A “fé racionalizada” que encontramos nos mitos platônicos...


... que encontramos nos mitos platônicos consiste, em síntese, em admitir, finalmente, que o homem encontra-se de passagem pela terra e que a vida terrena constitui para ele uma prova. 

A verdadeira vida situa-se no além, mas, para alcançá-la, será necessário adotar um determinado tipo de conduta que, em seu nível inicial, deve possuir um conteúdo pelo menos ético. 

A doutrina da metempsicose abriga não só a ideia de justiça como também a ideia de desenvolvimento do caráter virtuoso. 

Depreende-se, tanto do Fédon quanto da República, que a alma será julgada exclusivamente com base nos critérios da justiça e da injustiça, da temperança e da devassidão, da virtude e do vício. 

E o desenvolvimento da virtude pode ocorrer na sucessão de diversas vidas, durante as quais o “atritar” dos dissabores terrenos com a própria consciência pode “despertar” a alma esquecida. 

Esta ideia do significado “libertador” das dores e dos sofrimentos humanos transparece em todos os mitos escatológicos, que adquirem significado preciso: “a vantagem sobrevém às almas apenas através de dores e sofrimentos, tanto na terra como no Hades, porquanto não há outra maneira pela qual possamos nos libertar das injustiças” (REALE, 2004, p.157). 

E toda esta soma de sofrimentos, neste mundo e no outro, é só uma parte da longa educação da alma, que encontrará o seu último termo na libertação do ciclo dos renascimentos e no retorno da alma à sua origem divina (REALE,1993, p.185).

“Esta é a razão pela qual nós estamos adstritos, após visões imperfeitas incessantemente renovadas, a descensões parciais e que precisamos constantemente repetir” (GOLDSCHMIDT, p.51). 

Entretanto, como nos mostra Platão no Fédon, a simples prática da virtude comum não é garantia de retorno da alma ao divino, pois, “as almas que tiverem vivido na prática da virtude, não da virtude filosófica, mas da comum, encarnar-se-ão em animais mansos e sociáveis ou até mesmo em homens honestos.” 

Para ascender a níveis mais elevados, a alma deverá libertar-se cada vez mais dos elementos corpóreos, e isto deverá ser feito através de um constante processo de purificação: 69 [...] purificação não é justamente o que diz a tradição antiga? Separar o mais possível a alma do corpo, habituá-la a recolher-se e a fechar-se em si mesma, alheia a qualquer elemento corpóreo, e a permanecer, tanto quanto possível, tanto na vida presente como na futura, só, inteiramente desligada do corpo como de suas cadeias? (PLATÃO, Fédon, 1954, pg. 31) 

Por conseguinte, a associação da alma com o corpo deve ser constantemente cuidada, pois ela corre o risco, a cada instante, de tornar-se muito íntima; de modo que a alma, para melhor dirigir seu corpo, deve velar, ininterruptamente, para manter as distâncias. 

São, portanto, úteis os momentos de solidão que proporcionam a evasão temporária da alma, que as necessidades da vida a cada instante interrompem (GOLDSCHMIDT, p.76). 

Toda vez que a alma tenta examinar qualquer coisa em associação com o corpo, é claramente enganada por ele. [...] 

Ela raciocina melhor quando nenhuma destas coisas a perturba, quer a audição quer a visão, quer a dor quer o prazer, estando ela assim, tanto quanto possível, sozinha e isolada, apartada do corpo e evitando, na medida do possível, toda associação ou contato com o corpo, na busca da sua realidade (PLATÃO, Fédon, 65, b-c). 

Por outro lado, a alma, enquanto encarnada, se vê obrigada a utilizar deste corpo como de um instrumento sem o qual ela não poderia alcançar as Formas e nem imitá-las (GOLDSCHMIDT, p.74). 

Assim, tudo se resume em tornar este instrumento o mais perfeito possível através de práticas cotidianas. 

Dessa forma, e como já mencionado, a alma deverá ser purificada para desligar-se do apego corpóreo e, ao mesmo tempo, o corpo também deverá ser cuidado para propiciar a purificação da alma. 

O processo de purificação da alma se realiza na medida em que a alma, ultrapassando os sentidos, conquista o mundo do inteligível e do espiritual, mergulhando nele como em algo que lhe é co-natural (REALE, 2004, p.153). 

Nas doutrinas órficas já se falava de um processo de purificação através de rituais sagrados, entretanto, para Platão, este processo se diferenciaria daquelas cerimônias de iniciação e, tomando o caminho pitagórico, visaria a elevação através do conhecimento supremo do inteligível.  

Platão desenvolveu o significado profundo que os pitagóricos atribuíam à ideia de purificação seguida de revelação. 

