
Mesmo com a recorrente advertência de que a doutrina espírita era, acima de tudo, uma ciência de observação, de onde derivava uma filosofia com conseqüências morais, os fundamentos espiritualistas da nova ideia levaram-na a ser interpretada como nova crença, nova religião.
Assim, seus fundamentos: existência de Deus, preexistência e sobrevivência do Espírito, reencarnação, mediunidade, pluralidade dos mundos habitados, considerados como conhecimentos e práticas espiritualistas presentes em toda a história da humanidade, foram encarados sob uma perspectiva racionalista-naturalista e organizados como corpo de doutrina.
Para o codificador do Espiritismo, esses fundamentos, embasados nas “Leis Divinas ou Naturais”, na lei dos fluidos/magnetismo, na lei de ação e reação, na lei de evolução, tinham como objetivo precípuo uma consequência moral.
Em síntese:
O Espiritismo era o Cristianismo no seu aspecto de ensino moral, na prática moral dos ensinamentos evangélicos, fundada numa rigorosa justiça divina que permitia aos homens a felicidade futura.
O Espiritismo reviu a moral cristã à luz dos ensinamentos dos Espíritos, fundamentando a lei evangélica da relação permanente entre os vivos e os habitantes do mundo invisível.
O advento do Espiritismo no Brasil, com sua alternativa de “fé racional” de alentada referência na “ciência positiva”, encontraria entre os maçons, atacados pelo catolicismo ultramontano, condições favoráveis de disseminação.
Observe-se que a segunda metade do século XIX fora marcada, no Brasil, pela difusão do positivismo e do evolucionismo junto às elites letradas e liberais, de tal modo que a adesão de maçons a esses postulados tornara-se uma resposta ao movimento ascendente de romanização católica, de acirrado combate aos modernismos.
Convém, portanto, refletir sobre os aspectos religiosos das práticas maçônicas, tendo em vista que o considerável número de maçons-espíritas não encontraria explicações plausíveis apenas nos elementos filosóficos racionalistas e cientificistas que partilhavam, e que não lhes constituía exclusividade na sociedade de então.
Genericamente, a Maçonaria pode ser definida como uma fraternidade masculina, iniciática, evolucionista e racionalista, pautada no respeito à diversidade de ideias e crenças de seus membros, exigindo dos mesmos a reverência a um Ser Supremo, um Criador.
Dessa exigência, decorre uma questão que tem sido motivadora de preconceitos e graves conflitos: É a Maçonaria, então, uma religião?
A Maçonaria se apresenta como uma “religião sem dogma”, “eminentemente religiosa”, professando uma “religião natural”.
Ou seja, há um pressuposto espiritualista oriundo dos “mistérios antigos”, acrescido dos desenvolvimentos modernos do racionalismo e do cientificismo, dos quais deriva uma perspectiva filosófica e moral que se harmoniza com a essência das religiões monoteístas praticadas por seus membros.
Essa característica religiosa da instituição maçônica lhe rendeu severa oposição e muitas perseguições da religião católica, especialmente a partir do século XVIII, após a constituição da Maçonaria moderna ou Especulativa.
A radicalização racionalista do movimento iluminista do final do século XVIII, configurada nas revoluções burguesas que derrubaram as estruturas do Antigo Regime, legou à Maçonaria a condição de inimigo número um da religião católica, que exacerbou o caráter religioso e político daquela, através do mito dos complôs.
Fator que agravara esse quadro tenso fora é o surgimento de uma corrente maçônica radicalmente laica e materialista, que se proclamava sociedade de pensamento com fins culturais e políticos, com finalidades explícitas de combater o clericalismo e a influência “obscurantista” da religião na sociedade obstaculizando o progresso humano.
Assim o fez o Grande Oriente da França, em 1877, seguido em outros países, sobretudo latinos, de modo mais ou menos radical.
No Brasil, apesar da influência cultural francesa no século XIX, não se configurou de modo determinante a característica antireligiosa das maçonarias francesa e italiana, embora o anticlericalismo tenha feito seus prosélitos com bastante alarde até pelo menos a década de 1920. Porém, a religiosidade maçônica não se limita à obrigatória crença em Deus, denominado Grande Arquiteto do Universo (G.A.D.U.).
