No período da independência e construção do Estado nacional brasileiro, as atividades maçônicas apresentam crescimento, bem como outras formas de sociabilidade, associadas à modernidade política. É conhecido na historiografia o exemplo do Grande Oriente Brasileiro de 1822, que acabou tornando-se importante (mas não único) foro de debate, contato e consenso entre forças políticas que efetivaram a separação do Brasil de Portugal – e tal escolha explica-se também pelo caráter do segredo (ou semi-segredo, visto que o príncipe Pedro participava).
No quadro ainda do absolutismo, embora abalado pelo movimento constitucional português desde 1820, o espaço maçônico era adequado para realizar tal articulação que, tornada pública, seria ilegal nos quadros da legislação e dos costumes vigentes (Silva, 1837; Maçonaria, 1832; Varnhagen, 1978: capo V e VI).
Apesar da repressão contra os diferentes canais de participação política que se desencadeou após a subida de D. Pedro I ao trono de imperador, inclusive com a proibição formal das maçonarias em 1823, sabe-se que algumas dessas agremiações continuaram existindo na clandestinidade no Rio de Janeiro.
Como a loja ultra-monarquista Bouclier d’Honneur, apoiada pelo Grand Orient de France em 1823, e a loja Vigilância da Pátria, de tendências liberais e oposicionistas, integrada, entre outros, por Nicolau do Campos Vergueiro em 1825 (Grande Oriente, 1835).
Sem falar do jornal Despertador Constitucional Extraordinario, redigido em 1825 por Domingos Alves Branco Muniz Barreto, conhecido dirigente maçom, em cujas páginas havia uma explícita propaganda das atividades maçônicas. Mas será somente com a crise e o fim do Primeiro Reinado que os trabalhos maçônicos serão retomados de maneira regular, embora já sem a importância de 1822 (MoreI, 1995: capo 9).
Vê-se, assim, que a partir de 1822 o modelo maçônico (que já existia antes no território da América portuguesa) desempenhou um papel importante na criação de lugares de sociabilidade que caracterizavam esses esboços de um espaço público moderno.
Até que ponto é possível conhecer as concepções e práticas dos maçons na Corte imperial brasileira desse período?
Para buscar essa resposta tomei como referência a afirmação de Ran Halevi (1984): o que reunia os maçons era sobretudo o próprio modelo maçônico. As posições sociais e os interesses econômicos, ainda que importantes, não tinham sempre peso determinante.
O ideal de coesão e organização maçônico podia ser a base principal de agregação, superando contradições e diferenças que pareciam insolúveis.
Tal ideal poderia ser sintetizado da seguinte maneira: um sentimento de pertencimento a uma elite, não mais a aristocrática, mas fundada sobre a noção de iniciação às Luzes que, vindas de tempos antigos e míticos, vão criar uma sociedade nova, baseada na Razão e na Perfeição, como já foi visto.
Mas, no momento de decidir por quais caminhos chegar à almejada Perfeição Universal, não faltavam as dissensões. Analisando a documentação da época sobre a maçonaria e tendo por base os referenciais teóricos já citados, identifiquei três tendências políticas que caracterizavam as maçonarias, o que mais uma vez remete à pluralidade de tais práticas.
Não se trata aqui, como já foi assinalado, de repetir as classificações entre os ritos da época, o que seria apenas reproduzir o discurso dos protagonistas, da mesma forma que as pregações em prol da harmonia entre os irmãos. E nem de retomar a afirmação simplista de que “todos” os homens públicos do período eram maçons – o que não corresponde à complexidade dos pertencimentos às formas de sociabilidade.
Inicialmente, havia uma visão “não-política” das maçonarias, percepção evidentemente politizada, mas que assimilava de alguma maneira a concepção hobesiana de demarcação entre a esfera privada (livre consciência individual) e a esfera pública e coletiva (poder do Estado).
Na medida em que o domínio do político fosse monopólio do Estado, os indivíduos poderiam ter suas convicções, mas somente nos limites privados, isto é, não-políticos.
E mesmo que a maior parte das maçonarias tenha desempenhado um papel político importante, tal concepção tinha uma forte presença diante do poder centralizador da monarquia imperial brasileira.
