GEOMETRIA SAGRADA SIMBOLISMO E INTENÇÃO NAS ESTRUTURAS RELIGIOSAS - A Geometria Sagrada da Renascença (11)

 

"Deus também criou o homem à sua própria imagem: pois, como o mundo é a imagem de Deus, também o homem é a imagem do mundo.”
H. Cornelius Agrippa, Filosofia oculta.


Com a redescoberta dos velhos modos romanos clássicos de arquitetura, a geometria linear superposicional do período medieval foi rapidamente suplantada por uma geometria poligonal centralizada. 
No século XV, na Itália, pode-se ver uma transição gradual nos pIa­nos das igrejas da Cruz Latina tradicional para a centralizada. 
Essa tendência centralizadora, derivada da prática pagã antiga, tem sido vista por muitos historiadores como emblema de um movimento de fuga das crenças cristãs transcendentes da Idade Média para um ethos mais humanista, antropocêntrico. 
Essa noção reducionista de que a crença, cristã medieval mergulhara num ataque furioso de hu­manismo ateísta exaltado ignora as correntes subterrâneas do pensa­mento geométrico do período.
As igrejas centralizadas colocaram o problema da separação hierárquica da congregação e do clero e, mais fundamentalmente, a questão do sítio do altar. 
Os requintes da geometria centralizada, todavia, estavam crescendo. 
Uma obra-chave para a compreensão dessa nova geometria é o primeiro tratado arquitetônico da Renascença, De re aedificatoria, escrito entre 1443 e 1452 pelo arquiteto Alberti. 
As origens pagãs de suas idéias estão mais claramente apre­sentadas nos seus desenhos para templos, como ele denomina as igrejas. 
O círculo, afirma ele, é a forma primária que, acima de todas as outras, é favorecida pela natureza, começando-se pela própria forma do mundo. 
Para os templos, Alberti demonstra o uso de nove figuras geométricas. Utiliza o círculo, cinco polígonos regulares (o quadrado, o hexágono, o octógono, o decágono e o dodecágono) e três retângulos (o quadrado e meio, o quadrado e um terço e o qua­drado duplo).
A partir dessas plantas baixas, Alberti desenvolve anexos geométricos que servem como capelas laterais. Estas são retangulares ou semicirculares na forma e estão relacionadas radialmente ao ponto central. Com a adição de figuras geométricas simples ao poIígono básico ou círculo, pode-se produzir uma classe quase infinita de configurações.
Alberti inspirou-se nos edifícios vitruvianos da era clássica, mas, estranhamente, a forma central que ele mais privilegiou não era co­mum nos templos daquele período. 
Apenas três templos redondos restaram dos tempos clássicos - o famoso Panteão e dois pequenos templos peripteriais em Tivoli e em Roma. 
A grande maioria dos templos clássicos seguia, naturalmente, um plano retangular. 
Toda­ via, durante a Renascença, outros edifícios poligonais da antigüi­dade - como o "templo de Minerva Médica", dodecagonal, em Roma, na verdade o nymphaeum dos Orti Licianini, e as primeiras estruturas cristãs, tais como o Santo Stefano Rotondo e Santa Cons­tanza - eram considerados como templos antigos.
Vitruvio nem mesmo chegou a incluir edifícios redondos entre as sete classes de templos enumeradas no seu Terceiro Livro, mas, ao invés, mencionou-os em forma de apêndice no Livro Quarto ao lado da aberrante forma toscana. 
Todavia, a predileção de Alberti pela forma poligonal, influenciada pelos Sólidos Platônicos, justifi­cava-se com o pretexto de que representava uma volta à simplicidade litúrgica da Roma de Constantino. 
Naquele período, o Colégio Ro­mano de Arquitetos foi compelido a transferir sua perícia do desenho dos templos para os pagãos à criação de igrejas para a nova fé oficial. 
O período constantiniano foi especialmente poderoso para a mentalidade da Renascença, pois que ele representava o único ponto de fusão da arquitetura clássica totalmente desenvolvida com a fé pura do Cristianismo Imperial.
Todavia, na Roma de Constantino, a forma normal das jgrejas era a basílica, um padrão derivado dos Tribunais de Lei. Alberti não aprova esse tipo de edifício, mas menciona de passagem que os cristãos primitivos utilizaram basíIicas romanas particulares para a celebração dos seus ritos. 
A basílica, assento da justiça humana, rela­cionava-se à religião de maneira simbólica: como se afirmava que a justiça era um dom de Deus; a presença de Deus está para todo o sempre na esfera das decisões jurídicas e, por conseguinte, a basí­lica foi levada para o reino da adoração.
O plano fundamentalmente humano e funcional da basílica foi considerado muito prosaico por Alberti. Ela não desperta no observador um sentimento de reverência e de piedade, Ela não possui o efeito de purificação que induz um estado de inocência primal que agrada a Deus porque não foi construída de acordo com a geometria sagrada. 
Nas igrejas centralizadas da Renascença, a forma geomé­trica é explícita, diferentemente da geometria arcana que subjaz àbasílica ou à igreja gótica, uma geometria só apreciável pelo ini­ciado. 
Num plano da Renascença, a geometria pura domina esma­gadoramente. 
Cada uma das suas partes está harmonicamente rela­cionada, como os membros de um corpo, tornando manifesta a na­tureza da divindade.
Como muitos dos seus contemporâneos, Alberti escreveu extensamente sobre os atributos da igreja ideal. Como seu tema correlato, a cittá ideale, ou cidade ideal, essa igreja é uma expressão idealizada do absoluto cósmico, desenhado como uma manifestação visível da harmonia divina, um conceito essencialmente neoplatônico. 
Alberti pretendia que sua igreja fosse construída num terreno elevado, livre em todos os lados, no centro de uma praça vistosa. Devia ser ba­seada num plinto elevado que servia para protegê-Ia contra a profa­nidade da vida cotidiana e ser cercada por uma colunada, à ma­neira dos antigos templos dedicados a Vesta.
Sua geometria explícita devia ser coberta por um domo vis­toso, que devia ser adornado internamente com caixotões segundo o estilo do Panteão. 
A abóbada do domo também devia aparentar se­melhança com o céu, na tradição da interpretação cósmica univer­sal do templo. 
