O caráter secreto das Ordens de Mistério

Henryk Siemiradzki : Phryne em Poseidonia, em Eleusis, 1889

Nas Ordens de Mistério da Antiguidade, sempre houve uma nítida separação entre o iniciado e o profano. 

Do iniciado exigiam-se severos votos de segredo. 

A publicação dos segredos, além de fazer os ensinamentos recaírem sobre ouvidos moucos, representava perigo para a sociedade iniciática, uma vez que, sendo um grupo pequeno e seleto e, muitas vezes, possível vítima de detração por parte da sociedade, expunha-a a perseguições políticas potencialmente fatais, como, por exemplo, aquela de que foi vítima a Escola de Crótona, fundada por Pitágoras.

A exigência do silêncio sobreviveu aos tempos. 

Começando nos Mistérios da Antiguidade, perpassou pelas corporações de pedreiros da Idade Média até as Ordens que, já existindo no fim da Renascença, ainda hoje subsistem. 

A tradição de manutenção do segredo quanto aos ensinamentos internos é, assim, bastante antiga.

Neste texto, ilustrado com fragmentos de textos antigos quatro evidências documentais (todas as traduções dos originais são do autor). 

Os documentos são dois textos do Corpus Hermeticum, mais precisamente o Asclepius, de que só nos resta a versão latina, e o Poimandres, em sua versão grega original, ambos relacionados ao Hermetismo; o livro De Iside et Osiride, de Plutarco, sobre os Mistérios Isíacos; o Manuscriptus Regius, do século XIV, das corporações de pedreiros; finalmente, The Anderson’s Constitution, do século XVIII, primeiro documento oficial da Grande Loja Maçônica da Inglaterra. 

Evidentemente os documentos históricos, todos de domínio público, mencionam o caráter secreto das ordens iniciáticas, não os seus segredos. 

Como diz Mircea Eliade (vide ELIADE, Mircea: A History of Religious Ideas, 1:294), “os ritos dos Grandes Mistérios, os verdadeiros segredos das iniciações (teletai) e a iluminação (epopteia) nunca foram divulgados” [the rites of the Greater Mysteries (…) the true secrets of the teletai (initiation proper) and the epopteia (the culminating vision) have never been divulged]. 

Lembre-se de que os Mistérios dividiam-se em Mysteria Minora e Mysteria Maiora.

No tratado hermético Asclepius, um dos tratados do Corpus Hermeticum, de Hermes Trimegisto [vide SCOT, Walter (ed.): Hermetica: The Ancient Greek and Latin Writings Which Contain Religious or Philosophical Teachings Ascribed to Hermes Trimegistus. Shambhala. Boston, 1993], a personagem Asclepius pede a Trimegistus que permita chamar Amon, para que este possa ouvir, junto com Asclepius, os ensinamentos que Trimegistus iria passar. Trimegistus termina seu prólogo pedindo que Asclepius chame Amon e ninguém mais e que, após receber os ensinamentos, mantenha silêncio sobre eles:

“Além de Amon, chama ninguém mais, para que um discurso tão religioso sobre tantas coisas não seja violado pela intervenção e presença de muitos. Com efeito, é de uma mente irreligiosa publicar, pela consciência de muitos, um tratado pleníssimo de divindade em toda majestade.”

Acredita-se que o Asclepius, pelo menos sua parte inicial à qual faço referência, foi escrito por volta do ano 100 a.C., o que indica que seu conteúdo é ainda mais antigo. 

Escrito originalmente em grego, provavelmente por algum professor de Alexandria, resta-nos apenas a sua versão latina, recolhida por Marsilio Ficino no século XV.

É comum encontrar a ideia de que o termo religiosum, isto é, “religioso”, deriva do verbo religare, que significa “religar”, dando-se a entender uma suposta “religação” do Homem com a Divindade. 

Essa ideia é falsa. 

Na verdade, a associação de religiosum a religare foi feita por Lactâncio e especialmente por Santo Agostinho em sua obra Retractationes, I, 13, no século IV de nossa Era. 

Santo Agostinho, já adepto do dogma da queda de Adão do Paraíso, encontrou nessa associação uma excelente justificativa para a imposição do dogma da queda e do consequente retorno do Homem a Deus pela óbvia intermediação da Igreja. 

Etimologicamente, porém, religiosum significa “aquele que cumpre sua obrigação”. 

Que esse é o significado verdadeiro é comprovado por Cícero, no século I a.C. e, portanto, mais de 400 anos antes de Santo Agostinho, em sua obra De Natura Deorum, II, 72, na qual se afirma que religiosum deriva do verbo relegere, que significa “reler”. 