Essa posição que chamaríamos de hobesiana expressava-se no Grande Oriente do grupo de José Bonifácio de Andrada e Silva (em 1822 e 1831) e seus correligionários apresentavam-se como guardiões dos altos valores maçônicos: beneficência, filantropia, sabedoria, justiça, uso equilibrado da razão …
Nessa busca da harmonia universal, parecia não haver lugar para os problemas do cotidiano que tocavam a maior parte dos mortais.
O que não impedia, diga-se de passagem, que esses homens fossem ministros, deputados, senadores, chefes militares, utilizando tal espaço de sociabilidade para se juntar e fortalecer as relações sociais. Assim, criavam-se laços de solidariedade que instauravam como que um código de honra para a vida profana. Quando um entre eles não se enquadrava nesse modelo, era excluído sem remorso. Foi o caso, por exemplo, de Francisco Gê Acaiaba Montezuma, futuro visconde de Jequitinhonha.
O processo de sua expulsão do Conselho Supremo, tomado de assalto pelos Andradas, é significativo para conhecer tal procedimento entre os irmãos, seus valores e práticas.
Na peça de acusação, os princípios maçônicos eram mais uma vez lembrados:
(…) desde a mais remota idade tem a Franc-Maçonaria Escoceza tido por base inalteravel a Tolerancia, e por fim o único a Filantropia, pondo de parte tudo quanto respeita aos principios Religiosos e Politicos d’aqueles que tem a inapreciável fortuna de serem chamados a formar as suas respeitáveis e virtuosas Colunas. (Supremo Conselho, 1837: 30)
Ora, o enunciado acima é claro.
Trata-se de uma postura que se pretende apolítica, aspirando aos grandes ideais da humanidade, o que era uma forma de igualdade de direitos diante dos valores aristocratas ou absolutistas tradicionais, ocultando-se do poder oficial da Coroa e da Igreja. Mas a negação da política, acompanhada da afirmação da unidade entre os irmãos, podia ser ao mesmo tempo uma forma de proteção mútua e um instrumento coercitivo. E dogmático. Isto é, com a recusa de nuances, oposições e divergências, que deveriam ser abafadas em nome da unificação, prevaleceria a lei do mais forte. Havia um discurso cujas diretrizes deveriam ser seguidas, e quem escapasse era visto como traidor.
Diga-se de passagem que tal atitude coerciva não impediu – ou até ajudou – a verdadeira fragmentação autofágica das maçonarias no Rio de Janeiro, sobretudo nos anos 1830, ficando muitas vezes difícil para o pesquisador desvendar a lógica que guiaria a separação, fusão, brigas e dissidências entre lojas e Grandes Orientes.
Voltando ao caso da exclusão do irmão Montezuma, depois de expostos os princípios maçônicos, ele foi acusado de “(… ) se servir da M∴ commo meio de conseguir os mais altos cargos da Sociedade Civil” (Supremo Conselho, 1837: 30).
E difícil crer que os motivos da acusação fossem esses, pois seus acusadores ocupavam igualmente altos cargos na administração pública. O que talvez estivesse em jogo era o repúdio a uma maneira competitiva de utilizar o espaço maçônico, quando a obediência fosse deixada de lado, prejudicando o pacto de companheirismo. Tal tendência “apolítica” acolhia com facilidade os mais poderosos, como o próprio D. Pedro – na medida em que, formalmente, eles não estariam se comprometendo a nenhum jogo político (para poder, efetivamente, realizá-lo). Mais uma fluida zona de encontro entre as Luzes e as sombras.
Essa era ao mesmo tempo a força e a fraqueza dessa tendência maçônica no Brasil. De um lado, beneficiava-se de uma margem maior de atuação e de influência na sociedade. Às vezes, o segredo era rompido, e alguns membros explicitavam sua condição maçônica publicamente, através de impressos, sobretudo a partir dos anos 1830. Mas, de outro lado, a autonomia e a liberdade do debate, e a fraternidade, encontravam-se não raro submetidas a pressões que podiam aumentar ainda mais a distância entre o discurso e a prática. O Grande Oriente controlado pelos Andradas, por exemplo, perdeu inúmeros aliados que o acusavam de inclinar-se ao “sistema aristocrático” oposto ao “liberalismo” que deveria servir de base ao funcionamento das lojas (Loja Beneficência, 1834; Loja Commercio e Artes, 1834).