Assim, como na arquitetura ortodoxa oriental e gó­tica ocidental, toda a igreja redonda era um emblema do mundo ­- a manifestação criada da Palavra de Deus: um receptáculo perfeito da humanidade.
Como as igrejas redondas do período dos Templários, essas igre­jas centrais não eram vistas apenas como microcosmos do mundo, mas também como símbolos da universalidade de Deus. 
Muitas igre­jas centralizadas reviveram inconscientemente o cubo cósmico na forma de um altar central. O centro, o "uno e absoluto", na icono­grafia cristã, é um reflexo d’Aquele que só existe em verdade. 
Porque sua onipresença era representada pela realização dos sacramentos, o altar era o centro, o omphalos para o qual todos os raios do edifício convergiam.
Muitas dessas igrejas centralizadas foram dedicadas à Virgem Maria. Essa tendência possuía uma razão simbólica. 
Desde o período mais antigo da religião cristã, o culto da mãe de Cristo considerava-a a rainha do céu e a protetora de todo o universo. 
Essas idéias sur­giram da associação da mitologia com seu sepultamento, sua assunção e sua coroação, ecoando a coroa circular da rainha celeste a antiquíssima tradição dos céus circulares.
As igrejas circulares, todavia, conseguiram um sucesso de curta duração. 
O maior número delas foi construído no período de 1490 a 1560. A Cristandade não desistiria tão facilmente das suas tradi­ções. 
Em 1483, um artista italiano, Domenico Neroni, seu patrono Ascanio de VuIterra e um sacerdote anônimo foram executados por sacrilégio. 
Inspirados pelo desejo avassalador de conhecer o Número Perfeito e as proporções que guiavam os escultores antigos na fei­tura das efígies dos deuses, eles conceberam um esquema de evoca­ção desses deuses. 
Foram sentenciados à morte por realjzarem atos de magia ritual. As proporções antigas foram tão estreitamente li­gadas à religião pagã, que foi só uma questão de tempo a Igreja rejeitar os "templos" de Alberti baseados em sua origem pagã. 
Even­tos como este devem ter espalhado as sementes da dúvida na mente dos ortodoxos.
Em 1554, Pietro Cataneo, em seu livro I quattro libri di archi­tettura, reiterou o conceito de que o templo era um símbolo do corpo de Deus. Afirmou que, por essa razão, as catedrais deviam ser dedicadas a Cristo crucificado e, como tal, deviam seguir a forma da Cruz Latina. 
Em 1572, Cado Borromeo, em Instructionum Fabricae ecclesiasticae et Superlectilis ecclesiasticae, investiu contra a forma redonda das igrejas afirmando que ela era pagã. 
Segundo o Concílio de Trento, ele também recomendou o uso da Cruz Latina.
Embora houvesse controvérsia e sugestões de heresia em rela­ção ao uso de igrejas redondas, os sistemas proporcionais antigos eram tidos como admiráveis pelos ortodoxos. 
Um documento rela­tivo a S. Francisco della Vigna, em Veneza, fornece-nos um esclare­cimento sobre o sistema proporcional utilizado nas igrejas da Renas­cença construídas com formas ortodoxas. 
O Doge de Veneza, An­drea Gritti, assentara a pedra fundamental da nova igreja no dia 15 de agosto de 1534 e a construção foi iniciada sob as ordens de Ja­copo Sansovino. Mas, como nas primeiras dificuldades da Catedral de Milão, surgiram discussões a respeito do sistema proporcional a ser utilizado. 
Um entendido em proporção, Francesco Giorgi, um monge franciscano que publicara em 1525 um tratado sobre a Har­monia Universal (De Harmonia Mundi Totius), foi encarregado de escrever um comentário sobre o plano de Sansovino. 
O tratado de Giorgi fundira teoria neoplatônica e cristã, o que produziu o efeito de reforçar a crença já existente na eficácia da razão numérica.
Para essa igreja, Giorgi sugeriu que a largura da nave tivesse nove passos, já que essa medida é o quadrado de três. 
Três é o pri­meiro número real nos termos pitagóricos porque tem um começo, um meio e um fim. 
O comprimento da nave deveria ser três vezes a largura, o cubo simbólico, 3x3x3, que, como a Cidade da Reve­lação ou o Santo dos Santos judaico, contém as consonâncias do Universo. A razão entre a largura e o comprimento, 9:27, também é analisável em termos musicais, formando um diapason e um diapente (uma oitava e uma quinta). Giorgi, assim, sugeriu a progressão do lado masculino do triângulo platônico para a nave da igreja.
No lado oriental da igreja, a capela deveria ter nove passos de largura e seis de comprimento, representando a cabeça do Homem Vitruviano. No comprimento, essa capela repetia a largura da nave e, na largura, possuía a razão 2:3, um diapente. 
O coro, também, tepetia as dimensões da capela oriental, resultando toda a igreja em 5x9 = 45 passos de comprimento, um disdiapason e um dia­pente em termos musicais. As capelas laterais da nave eram largas de três passos, e o transepto, de se.is passos. A razão da largura das capelas do transepto para aquela da nave era 4:3, um diatessaron. A altura do teto também mantinha uma relação de 4: 3 com a lar­gura da nave.
Esse sistema global, relacionado às proporções ideais do Homem Vitruviano e às harmonias cósmicas de Platão e Pitágoras, foi recebido com prazer, e até implementado, depois de ter passado pelo pintor Ticiano, pelo arquiteto Serbio e pelo filósofo humanista For­túnio Spira. 
A fachada da igreja foi completada por Palladio trinta anos depois, de acordo com o mesmo sistema de proporções e de razões harmônicas.
Palladio foi um dos maiores expoentes da geometria sagrada da Renascença. 
Em seus influentes Quattro libri dell'architettura, Andrea Palladio tentou elaborar um exame geral de toda a arqui­tetura. Ele, naturalmente, acentuou seu débito para com Vitrúvio, e também Alberti. 
Todavia, foi a Vitrúvio que Palladio deveu sua maior inspiração. 
Para ele, Vitrúvio era a chave dos mistérios da ar­quitetura antiga, seus sistemas de proporção e seu simbolismo oculto. Mas Palladio não possuía apenas um conhecimento acadêmico da arquitetura clássica. 
Ele viajara por toda a Itália visitando os restos desses edifícios e produzindo esboços detalhados das medidas a fim de verificar as afirmações vitruvianas.