Em 1922, nas comemorações do centenário da Independência do Brasil, o Grande Oriente do Brasil, no Rio de Janeiro, publicou o Livro Maçônico do Centenário, rica coletânea de informações e ensinamentos onde destaca substanciosa autodefinição:
- Ela [a Maçonaria] não é uma política, nem uma religião, nem uma filosofia, no sentido particularizado de todas essas coisas. Ela é tudo isto, entretanto, ao mesmo tempo – política sem partido, religião sem dogma, filosofia sem conclusões obrigatórias.
- É ela tudo que resume anseio humano para a perfeição, tudo que dá asas ao intelecto e o liberta da escravidão das seitas, tudo que é luz posta no caminho da vida para a peregrinação interminável, por que justamente busca a perfectibilidade inatingível.
Há, também, quem defenda a Maçonaria como “eminentemente religiosa” ou “sumamente religiosa”, por considerarem-na portadora de uma “religião natural” que possibilita a seus membros, a partir da diversidade religiosa, o desenvolvimento dos ritos em direção à compreensão cada vez mais profunda das leis divinas e da “Verdade”.
No Ritual do aprendiz maçom (1870), J. M. Ragon ensina:
- A Maçonaria é uma sociedade íntima de homens escolhidos, cuja doutrina se fundamenta sobre o amor de Deus, sob o apelativo de Grande Arquiteto do Universo, e sobre o amor para com todos os homens.
- Sua norma é a religião natural e a moral universal. Reconhece por causa a verdade, a luz, a liberdade; por princípio a igualdade, a fraternidade, a caridade; por armas, a virtude, sociabilidade, o progresso; por objeto o aperfeiçoamento e a felicidade do gênero humano que procura reunir sob uma única bandeira.
Essa “religião natural” maçônica conservando elementos esotéricos das tradições e Mistérios Antigos, aos quais se acrescentaram pressupostos racionalistas, positivistas e evolucionistas dos séculos XVIII e XIX, configurou com o Espiritismo e a Teosofia, promovida pela Sociedade Teosófica, uma grande corrente moderno espiritualista.
Afinidades históricas e doutrinárias valem também para as relações entre maçons e teosofistas – que, aliás, remontam a muitos séculos antes do surgimento da Sociedade Teosófica11, em 1875, sob a liderança de Helena P. Blavatsky.
Observe-se, por exemplo, o entendimento sobre o significado de religião na proposição da Sociedade Teosófica, a partir do entendimento de Blavatsky, e sua correspondência ao significado do mesmo termo na Maçonaria.
Para a fundadora da Sociedade Teosófica... “Apesar da imensa diversidade que oferecem do ponto de vista exterior, todas as religiões têm um fundo comum nas ideias dogmáticas, filosóficas e morais”.
Mais adiante, acrescentando: De fato, o estudo comparado das religiões demonstra que os ensinamentos fundamentais sobre a Divindade, o homem, o universo, a vida futura, são substancialmente idênticos em todas elas, apesar de sua diversidade aparente. [...] Esta base comum de todas as religiões dignas deste nome explica-se por que todas elas emanam da Grande Fraternidade de Instrutores Espirituais, que transmitiram aos povos e raças as verdades fundamentais da religião, sob a forma mais apropriada às necessidades daqueles que deviam recebê-las, bem como às circunstâncias de tempo e lugar.
Destaca-se nessa definição, o “fundo comum” dogmático, filosófico e moral das religiões, o “estudo comparado das religiões” e sua inspiração celeste nos ensinamentos da “Grande Fraternidade de Instrutores Espirituais”.
Esses aspectos farão eco junto à Maçonaria.
Num referenciado dicionário maçônico, por sua vez, o autor também partirá do reconhecimento de que, apesar da diversidade de cultos externos, “todas as religiões apresentam uma base comum em seus internos princípios morais, filosóficos e místicos”.
Mais adiante, o autor justifica a assertiva: Com efeito, o estudo comparativo das religiões demonstra serem idênticos os seus ensinamentos fundamentais sobre a Divindade, o homem, o universo, a vida futura, porém adaptados à época e ao povo a que se destinaram.
Por outras palavras, são as mesmas as suas verdades esotéricas, que não raro aparecem desfiguradas em seus cultos exotéricos.
