A Origem da Alma – do Orfismo a Platão

 

A Origem da Alma – do Orfismo a Platão

“[…] aqueles que cultivam a filosofia da maneira correta se exercitam para morrer, a morte se afigurando para eles menos temível do que para quaisquer outros seres humanos.” (Platão)

O objetivo deste trabalho é apresentar a Origem da Alma, tanto do ponto de vista histórico, percorrendo os caminhos que levam ao surgimento deste tipo de estudo na Filosofia Ocidental, quanto – e, principalmente – do ponto de vista ontológico, que é o cerne desta pesquisa. 

Trilhando uma trajetória que se inicia com as crenças órficas, visita-se os pré-socráticos e chega-se a Platão, cujo interesse pelas questões da alma atinge um elevado patamar. Como pano de fundo, e não como objetivo principal, emerge a questão da dualidade existencial. As crenças órficas encerram a ideia de dualidade dentro da existência humana, ou seja, a ideia de que corpo e alma possuem estatutos ontológicos distintos. Esta ideia encontra receptividade em Platão e, perpassando a Filosofia Antiga, influencia, também, o Cristianismo primitivo.

Introdução

O tema apresentado insere-se no campo da Metafísica e pretende fazer uma breve análise da alma humana sob o olhar dos primeiros filósofos do Ocidente. Não serão encontradas conclusões definitivas, já que estas não podem ser esperadas no universo metafísico. É, pois, um estudo que se fundamenta inteiramente na especulação filosófica.

O nome A Origem da Alma, escolhido para este trabalho, apresenta uma dupla conotação: de um lado, aponta para o nascimento da temática da alma dentro da Filosofia Ocidental, ou seja, para aquele momento da história ocidental em que começa a surgir a investigação filosófica daquilo que denominou-se “alma”. Por outro lado, o título refere-se à especulação metafísica propriamente dita, no sentido de efetivamente abordar o que é a Alma, qual a sua matéria, qual a sua origem, se , realmente, um momento de origem.

O título encerra, assim, duas vertentes que conduzirão às questões que nos interessam. O desenvolvimento do trabalho caminhará na direção destes dois focos distintos que, durante o percurso, se entrelaçarão. O primeiro enfoque, o histórico, conduzirá o leitor através de uma investigação que objetiva descobrir quais os autores ou correntes filosóficas que primeiramente teriam vislumbrado a existência de uma “alma” no homem; O segundo enfoque, nosso verdadeiro objetivo, pretende compreender os sistemas cosmológicos dos pensadores escolhidos, numa tentativa de extrair dos mesmos suas concepções sobre a alma.

O período de abrangência desta pesquisa estende-se do século VI a.C ao século IV a.C, ou, em termos de escolas, do período de manifestação da escola de mistérios denominada Orfismo até a época de Platão. Entre estes dois períodos será verificada, também, a literatura dos pré-socráticos no que se refere ao tema em questão, literatura esta que não poderia ser deixada de lado devido à importância de seu legado.

Dentre os pré-socráticos, será dada especial importância a Pitágoras e à escola dos pitagóricos que, juntamente com o Orfismo, exerceram forte influência sobre o pensamento metafísico de Platão e, a partir dele, sobre grande parte do pensamento cristão primitivo.

Quanto à bibliografia utilizada, é importante ressaltar que os órficos não deixaram nada escrito e, por esta razão, tornou-se bastante trabalhosa a escolha de fontes verdadeiramente primárias. Encontram-se referências aos órficos na filosofia dos Antigos, entretanto, na maior parte das vezes, estas encontram-se envoltas por brumas. Por esta razão, torna-se fundamental nesta área a apresentação de fontes fidedignas de pesquisa, como é o caso do trabalho dos professores Kirk, Raven e Schofield, da Universidade de Cambridge, e do Professor Werner Jaeger, da Universidade de Harvard, sérios pesquisadores dos Antigos.

O trabalho do Prof. W. Jaeger é de fundamental importância pela sustentação dada à tese de que a teologia desenvolvida no período grego que vai do século VI ao IV a.C – ou seja, o período que compreende desde o movimento órfico até Platão -, foi fortemente acolhida no mundo cristão primitivo. Em sua obra Cristianismo primitivo e Paidea grega, vemos que as recentes descobertas dos manuscritos do mar Morto e dos escritos gnósticos encontrados em Nag-Hammadi, no Alto Egito, conduzem a novas investigações históricas referentes aos primórdios do Cristianismo e a uma reavaliação de um dos fatores determinantes para a história da religião cristã: a cultura e a filosofia gregas, com toda a rica bagagem teológica daquele período.

Da mesma forma, o livro dos professores Kirk, Raven e Schofield, Os Filósofos Pré-Socráticos, é de grande importância por sua seriedade em citar as antigas fontes acompanhadas de suas traduções. As fontes diretas de estudos destes autores foram Plutarco, Sexto Empírico, Clemente de Alexandria, Hipólito, Diógenes Laércio e João Estobeu, enquanto os testemunhos por eles utilizados foram os de Platão, Aristóteles e Teofrasto, além de toda a tradição doxográfica.

Deve ser ressaltada, também, a forte relevância do Prof. Giovanni Reale para este estudo, até porque, a oportunidade de presenciar uma sua recente palestra sobre o tema, pouco antes do término deste, serviu para dar o impulso final à sua realização.

Todos estes escritores utilizaram-se das obras fundamentais “Die Fragmente Der Vorsokratiker” ou Fragmentos dos Pré-Socráticos, de Hermann Diels, e “Orphicorum Fragmenta”, de O. Kern, ambas verdadeiros pontos de referência para as citações de todos os pré-socráticos e testemunhos órficos.

O Orfismo é particularmente importante para esta pesquisa porque, como os estudiosos modernos reconheceram, introduz na civilização grega um novo esquema de crenças e uma nova interpretação da existência humana. Efetivamente, enquanto a concepção grega tradicional, a partir de Homero, considerava o homem como mortal, pondo na morte o fim total de sua existência, o Orfismo proclama a imortalidade da alma e concebe o homem conforme o esquema dualista que contrapõe o corpo à alma.

Apesar de que um estudo focado apenas sobre a escola órfica e a pitagórica já nos traria uma indubitável riqueza de elementos referentes à alma humana e sua trajetória, é em Platão que estes elementos se encontram e se organizam de uma forma bastante completa e lógica, muitos destes elementos servindo de base posterior para a teologia cristã. Em Platão, a questão da alma é abordada em diversos diálogos e há uma preocupação extrema em explicar a sua relação com o corpo material e com o Todo universal.

Assim, a proposta deste trabalho é:

  • apresentar o surgimento e desenvolvimento da temática da alma no período inicial da antiga filosofia grega; e
  • compreender a problemática da alma em si e as diversas construções de sua ontologia.

Em última instância, e não como objetivo principal deste estudo, será verificada a hipótese da presença de uma distinção entre corpo e alma nas crenças órficas e a recepção desta dualidade existencial na filosofia platônica.

Ao percorrermos este caminho, sobretudo nas elaborações pertinentes à imortalidade da alma, nos defrontaremos, inevitavelmente, com questões referentes ao divino e à forma como os primeiros pensadores abordaram e tentaram responder a esta questão. 

Não há como falar de alma imortal sem vislumbrar um princípio de mesma forma imortal capaz de sustentá-la.


Autora: Anna Maria Casoretti

Fonte: Revista Pandora Brasil

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