Como já visto, Pitágoras teria sido o primeiro filósofo grego a tratar da questão da alma como algo de moralmente importante. 

E, desta forma, a busca pelo conhecimento juntamente com a prática de uma vida virtuosa seriam prerrogativas para a purificação da alma e sua libertação do ciclo de nascimentos. 

O conhecimento através do qual se processa esta libertação é a contemplação da verdade que advém através de determinado tipo de vida (CORNFORD, p.179). 

E é precisamente sobre esse valor de purificação atribuído à ciência e ao conhecimento que é necessário refletir para que se compreenda a novidade do “misticismo” platônico. 

Esse misticismo não consiste na contemplação estática e alógica, mas no esforço catártico de busca e ascensão progressiva ao conhecimento. 

Compreendendo o significado disto, será possível compreender como o processo do conhecimento racional também represente, para Platão, um processo de conversão moral. 

Ora, na medida em que o processo de conhecimento conduz a consciência humana do sensível para o supra-sensível, transportando-a de um mundo para o outro, também a conduz da falsa para a verdadeira dimensão do ser. 

Por conseguinte, é conhecendo que a alma cura a si mesma, realiza a própria purificação, se converte e se eleva (REALE, 2004, p.153, grifo nosso). 

Esta busca pelo aperfeiçoamento manifestar-se-á em todas as situações concretas da existência terrestre; ela implica, por derivação, todas as normas que regem o conhecimento e a ação, da música à dialética, da moral individual à política (GOLDSCHMIDT, p.75). 

Para Platão, é na filosofia que se encontra o verdadeiro treino para esta vida efetivamente autêntica e o filósofo é aquele que busca a verdadeira vida, podendo alcançar a dimensão exclusiva à qual somente os deuses tem acesso: À estirpe dos deuses, entretanto, não é permitido chegar a quem não tenha cultivado a filosofia e não se tenha desligado do corpo em situação de total pureza, pois concede-se essa permissão apenas àquele que foi amante do saber. (PLATÃO, Fédon, 114) 

Ou, ainda, nas palavras de Goldschmidt: Unicamente a alma separada do corpo e libertada das servidões da Caverna verá as Formas face a face. 

O filósofo deverá assumir essas servidões e, assim como não lhe é permitido antecipar, pela morte voluntária, sua libertação, assim também ele não deverá antecipar nem crer advinda a iniciação perfeita. 

Talvez seja por isto que o platonismo é antes um método que uma doutrina, ou mais exatamente, a pesquisa incansável de uma doutrina que se crê e se sabe fundada imutavelmente na realidade, mas que nos é sempre antes “proposta” que “dada” e que não nos cabe fixar (GOLDSCHMIDT, p.51). 

Concluindo, depreende-se do quanto acima que a Inteligência é a chave que torna possível o processo de verdadeiro conhecimento e, como sua consequência, a purificação e elevação da alma. 

Apesar de que a matéria onde a alma humana está encerrada a induz à ignorância e ao “esquecimento”, esta ignorância é incessantemente informada pela constante persuasão da Inteligência, que atua sobre ela (GOLDSCHMIDT, p.64). 

Assim, à medida que o conhecimento aumenta, aumenta a responsabilidade do homem. 

O processo de conscientização implica em perda de liberdade perante o erro. 

Nas palavras de Golschmidt (p.23), “a Inteligência das Formas e, para além das Formas, do Bem, dirige e obriga nosso conhecimento à nossa ação. 

Desde então, libertos para ver e para saber, somos engajados pelas exigências do Ser; o conhecimento impõe-se à nossa vontade, e não mais somos livres diante do erro. 

A procura da Verdade faz-se obediência ao Bem. 

A Inteligência pura, desligada inteiramente dos sentidos e, portanto, de mesma natureza que a Verdade, quando se harmoniza com o inteligível cria o elo que permite ultrapassar as imposições que são feitas à alma pela sensação, pela percepção, pela linguagem, pelas inclinações e paixões, pela educação ou pelo preconceito (GOLDSCHMIDT, p.64). 

E, assim, [...] o homem cujo pensamento está preso à verdadeira realidade não tem tempo para se preocupar com as questiúnculas dos homens, nem para tomar parte nas suas disputas, nem tampouco para sofrer o contágio das suas invejas e ódios. 

Contempla um mundo no qual reina uma ordem harmoniosa e imutável, onde impera a razão e onde ninguém pode fazer ou sofrer mal algum; e assim como se imita um companheiro que se admira, não poderá deixar de se moldar à sua semelhança. 

Também assim o filósofo, na companhia constante da ordem divina do universo, acabará por reproduzir essa ordem na sua alma e por se tornar, tanto quanto isso é possível a um homem, semelhante aos deuses (PLATÃO, República, 500, apud Cornford). 

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