O ensino do Trivium e do Quadrivium, a linguagem e a História na proposta de educação agostiniana – (Parte II)
A importância da linguagem
Em seu artigo Agostinho e a Educação Cristã: um olhar da História da Educação, Oliveira (2008) destaca alguns aspectos elencados por Santo Agostinho para a formação do cristão, entre os quais a linguagem e necessidade do conhecimento da escrita e das letras.
Ao apresentar um roteiro de como se tornar cristão, Agostinho nos brinda com um verdadeiro programa de estudos, necessários, em nosso entender, para qualquer aprendizagem e que independe da época em que o estudo se realiza. O autor destaca a importância da linguagem, do conhecimento da escrita, portanto, das letras, da necessidade do aprendizado do cálculo, de se entender a música, de se conhecer as instituições nas quais e para quais se realizam determinados estudos, de se conhecer a língua na qual o estudo está sendo realizado. Dentro deste aspecto, destaca a precaução necessária em relação às traduções. Do ponto de vista agostiniano, saber a língua no qual o texto foi escrito é condição para o bom entendimento da mensagem contida no mesmo (OLIVEIRA, 2008, p. 6).
Vários autores destacam que, ao se manifestar a respeito da linguagem, Santo Agostinho levanta questões que ultrapassam sua concepção religiosa, a exemplo da importância que a leitura, o conhecimento de línguas, a precaução com as traduções têm para a obtenção ou produção do conhecimento.
A importância da linguagem decorre do fato de que é esse meio de comunicação humana que faz das Escrituras um modo de aproximação de Deus para com o homem: pelo que está expresso em suas obras, os homens podem atingir a inteligibilidade de Deus.
Assim, quanto maior for a capacidade das pessoas de usarem a linguagem, melhores suas condições de se apropriar dos sentidos e ensinamentos contidos nos textos bíblicos. Por conseguinte, as conversões ocorrerão de maneira mais consciente. Na verdade, Agostinho apresenta diversos aspectos que julga serem elementos essenciais para se compreender as palavras contidas nas Escrituras. A nosso ver, apresenta, de fato, um roteiro de como se deve proceder para ser cristão. Do seu ponto de vista, a conversão é um processo de aprendizagem. No seu tempo, em geral, não se nascia cristão, mas se tornava, pela aceitação da doutrina (OLIVEIRA, 2008, p. 6).
Assim, com os recursos da linguagem, como metáforas, alegorias, comparações, diálogos com perguntas e respostas didaticamente organizados, os mestres articulariam os dois conhecimentos, os das ciências e as verdades divinas, levando os discípulos a entender as coisas espirituais. Por meio da linguagem comparativa, o próprio Agostinho trata de temas abstratos estabelecendo relações com outras situações concretas ou com objetos conhecidos pelos seus ouvintes. O próprio Agostinho utiliza muitas comparações no decorrer da sua obra para levar os leitores a entender conceitos complexos e abstratos por meio de assuntos conhecidos.
Em seu livro A Trindade, ele explica que, tendo como finalidade levar os homens a entender os princípios divinos: “[…] a Escritura, no seu modo de expressar, acomoda-se aos costumes humanos, pois fala a criaturas humanas (Santo Agostinho, A Trindade, L. I, cap. 12, § 23)”.
Nessa acepção, a linguagem é o principal instrumento de transmissão do conhecimento. Por meio dela, o ensino se efetivaria entre os indivíduos e se difundiria na sociedade.
Em seu De Magistro, quando tratou da necessidade de conhecer o significado e o conceito das palavras, o fez com vistas a que elas pudessem ser utilizadas adequadamente no ensino.
Nessa obra, a função da fala é abordada por meio de um diálogo com Adeodato, seu filho, que aos dezesseis anos contribuiu com as ideias que foram registradas.
Uma das ideias que Agostinho discutiu é a necessidade de se ter claro o que pretende quando se fala, ou seja, o autor discutiu a questão da intencionalidade da linguagem (AGOSTINHO, De Magistro), detalhando a significação da palavra e enfatizando a necessidade de pensar no que queremos ensinar quando falamos. Ou seja, de seu ponto de vista, não se trata de ensinar apenas palavras, mas também o que elas significam, o conteúdo que elas transmitem e, por isso, ele discute também a questão dos signos.