Palladio escreveu: "Embora a variedade e as coisas novas agra­dem a todos, elas não devem ser executadas ao contrário dos pre­ceitos da arte e ao contrário daquilo que a razão dita; donde se de­preende, que embora os antigos variassem, eles nunca se afastaram das regras de arte universais e necessárias". 
Com esse exioma em mente, Palladio pôs-se a reinterpretar a geometria sagrada clássica antiga no desenho de seus memoráveis edifícios. As villas de Palladio foram desenhadas com uma simetria rígida derivada de uma única fórmula geométrica. 
Os compartimentos e seus pórticos foram baseados num retângulo dividido por duas linhas longitudinais e quatro linhas transversais. 
A sua obra mais famosa, merecidamente, é a Villa Rotondo, um desenho magistral que gerou muitas imita­ções inferiores. Aparentemente, o desenho é mais adequado para um edifício religioso, já que é óbvia nele uma origem cósmica. Em essência, é composto do quadrado quartado da terra que suporta o domo circular do céu. 
Em todos os edifícios de Palladio, as razões harmônicas são utilizadas no interior de cada compartimento e na relação de cada compartimento com um outro. 
A velha geometria sagrada dos templos pagãos foi refinada num sistema que serviu às residências palacianas dos ricos.
Palladio exerceu uma influência profunda sobre a arquitetura da Renascença e mais tarde, na Inglaterra, Inigo Jones popularizou seu estilo. 
Em seus Qllattro libri, Palladio alude a um sistema geral de proporção que utilizou em todas as suas incumbências. Ele de­talha o que considera ser as proporções mais harmoniosas para as razões largura: comprimento dos compartimentos. 
Como as igrejas de AIberti, a obra de PalIadio recomenda as sete formas místicas dos compartimentos: circular, quadrada, a diagonal do quadrado para o comprimento do compartimento V2, um quadrado e um terço, um quadrado e meio, um quadrado e dois terços e o quadrado duplo. As razões recomendadas são as seguintes: 1; 1:1; V2:1; 3:4; 2:3; 3:5 e 1:2. A terceira é a única que é incomensurável nessa pro­gressão e é o único número irracional geralmente encontrado na geo­metria sagrada da Renascença. 
Ela aparece em Vitrúvio num sis­tema comensurável e, como tal, talvez represente o último vestígio da geometria sagrada grega antiga, sobrevivente como um fragmento no período romano.
Palladio afirma que há três grupos diferentes de razões que fornecem boas proporções para compartimentos e dá para cada um deles um modo de cálculo das alturas baseado num método geomé­trico e aritmético. 