Com efeito:

“Todos aqueles, porém, que pertencessem ao culto divino diligentemente repetissem como se relessem, são ditos religiosos por reler, assim como elegantes por eleger, cuidadosos de cuidar, inteligentes de inteligir; por tudo isso, efetivamente, em todas essas palavras jaz o mesmo valor de ler que em religioso.”

“Religioso” é, então, “aquele que cumpre os atos do culto divino” e que, por assim dizer, “relê atentamente o ritual” [vide ABBAGNANO, Nicola (1982): Dicionário de Filosofia. Editora Mestre Jou, São Paulo, p. 814].

Portanto, quando Trimegistus diz que somente uma mente irreligiosa seria capaz de revelar ao público os segredos contidos em seu discurso, ele quer dizer que o verdadeiro iniciado, aquele que cumpre cuidadosamente seu dever ritualístico, jamais quebrará o voto de segredo. 

Sua explicação é que a mente profana é irreligiosa, ou seja, o profano é aquele que, não sendo um iniciado, não cumpre ritual algum e, por conseguinte, não está apto a compreender os ensinamentos herméticos.

Corpus Hermeticum possui outro tratado importante, o Poimandres [vide Scot (1993) supra], uma palavra grega que significa Pastor de Homens

No tratado, Asclepius, após mergulhar na reflexão profunda sobre as coisas divinas, tem uma visão na qual um ser gigante e luminoso, que se apresenta como Poimandres, lhe aparece e lhe transmite os ensinamentos herméticos. 

Já quase no final do tratado, no livro XIII (22b), Poimandres roga que Asclepius preserve silêncio sobre tudo que lhe foi transmitido acerca do renascimento, a quebra dessa promessa sendo vista como traição e geradora da desordem no mundo:

“Tendo aprendido isto de mim, promete o silêncio quanto à verdade, ó filho, e não revelar a qualquer outra criatura a instrução do renascimento, para que, desse modo, não sejamos considerados destruidores do universo.”

Traduzi παράδοσις (que no trecho está no acusativo singular) por “instrução” e não por “transmissão”. Isso porque o sentido é de transmissão oral ou escrita de uma doutrina ou de uma tradição religiosa [vide BAILLY, Anatole (2000): Dictionaire Grec-Français. Hachette, Paris, p. 1461]. Cri, assim, ser mais fiel ao sentido do texto e à doutrina da reencarnação professada pelos antigos hermetistas.

Plutarco, em seu tratado sobre os Mistérios de Ísis e Osíris, mostra as similitudes entre os ritos de vários povos, argumentando que todos se referem a uma mesma Verdade universal. No final, em particular, Plutarco compara o mito grego de Deméter ao mito egípcio de Osíris e Tífon (ou Seth) e mostra que têm o mesmo significado. 

Logo em seguida, ele menciona que o mesmo ocorre com todas as coisas que são vedadas aos olhos e ouvidos da multidão e que são veladas em ritos e cerimônias:

“Tanto as coisas que são encobertas pelos ritos místicos quanto as coisas que se preservam, pelos iniciados, não ditas e ocultas para a multidão têm uma explicação similar.”

Escrito por volta de 1390, o Manuscriptus Regius é a primeira versão do que se costumou designar as Old Charges, ou “Antigas Obrigações”. 

Manuscriptus Regius é composto de quinze artigos. 

Nele existem ainda as chamadas constituições adicionais, compostas de quinze pontos ou dispositivos. 

Com relação à condição de se guardar segredo, é interessante reproduzir o terceiro ponto adicional (versos 275–286) do Manuscriptus Regius:

“Terceiro ponto: e com os aprendizes bem o saibas, ser o terceiro ponto o mais severo: A resolução de seu mestre ele mantenha e guarde e a de seus companheiros, por seu bom propósito; os segredos da câmara diga ele a homem nenhum nem qualquer coisa que na Logia façam; o que quer que ouças ou os vejas fazer, dize-os a homem nenhum aonde quer que vás; a resolução da assembleia e a da câmara, guarda bem, por magna honra, caso não queiras expor-te à reprovação e trazer à confraria grande vergonha.”

Constituição de Anderson (1723), no capítulo VI, que trata da conduta, aborda o tema do segredo particularmente no item 4º, que versa sobre a conduta que se deve observar diante daqueles que não pertencem à Ordem:

“4. Conduta em presença de estranhos não Maçons: Sereis cuidadosos em vossas palavras e obras, de modo que o mais perspicaz profano não seja capaz de descobrir ou de se aperceber do que não é próprio ser conhecido, e por vezes devereis mudar o rumo de uma conversação e administrá-la prudentemente, para a honra da venerável Fraternidade.”

Não foi, obviamente, a intenção aqui escrever um ensaio completo e acadêmico sobre o caráter de secrecy das ordens de Mistério ao longo do tempo, mas apresentar algumas poucas, porém significativas, evidências literárias.

Autor: Rodrigo Peñaloza

Fonte: Medium

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