Na medida em que a linguagem estabelece a comunicação entre as pessoas, ele considerava que o conhecimento dos signos constituía-se em elemento potencial de aprendizagem. Da mesma forma que a palavra que se profere pode ser percebida pelo ouvido, a palavra escrita apresenta-se como um sinal para os olhos, despertando na mente o que se percebe com os ouvidos.
Segundo Horn (2006), esse aspecto do pensamento era tão inovador, que o autor foi considerado um precursor da concepção semiótica.
Um ponto que se destaca por todo o pensamento agostiniano sobre a filosofia da linguagem é a tese de que palavras representam sinais. Parece residir aqui uma inovação digna de nota, diante dos seus predecessores, razão pela qual repetidamente se afirmou que Agostinho é o patrono de uma concepção semiótica (de teoria dos sinais) da semântica, ou, ainda, da teoria do significado linguístico (cf. Coseriu, 1969; Eco, 1984 apud HORN, 2006, p. 6-7).
Horn (2006) informa ainda que essa definição de linguagem aparece em outras obras de Agostinho anteriores ao De Magistro:
Agostinho dispõe de uma série de observações interessantes e modos de visão originais sobre o fenômeno da linguagem. A sua intenção, contudo, não reside no desenvolvimento de uma filosofia sistemática da linguagem. Ao fundo, encontra-se, antes, a sua pretensão teológica de comprovar a presença de uma realidade divina no nosso falar e pensar. Apesar desse interesse de conhecimento incomum, pode-se atestar a Agostinho que a sua ocupação com filosofia da linguagem alcança, nas diferentes fases biográficas, um nível absolutamente respeitável. Possuímos, primeiramente, um tratado juvenil com o título De dialectica, que se ocupa com algumas questões de filosofia da linguagem e de teoria dos sinais, e sabemos que existiu um tratado surgido simultaneamente, De grammatica, o qual, porém, já cedo se perdeu (HORN, 2006, p. 6).
Segundo Horn, para se entender o que Agostinho pretendia com a definição das palavras como sinais, é necessário considerar uma importante distinção: a palavra como um sinal que representa (substitui) o objeto e como um meio de comunicação, de conhecimento.
Poucos anos depois da sua redação, no escrito De magistro, do ano de 389, Agostinho já se apóia muito claramente nessa definição, quando define palavras (verba) como sinais (signa) (2,3). Sem dúvida, para entender corretamente a concepção ali contida, tem-se de diferenciar entre duas funções, nas quais as palavras podem aparecer como sinais (cf. De magistro, 2002). (HORN, 2006, p. 7).
Assim, a primeira função estaria relacionada ao campo da semântica:
Por um lado, pode-se ter em vista uma função substitucional (nisso pensamos nós contemporâneos, via de regra): palavras designam algo, na medida em que elas, como sinais, estão por esse algo como que ‘a modo de substituição’. Assim a palavra ‘mesa’ designa o objeto mesa, na medida em que ela, como fonema (sinal sonoro) ou como grafema (sinal escrito), está para uma mesa no mundo das coisas físicas (HORN, 2006, p. 7).
Na segunda, os sinais têm um sentido constitutivo do conhecimento e, segundo o autor, é com essa acepção que Agostinho considera a palavra em suas orientações sobre o ensino.
Por outro lado, palavras podem ser tomadas como sinais num sentido ainda mais geral, a saber, constitutivo do conhecimento. Palavras abrem para nós novos conteúdos de saber, na medida em que formam o veículo de uma exposição, de uma narrativa ou de uma argumentação oral ou escrita. Palavras desvelam à ouvinte ou ao leitor algo novo; elas apresentam a ela ou a ele algo até então não-sabido. É esse segundo significado que Agostinho tem em vista com a sua tese do caráter de sinal das palavras, e não uma teoria de semântica. Palavras são sinais, não primariamente em sentido substitucional-semântico, mas sim em sentido constitutivo do conhecimento (HORN, 2006, p. 7).
Mammì (2000) assinala que Agostinho atribui a existência de signos à necessidade de comunicação entre os homens.
Os signos linguísticos nascem da impossibilidade de as almas humanas comunicarem-se diretamente entre si, após a queda no pecado; sua função é ensinar conceitos ou transmitir vontades. Em síntese, a linguagem é um instrumento que permite que as almas ajam uma sobre outra (p. 347).