Supondo-se que um compartimento meça 6x 12 pés (o quadrado duplo), a sua altura deverá ser de 9 pés. Se ele medir 4x9 pés, sua altura deverá ser de 6 pés. 
No método aritmé­tico, o segundo termo excede o primeiro na mesma medida em que o terceiro excede o segundo. No método geométrico, o primeiro está para o segundo termo assim como o segundo está para o terceiro. 

Um outro exemplo, mais complexo, é fornecido: o método har­mônico.
Para um compartimento de 6x12, a altura, pelo método harmô­nico, será de 8 pés. Esse método geométrico estava de acordo com a idéia dos harmônicos exposta no Timeu de Platão como "a média excedendo um extremo e sendo excedida pelo outro pela mesma fração dos extremos". Na progressão 6:8:12, a média 8 excede 6 em 1/3 de 6 e é excedida por 12 em 1/3 de 12.
Talvez Palladio tivesse extraído essa idéia diretamente das obras de Alberti, mas ela também fora tratada por Giorgi em seu Harmonia Mundi e por Ficino em seu comentário sobre o Timeu. Ela está baseada, naturalmente, na teoria musical clássica e, como tal, provém diretamente da Harmonia das Esferas, a pulsação mística do Uni­verso reconhecida igualmente por pagãos e por mágicos. 

Essa idéia é comum à Renascença e ao período medieval, mas foi durante esse último período que ela foi formalizada no comentário de Ficino e em obras como De Musica, de Boécio.
Considerava-se que o uso, na arquitetura, de harmonias deri­vadas musicalmente era uma expressão da Harmonia Divina engen­drada no ato de criação por Deus; em termos modernos, o "eco" da Grande Explosão que deu início ao Universo. 