A segunda tendência maçônica aqui assinalada era a que buscava o abrigo do segredo para atitudes mais ousadas de oposição aos governos, fosse para apenas defender ideias contrárias às oficiais, fosse visando a uma intervenção direta para as mudanças políticas. Situavam-se tanto no campo do liberalismo exaltado quanto dos absolutistas ou despóticos. Eram associações explicitamente politizadas que, na esteira de Locke, buscavam concretizar a ascensão das leis de julgamento moral e da liberdade individual na cena pública. Pretendia-se, assim, uma passagem decisiva da liberdade privada em direção à constituição de um espaço público.
O segredo entrava como fator de dissimulação, que correspondia a um agravamento da contradição entre a Sociedade e o Estado. Quanto mais se pretendia atingir o Estado, mais era preciso esconder-se.
Do ponto de vista de uma atitude liberal e contestatória, as associações secretas (mesmo as não-maçônicas) assumiam, assim, um caráter de embrião de soberania que poderia influenciar e até substituir a soberania monárquica.
Tais associações em geral ligavam-se à ideia de soberania popular. Buscando exemplos dessa tendência na Corte imperial, encontramos a Grande Loja Brasileira de 1831 (Maçonaria, 1832; Nova Luz Brazileira, n. 35, 9/4/1830), ligada aos federalistas e, possivelmente, republicanos ocultos, ou um outro Grande Oriente, dirigido por Nicolau Vergueiro, que em 1831 tomou parte nas sublevações que resultaram na abdicação do imperador, apresentando-se como federalista em 1835.
No campo conservador, pode-se citar o exemplo do Apostolado, dirigido por José Bonifácio em 1823. Ou a Loja Bouclier d’Honneur (Escudo da Honra) que, no mesmo ano, reunia no Rio de Janeiro franceses e portugueses que não se mostravam partidários da independência brasileira (Bouclier d’Honneur, 1823).
Esse tipo de associação, pelo próprio caráter secreto, não costuma deixar muitas pistas (para infelicidade dos futuros pesquisadores).
Era comum tais lojas terem uma espécie de fachada pública sob a forma de sociedades patrióticas ou jornais, com uma linguagem adaptada às circunstâncias. O jornal Nova Luz Brazileira, durante certo período porta-voz dos liberais exaltados, era redigido por Ezequiel Correia dos Santos, membro da Sociedade Federal cujos vínculos com a Grande Loja Brasileira eram razoavelmente perceptíveis. Mesmo defendendo a instância do segredo, ele buscava distinguir para o público leitor as duas tendências maçônicas já citadas:
Sociedades Secretas em geral – são corporações bem fazejas, e virtuosas, que os Philosophos tem inventado, para bem da humanidade; melhorando em particular, e occultamente a triste sorte dos opprimidos mortais. .. Com tudo tambem ha sociedade secreta mal-fazejas, e abominaveis, como a Santa Alliança, e os Apostolicos da Hespanha, e no Brasil, o Apostolado e a Sociedade dos Columnas. (Nova Luz Brazileira, n. 34, 5/4/1830)
Ora, sob este ponto de vista, o segredo tinha um sentido: para salvar a humanidade era preciso proteger-se dos inimigos das Luzes. Eram argumentos políticos impressos num jornal, deixando na penumbra a existência dessas práticas clandestinas, mas mantendo os princípios de uma melhoria progressiva da humanidade. A própria dicotomia estabelecida pelo redator – apostólicos contra a liberdade – era diretamente política e correspondia à clivagem despóticos e liberais.
