
São Jerônimo (que traduziu a bíblia do hebraico e aramaico para o grego e o latim) por Caravaggio (1605-6) Galleria Borghese, Roma
“A vaidade é um princípio de corrupção”. Machado de Assis
A todo o momento, morrem pessoas.
Na mitologia grega, foi dessa justificativa que se valeu o soberano do Olimpo, Zeus, imbuído de convencer seu irmão, Hades, a aceitar presidir o reino dos mortos: “Governarás sobre um reino no qual, a todo instante, não cessará de chegar novos súditos”.
Morrer é inevitável.
E é justamente essa consciência da finitude o que nos define. Temos, uns mais, outros menos, uma espécie de prazo de validade aqui no mundo. Isto posto, como nos pautarmos por valores que garantam uma vida feliz, bem sucedida? O que podemos legar ao futuro quando a inevitável nos arrebatar?
Ponderar sobre a morte é, paradoxalmente, ponderar sobre a vida e nas “tentações” que se apresentam a nos iludir, nos desviando do caminho mais virtuoso e edificante. Um desses engodos está na vaidade: “humano, demasiado humano”, como diria o filósofo alemão Friedrich Nietzsche. E é sobre uma lição acerca da vaidade, representada num movimento artístico específico, que iremos versar.
Esse movimento chama-se “Vanitas”.
Harmen Steenwijk – 1640
O tempo muda, e com ele, emergem novos conceitos, que respaldados pelo “zeitgeist” (Espírito do tempo) vigente impõe-se como modismo. Alguns modismos, como os “Vanitas”, tornam-se “clássicos”.
Em tempos d’outrora, distintivo (“chique”) mesmo era pendurar um enigmático “Vanitas” na parede da biblioteca (ocupada hoje pelo home-teather) e ter assim, assunto para se encetar uma boa prosa filosófica (vida, morte e tempo), enquanto se finalizava o agradável jantar saboreando um licor.
Pieter Gerritsz – 1630
Mas, o que é um “Vanitas”? Um “Vanitas” (do latim, vacuidade, futilidade, algo vão, sem valor) é a representação dramática de um gênero singular de natureza morta surgida no norte da Europa e países baixos, especialmente no século XVII, com forte conteúdo simbólico de cunho moralizante que busca chamar a atenção para o quão efêmera é a vida, fugidios seus prazeres, vãs suas glórias e para a irreversibilidade dessa condição que nos distingue do Criador: mortais.
Com o enaltecimento dos “Vanitas”, o gênero “natureza-morta” – o patinho feio da pintura –, tão apreciado pelos holandeses, foi alçado a patamar de honra.
Hendrik Andriessen – 1650
A morte era uma realidade muito próxima e os pregadores calvinistas eram fascinados pelos interditos do Livro de Eclesiastes, no Velho Testamento. Do ponto de vista filosófico, arrisco dizer que o gênero é “Existencialista”.
Uma obra dessa natureza, que é um imperativo chamado para reflexão sobre valores, expressava que a alma do detentor estava consciente da insignificância da vaidade humana. O paradoxo é que se pagava muito caro por tamanha insígnia de sapiência: ostentar um “Vanitas” era caríssimo, acessível somente às pessoas de posses.
Pieter Claesz – 1625
Nesse tipo de obra, explicitando perecividade e finitude, observamos a presença de figuras que aludem e contrapõe: 1) vida terrestre espiritual e contemplativa e, 2) vida terrestre hedonista, luxuriosa e sensual.
São recorrentes, então, insígnias de poder (colunas clássicas, coroas, tiaras, mitras, medalhas, elmos, escudos, emblemas heráldicos, espadas e outros adereços que remetam à honra), símbolos de fortuna e riqueza (moedas de ouro ou prata, tecidos requintados, sedas, veludos, bordados e brocados, pedras preciosas, pérolas, conchas e outros objetos preciosos), referências aos prazeres libidinais e luxuriosos (espelhos, cartas de baralho, vinhos, instrumentos musicais tais como flautas e charamelas), alusões à perecividade (flores frescas ou já murchando, frutas suculentas ou apodrecidas, relógios, ampulhetas, bolhas de sabão, borboletas, fio de vela já se apagando), além dos emblemas de imortalidade (livro) e de finitude (o crânio humano), impondo o inexorável destino comum a todos nós, que é morrer.
Adriaen van Utrecht – 1642
Condenador dos prazeres mundanos, pois erigido sob o solo do discurso de cunho religioso moralizante de apelativo fervor puritano, o melancólico “Vanitas” encontra respaldo na Bíblia judaico-cristã.
De lá para cá, muitas caveiras se passaram e o uso alegórico do crânio ganhou outros significados (que o diga o renomado estilista brasileiro, Alexandre Herchcovitch). E isso porque, a visão que temos da morte passa por “n” perspectivas: temor, reverência, respeito, angústia, perturbação, sarcasmo, cinismo, deboche e até provocação.
Diante dela, difícil é ser indiferente.
Independente disso, intensamente expressiva em suas representações, a morte paira a espreita, triunfa sobre as frivolidades mundanas, sejam quais forem e, alheia ao que pensemos que seja, é o que é.
Independente disso, intensamente expressiva em suas representações, a morte paira a espreita, triunfa sobre as frivolidades mundanas, sejam quais forem e, alheia ao que pensemos que seja, é o que é.
Edwaert Collier – 1693
Ao passar todo esse sermão através das pinceladas, um “Vanitas” pretende repreender a ignorância sobre os falsos valores, advertindo que: “(…) os seus vícios e horrores, as suas paixões desonestas, desvairadas de cegas, funestas, os seus apetites venais insaciáveis, as suas perigosas irracionalidades, as suas pulsões inconfessáveis (…)”, tem um fim. Esse é o drama.
A arte, como alertava o poeta grego Píndaro (518-438 a.C.), lembra ao homem o que ele deve ser. Assim como o desvario da nobreza dos séculos XVII foi sacudido pelos “Vanitas”, a atual sociedade líquida (termo cunhado pelo sociólogo Zygmunt Bauman), voltando a contemplar essas obras e, ponderando sobre esses ensinamentos, se enriquecerá, tornando essa breve passagem, mais digna e honrosa possível.
Philippe de Champaigne – 1671
Autora: Luciene Felix Lamy
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