Por meio dessa ex­pressividade da Harmonia Divina, estavam integrados os símbolos duais do templo como o corpo do Homem, o microcosmo, e o templo como incorporação da totalidade da criação. 
Em De Sculptura, pu­blicado em 1503, o autor Pomponius Gauricus formula a seguinte questão: "Que geômetra, que músico foi esse que formou o homem dessa maneira?" Gauricus, novamente, baseou amplamente as suas teorias no Timeu de Platão.

A conexão explícita entre as proporções visuais e audíveis na Renascença traz novamente à baila a possibilidade de que ela possa ter sido derivada inicialmente da necessidade de se construir os templos como instrumentos que pudessem canalizar as energias telú­ricas. 
No pensamento pitagórico-platônico, a própria música era vista como uma expressão da Harmonia Universal e era parte essencial da formação de um arquiteto. 
Os grandes arquitetos da Renascença de Brunelleschi em diante estudaram avidamente a música dos antigos. As aberrações arquitetônicas eram vistas em termos de discordância musical e essas alterações do sistema de proporção sig­nificariam que o templo não podia mais agir como um instrumento para a produção da Harmonia Divina. 
Por exemplo, durante a cons­trução da igreja de S. Francisco, em Rimini, Alberti preveniu Matteo de Pasti de que a alteração das proporções das pilastras "destruiria todas as relações musicais".
Escritores como Lomazzo referem-se constantemente ao corpo humano em termos de harmonia musical. 

Por exemplo, a distância entre o nariz e o queixo e entre o queixo e o encontro das claví­culas é um diapason, Lomazzo, em seu Idea del Tempio della Pit­tura, publicado em 1590, afirma que mestres como Leonardo, Miguel Ângelo e Ferrari chegaram ao uso da proporção harmônica por meio do estudo da música. 
Lomazzo menciona como o arquiteto Giacomo Soldati acrescentou às três ordens gregas e às duas romanas uma sexta, que chamou de Ordem Harmônica. 
Soldati era um enge­nheiro que estava envolvido principalmente com a construção de má­quinas hidráulicas e, assim, era adepto da utilização do conhecimento geométrico necessário à criação de uma sexta ordem de arquitetura. Infelizmente, não sobreviveu nenhum desenho dessa sexta ordem, nem existe edifício algum construído nesse estilo. 

Todavia, pretendia-se que a sexta ordem deveria conter todas as qualidades inerentes às cinco ordens originais e expressar mais vigorosamente a unidade bá­sica e os padrões harmônicos do Universo.
Acreditava-se que a sexta ordem fosse a recriação da ordem per­dida do Templo de Jerusalém, que foi inspirada diretamente por Jeová quando ordenou a Salomão que o construísse segundo medi­das preordenadas. 

As alegações pagãs dos ortodoxos foram silen­ciadas. 
A ortodoxia total do Templo de Salomão, ordenada direta­mente por Deus, foi o precedente para a aplicação das razões har­mônicas da geometria sagrada nos edifícios cristãos. A reconstrução do Templo tantas vezes destruído também se tornou o objetivo de muitos arquitetos desse período. Como Soldati, o jesuíta espanhol Villalpanda estava interessado na recuperação da sexta ordem. Suas pesquisas levaram a uma nova geração do desenho.
Talvez a mais impressionante e complexa obra dentre aquelas que foram ocasionadas pelas teorias a respeito do Templo de Jeru­salém tenha sido El Escorial, o estupendo palácio-mosteiro erigido sob as ordens de Felipe II de Espanha. 
A fundação do Mosteiro de San Lorenzo de El Escorial, para dar seu nome completo, foi con­cebida como um ato de ação de graças pela vitória espanhola na ba­talha de San Quentin.

EI Escorial foi construído como um resultado direto de um voto sagrado que Felipe II fez na véspera da batalha. Travada no dia de São Lourenço, a 10 de agosto de 1557, a batalha resultou na derrota dos franceses pelas forças de Felipe. 
Em reconhecimento desse dia momentoso, o eixo da igreja, e por conseguinte todo o padrão geométrico do mosteiro, foi orientado para o ponto do pôr-­do-sol a 10 de agosto. 
Esse procedimento era extremamente inco­mum, pois o nascer-do-sol era e é universalmente reconhecido como o horário correto para a determinação de tais alinhamentos.
Diz-se que o plano geral do edifício, na forma de uma grelha, lembra o martírio apavorante do santo padroeiro, de quem o rei era um devoto. Felipe decidiu construir esse grande estabelecimento monástico para a Ordem Hieronimita e o planejou de acordo com revelações bíblicas. A obra de construção foi iniciada a 23 de abril de 1563 e completada 21 anos depois. 