Seus imortais fundadores foram todos Mensageiros da Verdade única, que deram à humanidade seu evangelho de União e Fraternidade, para que através do Amor as almas se religuem entre si e ao Supremo.
Tal semelhança de perspectiva – “base comum” das religiões, “estudo comparativo” das tradições religiosas, inspiração comum nos “Mensageiros da Verdade única” – já se evidenciara na fundação de Sociedade Teosófica, na iniciação maçônica de Blavatsky e na pertença maçônica de diversos de seus colegas – “irmãos” – fundadores e seguidores.
Essa concepção religiosa da Maçonaria confrontava diretamente o dogmatismo da religião tradicional, atraindo sua reação, da mesma forma quando da radicalização laicista, anticlerical e materialista de algumas potências maçônicas.
Delineadas as condições das afinidades entre Maçonaria e Espiritismo, Maçonaria e Teosofia, restam as relações entre Espiritismo e Teosofia.
Além das diferenças de nomenclatura na descrição das leis e fenômenos espirituais – ocidentalização com o Espiritismo, orientalização com a Teosofia – e do tratamento esotérico (Teosofia) versus tratamento exotérico (Espiritismo) dessas questões; desponta um aspecto central na oposição entre as duas doutrinas: a condenação teosófica à invocação dos mortos, por considerá-las próprias das almas inferiores, grosseiras e com efeitos espirituais perniciosos.
Essa divergência com um dos fundamentos do Espiritismo fundava-se numa perspectiva divergente do que seria o “Espírito”.
Para Allan Kardec: A alma é um Espírito encarnado e o corpo é apenas o seu invólucro. Há no homem três coisas:
1.º) O corpo ou ser material, semelhante ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital;
2.º) A alma ou ser imaterial, espírito encarnado no corpo;
3.º) O liame que une a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito.
[...] O liame ou perispírito que une corpo e Espírito é uma espécie de invólucro semimaterial.
A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro.
O espírito conserva o segundo, que constitui para ele um corpo etéreo, invisível para nós no seu estado normal, mas que ele pode tornar acidentalmente visível e mesmo tangível, como se verifica nos fenômenos de aparição.
Já para Helena Blavatsky: O espírito é uniforme e imaterial e, quando se encontra individualizado, é da mais elevada substância individual.
Suddasattva, a essência divina, de que é formado o corpo dos mais elevados Dhyânis que se manifestam.
Por conseguinte, os teósofos repelem a denominação de “Espíritos” para aqueles fantasmas que aparecem nas manifestações fenomenais dos espíritas [...] o Espírito não é uma entidade no sentido de ter forma [...] porém, cada espírito individual [...] pode ser descrito como um centro de consciência, um centro autosenciente e autoconsciente; um estado, não um indivíduo condicionado.
Ambos consideravam como tarefa primordial, o combate ao materialismo, assegurando para si o lugar de proeminência no concerto espiritualista, detentores que se consideravam, das verdades últimas da moderna espiritualidade.
Desse modo, para Kardec: Sem dúvida alguma as crenças espiritualistas dos tempos passados já não conseguem satisfazer hoje. Não se acham no nível intelectual de nossa geração.
Em muitos casos, estão em contradição com os dados seguros da Ciência.
Transmitem ao espírito ideias incompatíveis como a exigência do positivo que predomina na sociedade moderna. Além disso, incorrem no erro imenso de impor-se pela fé cega e de condenar livre exame. O resultado é, incontestavelmente, o desenvolvimento da incredulidade na maioria. [...]
Quantas pessoas que, graças ao Espiritismo, voltaram a crer, disseram: ‘Se nos tivessem apresentado Deus, a alma e vida futura de maneira racional, jamais teríamos duvidado!’.
A líder teosófica, por sua vez, tratando dos obstáculos enfrentados na difusão da moderna teosofia e da conveniência do seu aparecimento, informava: Justamente porque se considerou que chegou o tempo apropriado, fato demonstrado pelos esforços determinados de tantos estudantes sérios para alcançar a verdade [...] seus guardiães permitiram que ao menos algumas porções daquela verdade fossem proclamados.
Se a formação da Sociedade Teosófica tivesse sido adiada por mais alguns anos, metade das nações civilizadas ter-se-ia tornado, por essa época, materialista radical, e a outra metade antropomorfista e fenomenalista.
