Nas profundezas da alma humana, onde os véus da ilusão se entrelaçam com os fios dourados da verdade eterna, o conto da Branca de Neve revela-se não como um simples relato infantil, mas como uma alegoria requintada da jornada inicática:
esse trilho tortuoso e luminoso do autoconhecimento e superação pessoal.
Branca de Neve, pura e radiante como o amanhecer que despedaça sobre as neves imaculadas, encarna o iniciado, a alma virginal que desperta a sua própria divindade.
Os sete anões, esses guardiões humildes e trabalhosos do subsolo, simbolizam as virtudes adormecidas ou as faculdades fragmentadas do ser, guias silenciosos no caminho espiritual.
E a madrasta, essa bruxa invejosa e sombria, personifica as tentações vorazes, os obstáculos internos, as sombras do ego que espreitam para devorar a luz nascente.
Como bem advertia Sigmund Freud na sua exploração do inconsciente, «os sonhos são a via régia para o conhecimento do inconsciente na vida animal» e, de igual modo, este conto — e a sua sublime adaptação cinematográfica de Walt Disney em 1937 — age como um sonho colectivo, um espelho mágico que reflete as profundezas ocultas da psique.
Jean Duprat, no seu revelador artigo «Um filme inicático: Branca de Neve e os Sete Anões», convida-nos a contemplar exclusivamente a versão animada, liberada das possíveis distorções do conto original dos irmãos Grimm, publicado 120 anos antes.
Será que estes símbolos esotéricos brotam de uma intenção deliberada dos criadores, ou surgem — como sugeriria Carl Gustav Jung — dos arquétipos mentais universais, esses padrões primordiais do inconsciente coletivo que surgem espontaneamente na narração humana?
Duprat disseca o filme com a precisão de um alquimista, revelando personagens que não são meras caricaturas, mas reflexos vivos da alma em sua dança eterna entre luz e escuridão.
A Branca de Neve desperta para a consciência de sua beleza espiritual, ansiando pelo Amor Divino encarnado no Príncipe — aquele beijo simbólico mediado pela pomba, mensageira da paz celestial.
A Rainha, com seu espelho implacável, representa a alma mundana, pervertida pelo narcisismo luciferino:
«Ser a mais bela», clama, eco daquele anjo caído que, nas palavras de Jung, simboliza «a sombra que todo ser humano carrega consigo, a parte inferior da personalidade».
Esta rivalidade não é superficial; é o drama cósmico da rejeição da hierarquia divina, o impulso destrutivo que exige a morte simbólica da alma pura.
A fuga da Branca de Neve pela floresta aterrorizante — esse labirinto de ramos retorcidos e olhos luminosos — marca o segundo nascimento, a morte inicática da vida profana.
Como Freud descreveu o complexo de Édipo como um rito de passagem brutal para a maturidade psíquica, aqui a heroína desce para o submundo, alinhando seu coração com o centro do mundo.
O caçador, misericordioso, substitui o seu coração pelo de uma corça — símbolo feminino do sacrifício, evocando o carneiro de Isaac, a substituição redentora que abre as portas para a liberdade.
Os anões, mineiros de diamantes nas entranhas da montanha (Mons, a mente; Mens, o espírito), extraem a luz divina do coração humano.
Seus nomes — Dorminhoco, espirro, feliz, resmungão, tímido, sábio e mocoso — não designam identidades separadas, mas funções complementares de uma mesma psique, tal como Jung descreveu os arquétipos no seu «processo de individuação»:
a alma vegetativa (Soninho, desligado do exterior; Estornudador, hiperreativo), a alma apetitiva (Feliz, plenitude serena; Rabugento, agressividade externa; Tímido, retraimento evasivo) e alma racional (Sábio, o intelecto supervisor).
«Não se trata de ver identidades diferentes — afirma Duprat — mas sim funções complementares de uma mesma identidade».
Aqui, acrescento que estes anões são como os sete chakras do esoterismo oriental, rodas de energia que devem ser harmonizadas para que o kundalini — a serpente de fogo — ascenda até a coroa, despertando a consciência crística.
A grande limpeza da cabana, com a Branca de Neve dirigindo os animais numa sinfonia de ordem e fraternidade, ilustra a ajuda maçônica mútua:
a alma espiritual doma as faculdades caóticas, ocupando simultaneamente as sete camas — sinal de que a luz integra todas as sombras.
Vem então a segunda morte:
a bruxa, agora satânica e encapuzada, oferece a maçã — fruto da Árvore do Conhecimento, cuja secção revela o pentagrama, estrela da humanidade regenerada.
Ao mordê-la, a Branca de Neve retorna ilusoriamente à individualidade separada, caindo na letargia da ignorância.
Mas, como Jung ensinava, «não há vinda à consciência sem dor»; esta morte é o nigredo alquímico, a podre necessária antes do rubbedo, a ressurreição dourada.
Os anões, poderes da alma, perseguem e aniquilam a Rainha, precipitando sua queda para o abismo — fim da ilusão infernal.
A Branca de Neve jaz no seu caixão de cristal, rodeada de luto, até que o príncipe, raio solar encarnado, a acorde com o beijo do Amor Divino.
Já não pertence ao plano horizontal da existência profana; subiu verticalmente, além da forma, para a «transformação transcendente» a que Jung chamava «a união dos opostos».
Bruno Bettelheim no seu texto «X», culmina:
Branca de Neve morreu duas vezes — primeiro ao estado profano na floresta, depois à individualidade com a maçã — para renascer na sua identidade definitiva, exaltada talvez ao terceiro grau maçônico, o mestre que venceu a morte.
Em síntese, os símbolos se desdobram como uma mandala viva:
Branca de Neve: A alma pura, o mesmo sim junguiano em busca de integração.
Os sete anões: As sete virtudes ou faculdades que devem ser polidas como diamantes brutos.
A Rainha-Bruxa: A Sombra Freudiana e Junguiana, o ego inflado que deve ser confrontado e dissolvido.
O espelho: A introspecção implacável, "o espelho mágico" que obriga a alma a se olhar sem enfeites.
A maçã: A tentação do conhecimento separado, mas também a semente da gnose redentora.
O Príncipe: O espírito divino, a verdade libertadora que dissipa o sonho da separação.
Sempre contemplei este conto com espanto:
numa era de distrações superficiais, a Branca de Neve sussurra ao nosso ouvido que todo ser humano carrega dentro de uma rainha invejosa, sete anões desordenados e uma princesa adormecida.
O beijo do despertar não vem de fora; surge quando, corajosamente, ousamos morder a maçã da consciência, morrer para o velho e ressuscitar na luz eterna.
Assim, o "Era uma vez" se transforma em um eterno "Aqui e agora", convidando-nos a todos para a nossa própria jornada inicial.
(Alcoseri)
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