O arquiteto Juan Bautista de Toledo foi encarregado de dirigir a obra, mas, com sua morte prematura, seu assistente Juan de Herrera levou-a adiante e completou com êxito um magnífico edifício sagrado num estilo muito pessoal. 
Não obstante, a despeito da sua marca pessoal, os princípios seguiam estritamente os preceitos canônicos. Felipe II e Juan Herrera eram seguidores ardorosos do místico espanhol Ramón Lull, cujas expo­sições matemáticas da Harmonia Universal lhe haviam conseguido a pena de morte por heresia anti-islâmica durante a ocupação moura.
Herrera aplicara anteriormente as harmonias derivadas musi­calmente em sua construção da catedral de Valladolid e pretendeu fazer o mesmo com o Escorial. 
Basicamente vitruviana em desenho, a geometria é a do ad triangulum. Toda a planta baixa abrange o Homem Vitruviano. 
No planejamento global, o Escorial ecoa o Campo dos Israelitas, um tema abordado por Villalpanda em seu tratado erudito sobre Ezequiel. 
Como a imagem do microcosmo, o mosteiro foi fundado num dia astrológica e historicamente favorável e desde o princípio pretendeu-se que ele seria o epítome de todas as artes e letras da época.
O ambiente dos círculos místicos espanhóis da época da fun­dação do Escorial produziram uma obra monumental, In Ezechie­lem Explanationes. 
Embora fosse publicada após o completamento do mosteiro, ela fornece a chave das idéias inextricavelmente envol­vidas na obra. 
Dois jesuítas, Juan Bautista Villalpanda e Jeronimo Prado, puseram em prática durante longo tempo uma série de pes­quisas complexas e esmeradas sobre a estrutura e o simbolismo do Templo de Salomão e a sua interpretação na visão de Ezequiel. 
A reconstrução, e o raciocínio que está por trás dela, ocupa a maior parte do segundo dos três tomos que comentam o Livro de Ezequiel. Estes livros foram financiados por Felipe lI, a quem foi dedicado o primeiro volume. 
A dedicatória diz que ele "parecia (...) Salomão na grandeza de alma e de sabedoria enquanto construía a mais magnífica e verdadeira das obras reais, San Lorenzo de el Escorial". 
Esta similaridade imaginosa com Salomão ecoa as mesmíssimas alusões aplicadas ao Imperador Romano Oriental Justiniano e ao Santo Imperador Romano Carlos Magno. 
Codimus relata que Justiniano, ao ver a grande igreja de Santa Sofia em Constantinopla, exclamou "Salomão, eu o excedi!" e Carlos Magno, segundo seu biógrafo Not­ker, o Gago, construiu as suas igrejas e seus palácios "seguindo o exemplo de Salomão". 
Além disso, um dos títulos ganhos por Fe­lipe II era Rei de Jerusalém e o Escorial foi modelado segundo o templo dessa cidade.
De acordo com VilIalpanda, a harmonia platônica utilizada por AIberti, PalIadio e Soldati fora revelada a Salomão por Deus. O sistema emprega as harmonias musicais do diatessaron, do diapason, do diapente, do diapason com diapente e do disdiapason; mas re­jeita a sexta consonância vitruviana do diapason com diatessaron. Por estes meios era a relacão complexa dos elementos da arquite­tura clássica relacionada à Vontade de Deus.