Enquanto Kardec defendia a superioridade do Espiritismo em relação ao espiritualismo “dos tempos passados” e seu poder terapêutico sobre a incredulidade, Blavatsky situa a proclamação de “porções” da verdade – autorizada pelos “guardiães” – através da Sociedade Teosófica, como o grande antídoto ao materialismo.
Note-se sua referência indireta às “crenças espiritualistas dos tempos passados”, ou “antropomorfismo”; e ao Espiritismo ou “fenomenalismo”.
Enfim, espíritas e teosofistas tendo concepções próximas sobre Deus, evolução espiritual, reencarnação, lei de causa e efeito ou karma, pluralidade dos mundos ou planos habitados, diferenciavam-se na forma de abordar esses conteúdos.
Segundo Yvonne Castellan, apenas num “detalhe” se entendem espíritas e teosofistas: quando “atribuem aos Evangelhos um sentido secreto, esotérico, de origem hindu, que Jesus teria conhecido através dos Essênios”.
E, conclui: “Espiritismo e Teosofia, doutrinas próximas e longínquas, em todo caso interferentes”.
Assim, o moderno-espiritualismo, como rede de pensamento composta por maçons, espíritas e teosofistas, propiciava afinidades eletivas e alianças intelectuais entre esses agentes, em sua maioria como a dupla pertença – maçônico-espírita, maçônico-teosófica – enquanto atuavam em diversos espaços da vida social.
Assentava-se nos seguintes fundamentos:
(a) difusão da antiga lei dos renascimentos sucessivos (reencarnação);
(b) evolução espiritual;
(c) evolução planetário-cósmica;
(d) possibilidade de comunicação entre os vivos e os mortos (mediunidade);
(e) aliança entre religião e ciência;
(f) complementaridade entre todas as crenças religiosas, fundada na unidade das leis divinas;
(g) a defesa e a prática da liberdade, da fraternidade e da solidariedade entre todos os povos, crenças e raças.
Essa múltipla pertença intelectual, embora guardando uma relação de cumplicidade, solidariedade e fraternidade, às vezes quebradas pelos conflitos internos a cada configuração, demonstra, em primeiro lugar, que as trajetórias individuais diferenciadas desses agentes refletiam condições alternativas de formação de um status intelectual que favoreceu a constituição de ampla corrente de pensamento moderno-espiritualista.
Em segundo lugar, constituía um movimento intelectual que, mesmo reconhecendo as especificidades históricas e doutrinárias inerentes a cada uma das três instituições, compunha uma relativa unidade no tocante ao sentido profundo/oculto da religião, à explicação da essência do homem, do seu papel social e da destinação da Humanidade.
Esses princípios espiritualistas difundidos por nesses segmentos permitiram delinear uma perspectiva não apenas espiritual, mas, significativamente sociopolítica, que os identifica como alternativa moderno-espiritualista no contexto dos debates sociais no Ceará da primeira metade do século XX, especialmente no tocante à chamada Questão Social.
Esta era entendida, por esses segmentos, como fundamentalmente uma questão moral-espiritual.
Tais proposições têm como característica marcante a intervenção no mundo, levando consigo a mensagem autonomista da transformação do homem, no intuito de impulsionar evolutivamente seu progresso, relativizando o providencialismo da religião tradicional.
Adensando-se nas classes altas e, sobretudo, médias, essa rede de pensamento concorria com a hegemonia católica na definição de uma nova espiritualidade, propondo-se colaboradora na solução dos problemas sociais vigentes.
Enfim, quebrado o monopólio católico da manifestação religiosa pública, emergia o debate sobre a intercessão da religião com as esferas privada, pública e estatal.
Esse debate sobre as relações entre religião e política no Brasil, no contexto de difusão do moderno-espiritualismo, guarda uma dimensão sócio-histórica original tendo em vista os percursos distintos de maçons, espíritas e teosofistas e os intercâmbios de suas religiosidades.
Defensores da necessidade de um Estado laico, os moderno-espiritualistas estiveram mais propensos ao republicanismo, às ideologias liberais, e às vezes até libertárias, tendo em vista sua perspectiva humanista da autotransformação dos indivíduos e sua irradiação benéfica ao todo social.
Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Setembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3 ISSN: 1807-6971 Disponível em: www.revistafenix.pro.br
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