A Cosmologia de Platão - ENTENDIMENTO

A. E. Taylor

Tradução: Tassos Lycurgo & Sandra Erickson

Publicado em: Princípios, v. 7, n. 8, jan./dez., 2000, p. 138-143.


Através de um breve resumo de um ou dois dos princípios mais importantes da cosmologia platônica, assim como são dadas no Timeu, é que posso concluir esse esboço. 

Como temos visto, Platão mantém que o fato sensível real, como ele se dá, não pode ser objeto da ciência exata; temos que nos contentar em lidar com o mundo físico nos termos de ‘opiniões prováveis’. 

Sendo assim, a cosmologia do Timeu é formalmente anunciada como sendo grandemente mesclada com o mito. 

E nem sempre é fácil estabelecer onde o mito consciente desaparece e onde o que Platão considera como um relato pelo menos provável do fato não mítico começa. 

Além disso, não é surpreendente que mesmo na própria Academia tivesse havido uma variedade considerável de opiniões sobre as reais visões de Platão concernentes ao mundo físico. 

De minha parte, julgo ser o mais desejável aqui expor o que Platão diz, sem muito adentrar nas intermináveis disputas sobre o significado do que ele quer dizer. 

O Timeu é, em sua forma, não apenas uma cosmologia, mas também uma cosmogonia. 

Ele não descreve apenas a estrutura do universo físico, mas pretende contar a história de sua formação. 

O mundo sensível, de acordo com a narrativa, não é eterno, pois é algo que ‘se torna’, isto é, que está sujeito à mudança incessante.

O universo teve, portanto, um começo e uma causa.

Essa causa aparece no Timeu como uma divindade personificada, o Demiurgo ou o feitor do mundo. 

A razão para a feitura deve ser relacionada à bondade de seu feitor; sendo em si mesmo bom, Demiurgo desejou comunicar sua própria perfeição a algo fora de si. 

Por essa razão, ele, tanto quanto foi possível, moldou o mutável mundo dos sentidos em função do imutável mundo das idéias eternas. 

A partir da unidade deste modelo, Platão deduz a unidade daquele, a cópia, o universo físico e, portanto, declara-se contra a doutrina da ‘pluralidade de mundos’. 

Mas Platão vai mais longe: não apenas é o mundo visível um e, portanto, não são muitos, mas também é um organismo vivo, dotado de alma e corpo próprios. 

É, pois, um único ‘animal’, o qual abraça dentro de si mesmo todas as formas menores de vida animal, assim como o modelo a partir do qual o mundo dos sentidos foi copiado é um ‘animal inteligível’, ou uma ‘ideia de animal’, que, em toda a sua extensão lógica, compreende todos os mais variados ‘tipos’ de espécie animais. Platão, então, prossegue na descrição da formação de ambos a alma e o corpo do grande animal-mundo. 

Em ambos os casos, a formação não é uma criação a partir do nada; o que Demiurgo faz é combinar em proporções fixas e a partir de leis definidas elementos cujas existências já são pressupostas. 

‘alma’ do mundo é construída a partir de três elementos, quais sejam, Semelhança, Dessemelhança e uma entidade que é descrita como proveniente de uma união preliminar das duas primeiras. 

Aqui, parece que temos uma referência, em forma mítica, aos três níveis de cognição por nós conhecidos desde a República: a apreensão das Idéias imutáveis, as ‘opiniões’ a respeito da incalculável variedade dos fatos existentes e a apreensão da classe intermediária dos objetos ‘matemáticos’.

O corpo do universo é composto dos tradicionais quatro elementos de Empédocles: fogo, ar, água e terra. 

Platão, todavia, não aceita tais elementos como algo definitivo e desnecessário de análises. 

Ele tenta, de forma notável, estabelecer as fundações de uma matemática puramente física ao reduzir as diferenças entre os ‘elementos’ às diferenças entre as suas estruturas geométricas. 

As moléculas — como agora devemos chamá-las — das quatro substâncias elementares são feitas para correspondentes respectivamente aos quatro sólidos geométricos regulares: o tetraedro, o octaedro, o icosaedro e o cubo. 

As arestas dos três primeiros sólidos podem todas ser construídas ao se colocarem juntos ao mesmo tempo os triângulos retos cujas hipotenusas meçam o dobro de sua menor aresta; para a construção da face quadrada do cuboPlatão utiliza quatro triângulos retos isósceles. 

Essa diferença na característica dos triângulos elementares, a partir dos quais os sólidos regulares são construídos, é usada para explicar o fato considerado por Platão como a razão pela qual fogo, ar e água são conversíveis um no outro, mas não em terra. 

A análise matemática da matéria como forma geométrica alcança seu ponto mais alto quando Platão explicitamente identifica a ‘matriz’ ou ‘substrato’ da mudança física com o espaço, antecipando, assim, a teoria física de Descartes, da mesma forma em que, com a teoria ‘reminiscência’, Platão antecipa a concepção de ‘ideia inata’, do mesmo filósofo.

O que procede da cosmogonia própria do Timeu é considerar a formação da alma e corpo humanos. 