Alguns dias mais tarde, o mesmo jornal faria incidir ainda mais luz sobre as sombras ao fazer uma apologia da maçonaria:
Maçonaria ou pedreiro livre – significa a mais antiga Sociedade Secreta, que ha no mundo à bem dos filhos de Adão: é formada por huma escolha de bons Cidadãos philosophos, e outras pessoas de luzes e virtudes: é a mais simples, e ao mesmo tempo a mais sublime em trabalhos, e a mais santa de todas as associações reservadas. (Nova Luz Brazileira, n. 35, 9/04/1830)
Da mesma forma que os maçons “apolíticos”, tratava-se aqui de se estabelecer uma seleção, mesmo entre os cidadãos, privilegiando os filósofos e os que já possuíam Luzes e virtudes. Não se pode esquecer, aliás, que se trata de uma publicação num jornal – e seria ingenuidade querer encontrar aí proclamações abertas a uma insurreição armada contra a monarquia vigente, por exemplo.
Não era por acaso que a Grande Loja Brasileira não se aliava ao Grande Oriente Brasileiro. As rivalidades pessoais não são suficientes para explicar todas as contradições. A identidade desse tipo de associação pode ser melhor compreendida quando restituída ao contexto e cotejada com movimentos e agitações políticas, com discursos públicos, jornais e outros impressos ou manuscritos com linguagem e objetivos precisos, ou seja, com determinados códigos definidos.
O conflito entre as maçonarias, mesmo limitado por uma simbologia comum, fazia parte das disputas de poder presentes na sociedade, dentro e além das lojas.
Era sobretudo contra essa tendência associativa explicitamente política que se dirigia esse tipo de ataque, comum na época: “Mas he precizo dizer, que a vontade de Clubistas não he a da Nação, assim como não he com falsidades que se encaminha a opinião publica” (Diario Fluminense, n. 1, 3/1/1831 l. Tal polêmica está no cerne da definição de quem seria o sujeito da soberania.
Os defensores da soberania monárquica viam-se ameaçados pela entrada em cena desse tipo de agremiação secreta que, por sua vez, preferia o segredo para ampliar sua presença no jogo político. Pedagogicamente (o que era uma maneira de ganhar adeptos) explicava-se o papel das associações ocultas:
O que é Club – é hum ajuntamento reservado de pessoas que sem faculdade do Governo, tratão de alguma causa extraordinaria; por isso sempre se interpreta que é para mal: com tudo é preciso notar, que às vezes os ajuntamentos não são clubs; antes se dirigem para causas muito boas. Os ajuntamentos reservados causão sempre medo aos Despotas, e tyrannos, porque tem consciencia de seus crimes; é por isso que temem qualquer reunião de homens. (Nova Luz Brazileira, n. 33, 2/04/1830)
Esta citação levanta questões sugestivas. As associações secretas, vistas nesta perspectiva, demarcam de maneira nítida suas diferenças diante do governo: o espaço público é vivido como diferente do Estado, mas não em confrontação com ele.
Quando as pessoas se reuniam para tratar de deliberações políticas sem autorização oficial, elas estavam se subtraindo das leis em vigor, consubstanciando uma esfera de crítica. Tais cidadãos que se acreditavam, assim, livres do controle das autoridades, colocavam-se em condições de criticar, de se opor e – quem sabe? – de substituir os dirigentes que não estivessem em harmonia com os princípios de humanidade propalados.
A tensão entre indivíduos “livres” construtores de um espaço público moderno e a “tirania” do poder estabelecido transparecia nessas formulações sobre clubes e maçonarias publicadas na imprensa.
Outro texto – desta vez de 1821 – nos remete a um exemplo eloquente dessa tendência maçônica: “Maçon – todo aquelle que proclama a liberdade da sua patria; que não beja as mangas aos Frades; que abomina a Inquizição e as suas fogueiras; que falla sem preambulos; escreve sem Dedicatorias; e imprime sem Censuras” (Lima, 1821).
Nesta citação, no auge do Vintismo português, o maçom é apresentado como o sujeito de um espaço público moderno, isto é, que não se submetia a uma autoridade absolutista do Estado representado pela Coroa e pela Igreja.
A terceira tendência política em relação às maçonarias proposta aqui não seria exatamente uma postura maçônica, na medida em que se demarcava da concepção e da lógica que legitimavam tais agrupamentos. Seria como uma espécie de radicalização da segunda tendência, mas na perspectiva de alargar o espaço público e a exteriorização da opinião crítica, ao ponto de prescindir do segredo e da própria dissimulação entre Luzes e sombras. Ou seja, escapava aos fundamentos das maçonarias.
