A Sombra…
Esse conceito que designa a face sombria e oculta da personalidade, a parte inferior, a qual envolve, de certa forma, em seu manto inquietante e obscuro a totalidade de todos os materiais psíquicos do reino do inconsciente, está presente, de maneira aberta ou em filigrana, em toda a obra de Jung.
A Sombra é o inconsciente que trabalha em cada um de nós, o inconsciente pessoal, certo, mas também o inconsciente coletivo.
E é realmente isso, esse mundo quase ignorado que pode emergir de maneira inesperada e às vezes inquietante em uma reunião maçônica na Loja.
Com ou sem egrégora.
- G. Jung escreve nitidamente: “Os conteúdos do inconsciente pessoal são aquisições da vida individual, enquanto aqueles do inconsciente coletivo são arquétipos que têm uma existência permanente e a priori”. Assim, a Sombra é um “problema moral”. Ela coloca em jogo a globalidade da personalidade do Eu. “Ninguém pode perceber a Sombra sem um emprego considerável de firmeza moral”, acrescenta o Mestre.
Eis realmente o ato “que consiste em reconhecer a existência real dos aspectos obscuros da personalidade”, o ato que permanece “o fundamento indispensável de todo modo de conhecimento de si, e, consequentemente, confronta-se, via de regra, a uma resistência considerável”.
Tanto na Psicoterapia como na Loja Maçônica, quando os “Irmãos” “trabalham” aceitando a dialética do Eu e do inconsciente, trata-se realmente de concretizar uma das mais célebres máximas inscritas no frontão do Templo de Delfos, a saber, gnôthi sauton, isto é, “conhece-te a ti mesmo”. Esse “trabalho” pode levar, com a ajuda de Sócrates ou não, longos anos, exigentes e apaixonantes como toda exploração de si mesmo e de suas relações com o outro e o Outro.
Consequentemente, Charles Baudouin (1893-1963), antigo diretor do Instituto de Psicoterapia de Gênova, tem razão ao ressaltar que a expressão “sombra”, com ou sem maiúscula, não é somente uma espécie de linguagem figurada,porém, muito mais do que isso: ela designa “uma dessas personificações espontâneas cujo segredo o mundo onírico tem”.
Com efeito, o alter ego ou o duplo muitas vezes encontra seu estranho lugar na Literatura. Um dos exemplos mais marcantes é provavelmente esse magnífico poema de Alfred Musset, La nuit de décembre, que retoma, como uma espécie de leitmotiv obsedante, o símbolo desse “estranho vestido de negro / Que se assemelha a mim como um irmão”… Esse conviva vem misteriosamente se colocar ao lado do homem ao longo de seu processo de crescimento…
Quando Musset é aluno, seu duplo é uma pobre criança “vestida de negro”, ele se torna “um jovem rapaz” quando o poeta completa seus 15 anos, depois, “estranho” “na idade em que se crê no amor”, depois, “conviva” “na idade em que se é libertino”, depois, “órfão” à noite… “Anjo ou demônio”, quem é no fundo “essa sombra amiga”? Não é ela realmente “a face humana e suas mentiras?”. Quem é, portanto, essa sombra do romântico Musset que lhe sorri sem compartilhar sua alegria e o lamenta sem consolá-lo? “Seria um sonho vão? Seria minha própria imagem / que percebo nesse espelho?” e um pouco mais adiante: “Quem é, portanto, tu, espectro de minha juventude / Peregrino que nada cansou?”, pergunta o poeta. De fato, Musset, mais visionário do que parece, evoca a Sombra de Jung antes do nascimento deste último! E a Sombra muitas vezes toma o aspecto de um personagem velado, obscuro, da cor do cinza, do vago, do indistinto. Pode ser stricto sensu a sombra que a silhueta do homem forma sob o Sol. Mas, na realidade, raramente é tão simples. A Sombra é mais do que um visitante solitário. É uma onipresença plena de ambiguidade e nem sempre reconhecida, ou declarada. E a confrontação com a sombra, em Psicanálise, é um difícil e às vezes trágico duelo entre o analisado e o lado sombrio de si mesmo.