As almas ‘imortais’ dos futuros seres humanos são feitas pelo próprio Demiurgo do mesmo material que ele previamente usou para construir a alma do mundo; as duas almas ‘mortais’ inferiores, das quais nós falamos quando tratamos da psicologia de Platão, são então moldadas e adicionadas à alma imortal pelas divindades menores, as quais, por suas vezes, encontram-se entre as primeiras criações depois da alma do mundo. 

Mais uma vez, teremos de transpor os muito interessantes detalhes da fisiologia sensorial e da psicofísica platônicas.

No que concerne às questões excessivamente difíceis que aparecem quando tentamos interpretar o grande mito cosmogônico de Platão, posso apenas dizer uma ou duas palavras. 

Tem havido um grande número de discussões sobre se Demiurgo é para ser pensado como uma divindade pessoal ou como uma personificação puramente imaginativa do ‘bem’. 

Talvez a verdadeira resposta seja que ele nem é um nem outro. 

A distinção aguçada que possuímos, ou, pelo menos, julgamos possuir, entre pessoal e impessoal dificilmente já existia em algum pensador grego antigo; sua própria língua, de fato, não possui nenhum termo que possa expressar tal distinção. 

E, novamente, o ‘bem’ aparece de forma tão manifesta no Timeu quanto o modelo contemplado pelo artista divino na construção do seu trabalho, onde não podemos, alheios às confusões intelectuais, identificá-lo com o artífice. 

Em uma sentença, a última do diálogo, onde, de acordo com alguns manuscritos, a identificação é feita, a palavra  ποιητoν é claramente uma leitura equivocada de νoητoν, presente em outros manuscritos. 

Esse erro se dá, provavelmente, pelo mal entendimento da construção da palavra.) 

A inferência natural, proveniente da bem conhecida visão da alma como origem de todos os movimentos, seria a que reza que a atividade de Demiurgo é uma representação imaginativa do grande pensamento de Anaxágoras, de quem foi a mente que colocou tudo em ordem. 

Perguntar se esta mente é ‘pessoal’ é cometer um anacronismo.

Desde o tempo de Xenócrates, pupilo imediato de Platão, em diante, existe uma efervescente disputa quanto à questão se Platão realmente pretendeu atribuir ao universo físico um começo ou se ele tinha em mente apenas um artifício para, através de uma ficção narrativa, apresentar uma análise lógica do mundo físico a partir de seus fatores constituintes. 

Esta última opinião foi definitivamente aceita como correta por toda a escola neoplatônica, a qual estava ansiosa por encontrar em Platão a doutrina aristotélica da eternidade do universo, mas talvez tenha encontrado maior repercussão nos expositores mais modernos. 

A outra interpretação, de acordo com a qual Platão está determinado em atribuir ao universo um começo, foi, nada obstante, a de Aristóteles. 

Essa visão também foi defendida por Plutarco em seu sensato ensaio sobre A Formação da Alma do Mundo no Timeu de Platão. 

Embora se deva deixar o leitor chegar à sua própria conclusão a partir do estudo independente do texto de Platão, eu não posso deixar de expressar minha própria convicção de que Plutarco está certo em manter que a teoria da eternidade do mundo só pode ser lida em Platão em caso de, no intuito explícito de se satisfazer uma conclusão prevista, esmagarem-se os sentidos das mais óbvias expressões, configurando-se, desta feita, uma violenta e artificial exegese.

Ao mesmo tempo, Platão não concebe o mundo como tendo um começo ‘no tempo’, desde que ele expressamente concebe o tempo como uma duração regular e medida, e, desse modo, coevo com o movimento regulares dos corpos celestes. 

O que veio antes do ‘mundo’ ordenado, de acordo com a narrativa platônica, foi um estado das coisas, no qual nada mais existia senão movimento confuso e sem lei. 

Uma comparação do Timeu com o mito no Politicus, com seus ciclos alternados, em um dos quais Deus dirige o curso do universo, enquanto no outro tal curso é deixado por si só e, por conseqüência, torna-se gradativamente desregrado, abeirando-se cada vez mais da dissolução total no caos, até que seu criador, mais uma vez, ‘tome o elmo’; parece-me, assim como também ao falecido Dr. Adam, sugerir a conclusão de que Platão, assim como outros pensadores antes dele, acreditou na história de que o universo era feito de períodos alternados de decaimento e reconstrução e, assim, o que temos no Timeu é a representação de um período de reconstrução, que seguiu a um prévio, de dissolução. Se é esse o caso, os materiais com os quais Demiurgo molda seu ‘mundo’ seriam, grosseiramente falando, as ruínas de um mundo que houvera existido anteriormente e, sendo assim, nós devemos prontamente entender por que este é o ‘mundo’, e não os elementos, ou seus triângulos constituintes, dos quais é dito terem tido um começo.

Uma questão relativamente menor de astronomia merece uma menção especial, desde que ela concerne à alegação de que Platão deve ser considerado entre os ‘copernicanos anteriores a Copérnico’ da Antiguidade. 

