Os espelhos, na sua frieza mineral, não fazem concessões.
Eles não barganham com o ego, não modulam a nitidez para poupar a sensibilidade, não participam do teatro da vaidade humana.
O espelho é uma máquina de verdade, daquelas que não sabem mentir porque desconhecem o benefício da mentira.
Por isso sua superfície, silenciosa e implacável, torna-se tão difícil de sustentar.
Diante dele, o indivíduo não encontra aplausos, mas constatação; não encontra acolhimento, mas evidência.
A honestidade do espelho fere porque é imediata e porque não pode ser negociada.
É, ao mesmo tempo, testemunha e sentença.
A sociedade contemporânea, incapaz de lidar com essa crueza, inventou um antídoto:
os filtros.
Esses novos oráculos do narcisismo digital transformam a imagem em fantasia, recobrem imperfeições com verniz de aprovação e oferecem uma estética anestésica que poupa a consciência de todo desconforto.
Ao contrário dos espelhos, os filtros não exigem enfrentamento, apenas consumo.
Eles dizem sim a tudo, transformam qualquer rosto em narrativa vendável, ajustam o mundo ao desejo e jamais o desejo ao mundo.
Eis o drama: trocamos a prova pela ilusão, a profundidade pela superfície polida.
Os filtros, aliados obedientes do narcisismo, se comportam como amigos servís, aqueles que nunca confrontam, nunca dizem a palavra incômoda, nunca expõem a nossa própria fragilidade.
Por isso são tão sedutores, porque nos devolvem uma versão idealizada do ser, uma caricatura lisonjeira que nos permite fugir de nós mesmos.
Já o espelho, com sua frieza luminosa, lembra-nos que a realidade não se curva às nossas preferências.
Assim, ao escolhermos os filtros em detrimento dos espelhos, não buscamos apenas beleza, buscamos absolvição.
Tentamos escapar do peso da verdade que nos constitui, dessa tensão entre o que somos e o que gostaríamos de ser.
A era das imagens editadas não é apenas um fenômeno estético, é uma renúncia moral.
Substituímos a coragem de encarar nossa própria presença pela facilidade de nos inventarmos de modo mais suportável.
O problema é que nenhuma vida pode florescer inteiramente na ficção.
A alma que se habitua a se ver adornada perde a musculatura necessária para o autoconhecimento.
E, sem autoconhecimento, tudo se torna um palco sem profundidade, uma sucessão de máscaras que se repetem até que se esqueça o rosto original.
No fim, talvez devêssemos aprender com a frieza do espelho.
Ele é cruel, sim, mas é dessa crueldade que nasce a chance de transformação.
Os filtros nos oferecem conforto, mas é o desconforto que nos devolve à realidade e nos convoca a evoluir.
Entre a lisonja que nos adormece
e a verdade que nos desperta,
permanece a escolha fundamental
de toda existência lúcida.
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