Nesse sentido, na medida em que visava o ensino, era essa a função das palavras que Agostinho usava amplamente. Para ele, sua importância advinha do sentido que elas poderiam transmitir ao ouvinte. Pelas palavras se estabeleceria uma comunicação entre a contemplação individual interior e o outro.
Para Mammì (2000) a comunicação por meio das palavras, em Agostinho, assumiu proeminência na ação de uma alma sobre outra, porque elas contêm a possibilidade de ensinar, de convencer, enfim, de transformar as atitudes pagãs em atitudes cristãs.
Acrescentamos aqui um aspecto destacado por Mammì (2000) no pensamento de Agostinho: sua concepção de que as palavras têm função mnemotécnica de chamar à mente os conteúdos da consciência.
Ao que ensina é primordial ter domínio da palavra para utilizá-la, ou seja, tendo em vista a finalidade básica da linguagem, ensinar pressupõe o uso da palavra com conhecimento do seu significado. Seu uso adequado resulta na compreensão, por parte do destinatário, da mensagem que se quer transmitir; já seu uso indevido implica distorções e equívocos na mensagem, os quais comprometem a eficácia do ensino.
Ressaltando esta questão, podemos pensar que o uso adequado da linguagem é inerente ao livre-arbítrio, uma vez que este possibilita ao ser humano fazer as escolhas apropriadas também no que se refere ao uso das palavras, especialmente quando se ensina.
Diante do fato de que a arte da palavra pode persuadir para o bem ou para o mal, Agostinho fez, em A Doutrina Cristã, a seguinte pergunta: “por qual razão as pessoas honestas não poriam seu zelo a adquiri-la em vista de se engajar ao serviço da verdade?”
Assim, Santo Agostinho discutiu o porquê de se utilizar a arte da eloquência por tê-la como relevante na aplicação em persuadir o que considerava como verdadeiro. “Eis o que constitui o talento da palavra ou da eloquência: os princípios e preceitos dessa arte unidos ao empenho engenhoso da linguagem, especialmente exercitada a realçar a riqueza do vocabulário e do estilo” (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, Liv. IV, cap. 3,§ 1).
Os jovens, segundo Santo Agostinho, deveriam aprender essa arte em estudos à parte, conforme a disponibilidade que tivessem. Os mais ocupados com o serviço da Igreja poderiam assimilar a eloquência lendo ou estudando os bons oradores nas obras eclesiásticas e principalmente nas Escrituras.
É intrínseco ao ser humano, dotado da razão e da possibilidade de usá-la, distinguir a função das palavras, bem como conhecer o que elas significam. Nesse sentido, Santo Agostinho destacou a superioridade do conhecimento conceitual em relação ao morfológico.
O desconhecimento dos signos próprios, para Santo Agostinho, era um fator que comprometia a compreensão, mas também o era o dos signos figurados, muito utilizados nas Escrituras. “Ora, há duas causas de incompreensão do texto da Escritura. A verdade encontra-se oculta por signos desconhecidos ou por signos de sentido figurado. Com efeito, os signos são ou próprios ou figurados” (AGOSTINHO, L. II, cap. 10, § 15).
Esses signos figurados consistiam em expressões da vida cotidiana utilizados para o ensino de outra significação. Segundo o autor, para alcançar a compreensão das passagens de sentido alegórico, era necessário, primeiramente, o conhecimento das palavras em seu sentido próprio.
Assim, para conhecer o sentido próprio e figurado das palavras, de forma a aprofundar a compreensão das Escrituras, era necessário ao estudioso latino conhecer o grego e o hebraico, verificando também a validade das traduções.
Para combater a ignorância dos signos próprios, o grande remédio é o conhecimento das línguas. Os conhecedores da língua latina, a quem pretendemos instruir neste momento, necessitam, para chegar a conhecer a fundo as divinas Escrituras, de duas outras línguas, a saber, o grego e o hebraico. Elas lhes permitirão recorrer aos exemplares mais antigos, no caso em que há infinita variedade de traduções latinas lhes traga alguma dúvida (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 11, § 16).
O contato com os textos originais permite verificar que a mesma palavra pode ter significados diferentes nos distintos idiomas. Esse desconhecimento prejudicaria a compreensão do sentido originalmente proposto.