Esta vasta obra mística foi lida por um amplíssimo número de pessoas e exerceu uma influência muito grande, pois que sintetizava os mistérios escatológicos do Velho Testamento com as teorias greco­romanas platônicas de Vitrúvio. 
Herrera, o arquiteto tão intimamente ligado à execução dos desejos de Felipe II, é apontado por VilIal­panda como seu mestre. 
Como um discípulo de Herrera, Villalpanda estava na posição perfeita para expor os princípios ocultos do Es­corial e seu predecessor, o Templo salomônico. 
Sua reconstituição pode ser situada em 1580, dezesseis anos antes da publicação, e Herrera, ao ver os desenhos, teria comentado que um edifício de tal beleza só poderia provir de Deus.
Villalpanda e Prado não foram os primeiros comentadores a tentar uma reconstrução perfeita do Templo salomônico. Na ver­dade, o primeiro e talvez mais famoso bibliotecário do Escorial, Be­nito Arias Montano, publicara em 1572 a sua própria interpretação do Templo. 

O seu plano era todo em estilo clássico com uma torre de quatro estágios à maneira da Renascença. 
Villalpanda desprezou esse plano como uma fantasia porque "não seguia a especificação da santa profecia, nem mesmo em parte". 
VilIalpanda, um grande acadêmico versado na Bíblia e um hebraísta, acreditava que ele, através dos exercícios espirituais de sua ordem, chegara à verdadeira mani­festação do Templo. 
Suas raízes místicas, na verdade ocultas, esta­vam na Cabala hebraica, o cânone pagão de Vitrúvio, e no misti­cismo matemático do herético Ramón Lull.
Os recintos do templo, freqüentemente ignorados pelos reconstrutores posteriores, especialmente aqueles de credo protestante, fo­ram sumamente importantes para Villalpanda. 
Executadas com a forma geral de um quadrado, as sete cortes representavam astrologi­camente os sete planetas e outros pontos significativos, as casas as­trológicas e as tribos de Israel.
Nem todos os edifícios místicos do período voltavam às fontes bíblicas para dali retirarem sua inspiração. 
Um edifício único na Inglaterra, que exibe publicamente a geometria sagrada e a matemática oculta, é a famosa Loja Triangular, em Rushton, no Northam­ptonshire. 
Esse edifício devocional foi erigido sob as ordem de Sir Tomas Tresham, um devoto do catolicismo romano que desejou continuar sua adoração particular num clima político hostil àquela religião. 
A Loja Triangular era a sua expressão de sua devoção à Santíssima Trindade, e, sendo um emblema da Trindade, foi cons­truída na forma de um triângulo eqüilátero.
Cada um dos lados da loja tem um comprimento de 33 pés e 4 polegadas. 
Há três pavimentos: três janelas em cada andar em cada um dos três lados e cada janela divide-se em três. 
Há três inscrições latinas, cada uma das quais tem 33 letras. Uma delas, todavia, é o símbolo &, o que perfaz a centena redonda notável no comprimento total dos lados. 
O teto foi terminado com três fron­tões de cada lado, e um remate de três lados foi executado acima do teto. 
Abaixo das janelas do segundo andar, no lado da entrada. há a data 1593 e as iniciais do construtor, T. T. Mesmo a letra "T” é símbolo do três.

O ornameqto, se assim se pode chamar, está profundamente ocultado no volume. Num frontão há as figuras 3898 e abaixo delas
a Menorah, o candelabro de sete ramos dos judeus. No frontão seguinte, há a inscrição Respicite e um relógio solar. 
No tercejro frontão está o número 3509 e a pedra de sete olhos. 
Cada um dos três lados representa, assim, um aspecto da Trindade.



A loja continua sendo uma singularidade, embora uma igreja triangular emblemática da Santíssima Trindade tenha sido erigida em Bermondsey, em Londres, em 1962. 

Os edifícios triangulares são notoriamente desprovidos de praticidade na acomodação de fiéis e poucos foram construídos dessa maneira. 
A geometria sagrada faz concessões a esse respeito e capacita o arquiteto a incorporar o simbolismo numa maneira arcana. Tresham ultrapassou o método tra­dicional e cometeu uma "loucura" memorável - que continua sendo um testemunho de um extraordinário fervor religioso.

Mais ou menos no mesmo período, a magia, despojada de seu rótulo herético e praticada sob a nova ordem do Rosacrucianismo, começou a florescer abertamente na Inglaterra protestante e polímatos como John Dee e Robert Fludd, cujas pesquisas iam da mate­mátjca à alquimia, via astrologia e ocultismo, criaram vários sistemas de geometria sagrada que codificavam suas descobertas mágicas.

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