por Grazia, mas talvez nenhum outro tenha tanto peso quanto a combinação de dois elementos:

  1. a falta de conhecimento dos eleitores acerca das “regras do jogo”, as suas nuances e, principalmente, as consequências, a exemplo do voto nulo, do significado do “coeficiente eleitoral”, da importância da suplência, etc., no que resulta a anomia política – o distanciamento deliberado da vida política nacional; e,
  2. o viés corporativo (negócios!), portanto nada republicano, de alguns actores relevantes e constituintes do próprio processo político, como é o caso da mídia [12] em geral (mas não exclusivamente), que então actuam selectivamente conforme os seus interesses, filtrando as informações e construindo as narrativas apresentadas como sendo efectivos esclarecimentos, e para lhes conferir maior credibilidade e isenção, alegam ter o lastro da ciência.

Essa combinação não teria maior expressão e consequências se não fossem as mídias as maiores, e quando não exclusivas, fontes de informações acessadas pelos eleitores (DEROSA, 2017). 

Revela-se pois, oportuno, trazer ao texto a célebre manifestação atribuída a B. Brecht [13]:

O Analfabeto Político [14]

O pior analfabeto é o analfabeto político. Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos. Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão, do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe o imbecil que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio dos exploradores do povo.

Contudo, uma das visões alternativas apontada pelos estudiosos é o modelo “output de suporte”, tema que dará início ao próximo texto quando, com foco dirigido para a realidade brasileira, também serão exploradas as seguintes questões:

  • a “irresponsabilidade do Parlamento” notadamente no sistema Presidencialista;
  • em que pese a participação no processo eleitoral, a condição de não lograr representantes e a exclusão de demandas promovidas pelo próprio regramento do sistema eleitoral;
  • o problema da proporcionalidade que leva ao desequilíbrio das representações nas Casas Legislativas;
  • os acordos e o oportunismo do voto de liderança (bancada) como causador de distorções da representação;
  • no plano federal, as matérias em carácter terminativo; e,
  • logrolling, isto é: como aprovar com o voto majoritário as matérias de interesse minoritário?

Ainda que mais longo do que o inicialmente imaginado, esse breve apanhado histórico e introdutório se faz necessário ao melhor entendimento dos próximos tópicos, bem como contribui para uma visão holística do fenómeno representação.

Por fim, acredita-se que em razão dos esclarecimentos trazidos ao texto não há dúvidas de que a peça teatral a que refere A. de Grazia, e que ecoa em B. Brecht, não se inclui no género realista, talvez mais próxima do realismo fantástico ou mesmo do género ficcional, conforme aliás, antecipado.

Ivan A. Pinheiro

Mestre Maçom (licenciado) do Quadro da ARLS Mário Juarez de Oliveira, 4547, GOB-RS.

Notas

[1] Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de Montesquieu, 1689-1755.

[2] 1757.

[3] Os factores determinantes para a decisão em favor do Brexit (Britain Exit) têm sido objecto de vários estudos para melhor entendimento do fenómeno político-social-económico, entre eles a possível manipulação das informações circulantes nas redes sociais.

[4] 428/427-348/347 a.C.

[5] Segundo alguns trata-se de uma corruptela de “Deus está nos detalhes”; contudo, o bom observador notará que também esta versão se aplica ao caso ora desenvolvido.

[]6 Muitas Lojas preferem ao embate de candidaturas, organizadas ou não em Chapas, as chamadas Chapas de Consenso geralmente estabelecidas pelo Colegiado de Mestres Instalados, auscultados ou não os demais membros do Quadro. Assim, ao invés da escolha e comprometimento com um projecto, adopta-se um critério circunstancial, de oportunidade, como é o caso da antiguidade – “a bola da vez” -, aspectos circunstanciais da Loja (a exemplo do enfrentamento de um problema específico), a necessidade de um determinado perfil de liderança para fazer frente a determinada contingência, etc. Cada modalidade apresenta vantagens mas também desvantagens. Na Grécia Antiga, berço das modernas instituições democráticas, o sorteio, por exemplo, era uma forma habitual, legítima e valorizada de escolha dos representantes. O sorteio, se de um lado pode dar origem a determinados problemas, de outro revela-se como a modalidade de escolha mais democrática.

[7] Senso atávico do ser humano no sentido à participação, de sentir-se parte de um colectivo, de algum modo responsável e importante.

[8] Contraria as chamadas Leis do Pensamento Lógico.

[9] O leitor mais atento observou que já desde antes se coloca a questão da representação; afinal, quem pode outorgar e delegar os poderes de representação?

[10] A exemplo da telefonia digital estruturada em redes (5G) ultra velozes.

[11] Norte-americano, cientista político e autor, 1919-2014.

[12] Refiro aqui à mídia por concessão estatal, não aos inúmeros blogs e outras formas privadas de veiculação noticiosa.

[13] Berthold Brecht: 1898 -1956, dramaturgo, poeta e encenador alemão.

[14] Disponível em: https://www.pensador.com/frase/MjMzMDA5/. Acesso em: 15.02.22.

Bibliografia citada

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  • ______ . A associação que abriga a Loja Maçónica: uma figura jurídica esquecida e seus desdobramentos. Revista Ciência & Educação Maçónica, v. 01, n. 03, 2020, p. 11-28. ISSN: 2596-1187.
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