Por isso, ele aponta as vantagens do estudo comparativo das diversas traduções latinas, o que também poderia auxiliar a compreensão dos textos sagrados: “A diversidade de traduções, contudo, tem sido mais ajuda do que obstáculo à compreensão do texto, isso ao se tratar de leitores não negligentes. De fato, o exame de muitos códices, com frequência esclarece certas frases obscuras (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 12, § 17)”.
Além dessas questões teóricas a respeito da linguagem, o autor descreve várias estratégias de retórica, que poderiam ser utilizadas no ensino cristão.
Nesse sentido, a conversão de Agostinho proporcionou-lhe um imenso campo de trabalho.
Os conhecimentos que trouxe do passado, dos critérios que os antigos haviam produzido foram direcionados para a formação de indivíduos, os quais não apenas fariam parte da sociedade que principiava a se formar, mas se tornariam seus dirigentes. E o fizeram fundamentados na educação cristã e no conhecimento historicamente produzido pela humanidade.
As normas que ele elaborou para orientar o estudioso das Escrituras na compreensão da mensagem cristã tornaram-se profícuas naquela sociedade que carecia de ser instruída nas letras, na fé e na civilização. Tratava-se de auxiliar os que sabiam menos a compreender as Escrituras e ensiná-las.
A importância do conhecimento e do ensino da História para a educação
Nesse sentido, a mensagem a ser transmitida perpassava pelo conhecimento da história, apresentado por Agostinho como uma forma de retomar princípios, conceitos e ensinar aos homens como agir diante das circunstâncias.
Para Santo Agostinho,
[…] todos os informes que a ciência chamada história nos oferece sobre o sucedido nos tempos passados nos são de grande ajuda para compreendermos os Livros santos, ainda quando forem aprendidos fora da Igreja, em vã erudição (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 29, § 42).
A história, portanto, mesmo que não fosse aprendida como parte da formação cristã, constituía um instrumento para a formação da memória e da identidade do indivíduo na contemplação das Escrituras.
O conhecimento e os argumentos históricos permeiam as obras e os discursos de Agostinho. Com base no conhecimento histórico que ele tinha, pôde articular suas análises e seus argumentos nessa perspectiva.
Outro aspecto que Santo Agostinho destaca são as instituições humanas, que, para ele, se referem ao conhecimento histórico e literário produzido pela humanidade.
A primeira vista, poderíamos pensar no acesso restrito a essas obras. No entanto, elas não foram desprezadas, antes se tornaram em fundamentos teóricos para os cristãos chegarem a uma compreensão mais aprofundada do ensino contido nas Escrituras.
Deveriam, inclusive, segundo o autor, ser aprendidas de memória.
Toda essa parte de instituições humanas que são convenientes para as necessidades da vida, os cristãos não têm razão nenhuma para evitá-la. Eles devem, bem ao contrário, à medida de suas precisões, dedicar-se a seu cumprimento e aprendê-las de memória (AGOSTINHO, A Doutrina Cristã, L. II, cap. 26, § 40).
Finalmente, devemos considerar a consciência desse autor em relação ao seu tempo histórico.
Várias são suas referências a fatos históricos, quando se tratava de se posicionar diante dos problemas e buscar explicações e soluções para eles. Por esse meio, ele se contrapunha àquelas explicações que considerava insuficientes para responder aos problemas enfrentados naquele período de transição.
Recorrer à história produzia condições de apreensão de princípios e valores que deveriam permanecer e daqueles que deveriam ser transformados por hábitos fundamentados na proposição cristã que confrontava os costumes pagãos.
Ao estabelecer a relação com o conhecimento do passado, entendemos que Santo Agostinho ofereceu parâmetros para situar historicamente tanto a prática formativa, quanto os conteúdos programáticos que deveriam ser preservados, difundidos, com vistas à produção do conhecimento que os cristãos assumiriam, em virtude da desarticulação política do referido período.
Em síntese, Agostinho foi um autor que dedicou grande parte de sua vida ao estudo das Escrituras e à difusão da educação cristã.
Ao fazê-lo, elaborou orientações para o ensino, discutiu os conhecimentos teóricos que deveriam ser ensinados, bem como as estratégias para se ensinar corroborando com a educação do medievo, na medida em que seus postulados permaneceram norteando a educação no ocidente durante séculos.
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