Mas a sombra não é realmente o mal, quando se acredita, por exemplo, em Charles Baudouin, grande admirador, leitor e comentarista de Jung, é muito mais o recalcado. Sim, a sombra pode apresentar uma variante positiva e uma outra negativa. Aliás, Jung a estigmatiza quando escreve: “Se as tendências recalcadas da sombra só fossem más, não existiria nenhum problema.
Ora, a sombra é, em regra geral, somente alguma coisa inferior, primitiva, inadaptada e infeliz, mas não absolutamente má. Ela contém mesmo algumas qualidades infantis ou primitivas que poderiam em certa medida reavivar e embelezar a existência humana”.
Com efeito, a Sombra é o duplo e este, em muitas das culturas antigas, está presente em inúmeras representações de animais e todos têm, justamente, uma dupla polaridade simbólica, benéfica e maléfica.
Assim, o leão simboliza ao mesmo tempo a força, real, positiva em si, e com um apetite voraz que pode ser destruidor e devastador. Seriam necessárias também páginas e páginas para apreender o “duplo jogo” das representações da serpente, do dragão, do urso, entre outros! O mito é bem universal e designa sob todas as latitudes dois irmãos gêmeos interiores, indissociáveis, formando um todo sob pena de se desagregar até a loucura. Assim, a Sombra é naturalmente o que se opõe à luz, mas ela deve ser também compreendida como o reflexo, o jogo de sombras fugidio das coisas humanas efêmeras, irreais e em permanente transformação. Podemos pensar então na alegoria da caverna evocada, evidentemente, por Platão, quando os seres humanos são concebidos de modo filosófico, como se evoluíssem em uma caverna de penumbra e de silhuetas projetadas nas paredes, mas também na imagem do salmo 17 (“à sombra das asas de Deus”) que será a divisa do pai espiritual dos rosa-cruzes, Johann Valentin Andrea (1586- 1654), isto é, sub umbra alarum tuarum Jehova.
Podemos também evocar, se se é católico, a Anunciação feita a Maria quando o anjo responde à Santa Virgem: “A potência do Altíssimo te cobrirá com sua sombra” (São Lucas, 1:35).
Jean-Chevalier e Alain Gheerbrant nos relembram que, na África, entre os inúmeros povos, a sombra é frequentemente compreendida como a segunda natureza dos seres e das coisas e se encontra, em geral, ligada à morte.
Em um grande número de línguas indígenas da América do Sul, a mesma palavra significa sombra, alma, imagem. Além do mais, entre os índios do norte do Canadá, por ocasião da passagem da morte, “a sombra e a alma, distintas uma da outra, separam-se do cadáver”.
Mais amplamente, na simbólica tradicional, o homem que vendeu sua alma ao Diabo (“àquele que separa”) perde sua sombra, aquele que não sabe mais ver sua sombra está destinado à destruição, bem como aquele que passa por cima! Em outros termos, ele confunde a presa com a sombra e não sabe mais em qual sombra confiar…, mas tudo é sempre ambivalente, mesmo a sombra de acordo com inúmeras tradições. E parece que, na China, se distanciar de sua sombra significa que, a partir disso, se está transparente a toda luz (o que é um mérito supremo), e, para alguns gnósticos, que a alma humana não tem mais a sombra de uma sombra quando se realizou totalmente sob o poder da luz sobrenatural!
Em resumo, sempre se trata de analisar a sombra, sem ocultá-la, para dali extrair uma certa compreensão esclarecedora.
Pode-se então adivinhar, e a observação supera em muito um simples desejo comparativo, tanto na psicologia das profundezas quanto na Loja, quando o Aprendiz quer talhar sua própria pedra bruta para talvez torná-la, um dia, cúbica, e, portanto, passível de melhor se ajustar, de se apoiar, no Templo da humanidade inteira, devolver a Sombra à nossa consciência torna-se o objetivo tanto da análise quanto do trabalho maçônico. A relação entre a dimensão simbólica e a análise especulativa é decididamente sempre viva e primordial.
O símbolo, evidentemente, “revela”, de maneira pedagógica, didática, melhor do que qualquer outra representação passível de sugerir e de mostrar. Todo símbolo é dinâmico e permite passar de um sentido a um outro sentido, sob o impulso de uma espécie de ricochete do raciocínio e da imaginação.