Tal ponto de vista poderia ser sintetizado e reescrito do seguinte modo: a publicização da política tornara-se tão importante que nada mais deveria ser escondido; a legitimidade da coisa pública viria da transparência. A mistificação era necessária nos tempos das trevas, quando as Luzes atraíam a ira do despotismo absolutista.
Agora que os novos tempos tinham chegado – ou quase – era preciso que o livre julgamento dos indivíduos ocupasse de maneira direta a cena pública – esta seria a essência mesma desses espaços públicos em transformação.
Essa posição foi assumida, de alguma maneira, por liberais exaltados como Cipriano Barata e frei Caneca (cujas supostas adesões às maçonarias ainda estão por ser devidamente identificadas), mas também projetada (mais sutilmente) por liberais moderados como Evaristo da Veiga (comprovadamente maçom). Esses três, citados como exemplo, tinham em comum a atividade da imprensa, isto é, a propagação pública do debate político.
E, graças a eles, encontramos mais alguns testemunhos significativos sobre as atividades maçônicas do período, como se buscassem jogar Luzes que dissipassem as sombras herdadas dos tempos (ainda bem próximos) do absolutismo[5].
Entre os liberais exaltados houve outro testemunho significativo, como o de Clemente José de Oliveira, alferes pernambucano e redator, em 1833, do jornal O Brasil Aflicto. Tal escritor, aliás, rendia constantes homenagens à memória de frei Caneca e a Cipriano Barata.
Clemente tornou públicos, nesse periódico, diversos Grandes Orientes no Rio de Janeiro, trazendo para letras impressas os endereços das reuniões, acompanhados dos nomes ou de pseudônimos dos respectivos dirigentes. Ele citou: um Grande Oriente Brasileiro no bairro da Lapa dirigido por M.B. (possivelmente Domingos Alves Branco Muniz Barreto) e outro Grande Oriente Brasileiro dirigido por um certo “Senhor das Bottas”; aos quais se juntam o Grande Oriente Brasileiro dirigido por José Bonifácio, a Grande Loja Brasileira dos liberais exaltados, o Grande Oriente do Vale do Passeio integrado por Nicolau Vergueiro, e a Grande Loja Central, sem esquecer o Supremo Conselho do Brasil fundado por Montezuma.
Essa simultaneidade de centros maçônicos reforça a afirmativa de que as maçonarias não possuíam um núcleo homogêneo e centralizado e que, em determinadas conjunturas, apresentavam tendência autofágica e competitiva[6]. Tempos depois, diga-se de passagem, o redator Clemente José de Oliveira foi assassinado em pleno centro da cidade imperial[7].
O comentário do redator era uma condenação global de todas as maçonarias: “Nós dicemos que a Maçonaria terá talvez augmentado a desunião dos nossos Patrícios. ( . . . ) deduzimos que tudo he huma grande palhaçada” (O Brasil Aflicto, n. 5, 30/5/1833).
Ao contrário do discurso pedagógico de incentivo à maçonaria encontrado em outros jornais, este redator demonstrava-se francamente desfavorável a tal forma de organização, a ponto de querer torná-la visível a todos. Trazia à tona também as divisões, o que era um golpe mortal no discurso harmonizador e unificador tão repetido entre os maçons.
Ou seja, do ponto de vista das liberdades públicas modernas, o segredo tornara-se inútil. A publicidade parecia ser mais eficaz para expandir as Luzes. Não se tratava mais de contemporizar com o absolutismo, mas de superá-lo completamente, substituindo-o pela realização plena dos ideais do liberalismo.
Era uma atitude minoritária entre os que atuavam na cena pública da cidade imperial, mas que sintomaticamente ganhava contornos mais nítidos após a abdicação de D. Pedro I quando, entre 1831 e 1833, assistiu-se a uma ampla liberação da palavra pública, bem como a uma proliferação ainda maior de formas de sociabilidade.