No Timeu, Platão antecipa tanto Copérnico ao ponto de admitir, como o fazem os pitagóricos, uma revolução da terra a cada dia? 

Os fatos são os seguintes. 

É universalmente reconhecido que o Timeu, além de colocar a terra no centro do universo, explica a alternância do dia e da noite e os trajetos do sol e dos planetas, através de uma maneira a partir da qual se implica a imobilidade da terra central. 

O dia e a noite se dão graças à uma revolução que se processa na abóbada celeste mais externa, a qual leva ao redor de si tudo o que está contido em seu compasso. 

Os caminhos aparentes do sol e dos planetas são então resolvidos, cada um deles, em função da combinação de dois fatores circulares: a rotação axial de cada um no plano do equador e o movimento de revolução, peculiar a cada planeta, que ocorre no plano da elíptica, em sentido oposto à revolução diária, tendo um período mais longo, qual seja, o ‘ano’ do planeta em questão. 

Essa análise estaria arruinada se supuséssemos que a terra central fosse tudo, exceto estática. 

Acontece, entretanto, que, ao falar da posição da terra no sistema solar, Platão emprega uma palavra ambígua e poética, cujo significado literal é ser ‘empacotado’ ou ‘espremido’ contra algo, mas que também possui o significado adquirido de movimento confinado em um pequeno espaço e ao redor de algo. 

Suas palavras podem ser versadas em inglês de forma que preservem a ambiguidade de texto original, assim, ‘terra, nossa mãe adotiva, a qual é enrolada (rolled) ao redor dos eixos que se esticam de uma ponta a outra de tudo’. 

Bem, Aristóteles cita essas mesmas palavras, nomeando o Timeu como sua fonte e acrescentando a expressão ‘e se move’ após a expressão ‘é enrolada’, como prova de que alguns pensadores tinham negado a imobilidade da terra. 

Desta feita, Grote tem mantido que o Timeu expressamente reconhece a rotação diária da terra sobre seu eixo e que Platão apenas negligenciou a inconsistência entre tal rotação e o resto de sua astronomia. 

Um descuido tão patente, todavia, parece tão improvável que é muito mais fácil supor que Aristóteles foi enganado pelo uso de Platão de uma palavra tão ambígua e rara ou, possivelmente, como mantém August Boeckh, alguns seguidores de Platão já tinham mal compreendido o texto do Timeu no sentido a ele atribuído por Aristóteles.

É certo, todavia, que em idade extremamente avançada, Platão modificou suas visões astronômicas de um modo que implica no reconhecimento da mobilidade da terra. 

Com a autoridade proveniente do incontestável testemunho de Teofrasto, sucessor de Aristóteles, quem foi em pessoa um pupilo de PlatãoPlutarco nos diz mais que um par de vezes que Platão ‘em idade avançada’ arrependeu-se de ter colocado a terra no centro do universo, uma posição a qual deveria estar reservada para um ‘corpo melhor’. 

Tal assertiva encontra-se em excelente acordo com uma passagem de As Leis, na qual Platão nega que os caminhos traçados pelos planetas sejam realmente compostos e declara que cada um deles tem, apesar da aparência contrária, um movimento único, simples e uniforme. 

Isso, claramente, implica que um dos dois movimentos atribuídos a cada planeta no Timeu deve ser uma aparência ilusória devida ao movimento real da terra. 

Se Platão concebeu este movimento da terra, como os pitagoristas tardios o fizeram, como uma revolução ao redor de um centro ou como uma rotação sobre um eixo, e, no primeiro caso, se ele, assim como os pitagoristas, pensou que o centro do universo é um corpo invisível para nós ou é como o sol, os dados não nos permitem decidir. 

De qualquer forma, é interessante notar que Platão, mesmo nos seus últimos anos, pensou nesses assuntos como ainda susceptíveis de progresso, e é instrutivo observar que, assim como outros astrônomos da Antiguidade, ele somente alcançou a verdade sobre a mobilidade da terra ao ignorar uma verdade ainda mais fundamental, qual seja a de que todo movimento circular é composto. 

Se, de qualquer sorte, ele antecipa Copérnico, não teve o menor presságio do infinitamente mais profundo pensamento de Galileu e Newton.


Taylor, A. E. Cosmology. Em: _______. The Mind of Plato (originally Plato). 

Michigan: University of Michigan, 1960, cap. IV. (Primeiramente publicado em 1922 por Constable and Company Ltd.) 

Trans. by Tassos LYCURGO and Sandra ERICKSON. Princípios, v. 7, n. 8, jan./dez., 2000, p. 138-143. ISSN: 0104-8694.



A LA DIVINA PROPORCIÓN

A ti, maravillosa disciplina,
media, extrema razón de la hermosura
que claramente acata la clausura
viva en la malla de tu ley divina.

A ti, cárcel feliz de la retina,
áurea sección, celeste cuadratura, misteriosa fontana de mesura que el universo armónico origina.

A ti, mar de los sueños angulares,
flor de las cinco formas regulares caedro azul, 
arco sonor Luces por alas un compás ardiente.
Tu canto es una esfera transparente.

A ti, divina proporción de oro.

Rafael Alberti


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