A postura iniciática maçônica e a psicologia das profundezas travam um mesmo combate e ambas raciocinam por analogia.
Por meio principalmente de sua anamnese familiar, C. G. Jung sabe disso melhor do que ninguém. Toda a sua obra consiste em sua ampla expressão.
Em suma, a superação da sombra às vezes complacente da Maçonaria. Fazer “como se” a sombra não existisse, ou ainda desprezar o fenômeno, o que significa tentar suprimi-la, recalcá-la, ou acreditar que sua própria identidade e a sombra são um só, significa sempre arriscar “perigosas dissociações”.
Em cada um de nós, sempre existe um reino melancólico e neurótico, sem dúvida, mas também uma outra fortaleza bem protegida atrás dos muros de onde a esquizofrenia nos observa…
Para o maçom, evoluir ao trabalhar com as ferramentas simbólicas, ao passar progressivamente do esquadro ao compasso, sem esquecer a régua, o prumo, o nível e às vezes até mesmo o machado que fende e a maça que estimula ou esmaga, sempre significa conciliar-se consigo mesmo, reunir-se, decantar sua pessoa verdadeira para melhor engajar sua eclosão, de acordo com um método de progressão particular. Trata-se de se revelar para melhor se identificar com medida e discernimento.
Alguns textos falam até mesmo de “trabalhar sobre si mesmo para estar na medida para se incorporar ao edifício comum”.
Consequentemente, como na análise, na poltrona, face a face, ou deitado em um divã, em conversa, “como a sombra está próxima do mundo dos instintos, levá-la em consideração contínua é indispensável” (sic). Não se pode temporizar ou tergiversar.
Se a cura da alma existe, é frequentemente pela aceitação e pela apreensão inteligentes da Sombra que a libertação se dá.
E, aliás, em La guérisonpsychologique que Jung explica: a “Sombra personifica tudo aquilo que o sujeito se recusa a reconhecer ou admitir e que, no entanto, se impõe sempre a ele, direta ou indiretamente como, por exemplo, os traços do caráter inferiores ou outras tendências incompatíveis”.
Aliás, com um humor que revela e faz sentido, C. G. Jung evoca “a cauda do sáurio” da qual o homem não consegue se livrar para se tornar um ser realmente civilizado! Em Aion, ele exprime sem ambiguidade:
“A sombra é essa personalidade, oculta, recalcada, com muita frequência inferior e carregada de culpa, cujas ramificações mais extremas remontam até o reino de nossos ancestrais animais e engloba assim todo o aspecto histórico do inconsciente…”.
Assim, a confrontação com a Sombra, às vezes frontal, é muitas vezes gradual e digna de uma peregrinação iniciática sem fim. Ela permanece o ponto comum forte, denso, incontornável, o Centro essencial do círculo de busca comum em que gira o compasso simbólico do analisado segundo Jung e do maçom especulativo. Nesse território pouco conhecido, pode-se encontrar também, sem dúvida, o alquimista em busca de quintessência ou o gnóstico reencontrado que sonha com o conhecimento absoluto.
Os arqueólogos da alma estariam todos, mais ou menos, em diálogo imaginário constante com a sombra? Temos o direito de pensá-lo. E o caminho de Jung e suas marcas sobre essa terra de inocência e de culpabilidade nos instigam.
Alguns dias antes de sua morte terrestre – no plano espiritual, o “cadáver” se mexe mais do que nunca! -, o demasiado velho e Venerável “Sábio” Jung (ele morreu em 6 de junho de 1961, aos 86 anos!) tinha sobre sua mesa de leitura as obras do filósofo e poeta Teilhard de Chardin e parecia entusiasmado pelas ideias mãe do autor do Phénomène humain (1955).
Poder-se-ia pensar que, antes de entregar sua alma à Sombra, Jung pensou nesse enigmático “ponto ômega” de Teilhard para o qual converge a humanidade em movimento e em busca de Verdade?
Maxence, Jean-luc, in JUNG é a Aurora da Maçonaria O Pensamento Junguiano na Ordem Maçônica, Madras 2004.
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