Evaristo da Veiga, por sua vez, foi criticado por irmãos pelo fato de ter preferido as atividades profanas em detrimento das maçônicas, nas quais fora iniciado. Tal testemunho de companheiros é sugestivo, pois indica que ele deu mais importância a outros espaços de atuação, como o Parlamento, a imprensa ou associações abertas (Loja Integridade Maçônica, 1837; Sousa, 1960).
Mesmo sem ter deixado depoimentos que trouxessem à tona as atividades das maçonarias, Evaristo demonstrou, na prática, que elas não estavam entre suas prioridades políticas nos anos 1830. E convém lembrar a inserção desse mesmo personagem em instituições do tipo antigo, como a Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, por exemplo.
Curioso “retorno” a um espaço tradicional da parte de alguém que já estaria tão esclarecido. Mas, nessa construção da modernidade política no Brasil do início do século XIX, pós-independência, o passado não virara tabula rasa e os espaços públicos se caracterizaram por tal hibridismo (Slemian, 2000).
Algumas considerações finais podem ser apontadas a partir do que foi trabalhado no presente texto.
As maçonarias se definiam mais por determinada concepção de organização (demarcada por vocabulários, rituais e símbolos) do que por uma ideologia definida e eram, também, uma forma de sociabilidade existente naquela sociedade e naquele tempo, interligando-se com outros tipos de associação e com diferentes redes de poder, sendo parte integrante destas. Sendo assim, as maçonarias não se constituem à parte das relações estabelecidas, mas também não se confundem genericamente com todas as práticas políticas e de agrupamento daquele contexto, tendo sua própria especificidade.
Fica difícil afirmar, sem a mínima base documental, que “todos eram maçons”, na medida em que existem documentos impressos, manuscritos e testemunhos intencionais de maçons, bem como acusações de autoridades repressoras, citações de adversários, memórias etc.
Mas, por outro lado, não se pode ignorar que o pertencimento maçônico foi predominante entre os protagonistas letrados e urbanos no século XIX, particularmente no período estudado aqui, embora nem toda agremiação secreta fosse maçônica. As fontes documentais sobre o tema ainda estão por ser devidamente pesquisadas no Brasil, inclusive em arquivos públicos.
As maçonarias estão marcadas por uma série de dicotomias e ambiguidades: nacional/universal, nacionalismo/eurocentrismo, segredo/difusão, fraternidade/hierarquia, revolução/evolução, político/apolítico, unificação/desunião, centralização/dispersão, entre outros aspectos. Mesmo abandonando a perspectiva anacrônica de uma continuidade linear entre as práticas de organização do período de construção do Estado nacional com as de momentos posteriores, é possível detectar permanências desses “modelos” maçônicos em organizações que viriam a surgir, como a crença em vanguardas esclarecidas e a hierarquização vertical no interior de grupos que pretendem buscar a fraternidade e perfeição universais. A mescla entre Luzes e sombras formava uma gama de matizes e tons cuja complexidade ainda está por ser melhor dimensionada naquele alvorecer da fase nacional brasileira.
Notas
[5] – Cipriano Barata deixou várias referências sobre lojas e associações secretas, como no texto Motivos da minha perseguição (1825); além de várias citações em seu jornal Sentinela da liberdade na guarita de Pernambuco (1823). Ver Morel (2001). Quanto a frei Caneca, ver os textos “Carta n. IX – Sobre as Sociedades Secretas em Pernambuco” e “Carta n. X – Sobre a Sociedade Maçônica em Pernambuco”, em “Cartas de Pitia a Damão”, em Caneca (1972: 387-413). Ver também Morel (2000: 57-60).
[6] – Uma rápida explicação dos termos: um Grande Oriente ou Supremo Conselho são instâncias que abrigam diversas lojas maçônicas, que constituem, por sua vez, a aglomeração de base nas maçonarias.
[7] – O Brasil Aflicto, n. 5, 30/5/1833. O redator foi assassinado a 9 de setembro pelo tenente Carlos Miguel de Lima, filho do general e regente Francisco de Lima e Silva e sobrinho do dirigente maçom Joaquim Alves de Lima e Silva. Cf. Viana (1945: 1 85-94).
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Fonte: bibliotecadigital.fgv.br
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