Conferência pronunciada por Jean-Paul Sartre em Paris, 1945 d.C.
Tradução de Marcelo Consentino
Eu gostaria de defender o existencialismo contra certas recriminações que lhe costumam dirigir.
Ele foi acusado, antes de mais nada, de convidar as pessoas a permanecerem num quietismo do desespero, porque, ante a impossibilidade de todas as soluções, seria preciso concluir que a ação neste mundo é totalmente impossível e nos entregarmos enfim a uma filosofia contemplativa, o que no fim das contas, dado que a contemplação é um luxo, nos leva a uma filosofia burguesa. São sobretudo estas as reprovações dos comunistas.
Acusaram-nos, por outro lado, de enfatizar a ignomínia humana, de mostrar por toda parte o sórdido, o sombrio, o viscoso, e de negligenciar certas belezas da natureza humana; por exemplo, segundo Mademoiselle Mercier, crítica católica, de ter esquecido o sorriso da criança.
Uns e outros nos recriminam por termos faltado à solidariedade humana, por considerarmos que o homem é isolado, em grande parte porque partimos, como dizem os comunistas, da subjetividade pura, do eu penso cartesiano, ou seja do momento no qual o homem se encontra em sua solidão, o que nos tornaria incapazes na sequência de retornar à solidariedade para com os homens que estão fora de mim e que não posso encontrar no cogito.
E do lado cristão, reprovam-nos por negar a realidade e a seriedade dos empreendimentos humanos, pois se suprimimos os mandamentos de Deus e os valores inscritos na eternidade, já não resta mais nada senão a pura arbitrariedade, com cada um podendo fazer aquilo que bem entender, e sendo incapaz, a partir de seu ponto de vista, de condenar os pontos de vista e os atos dos outros.
Que se entende por existencialismo?
A maioria das pessoas que utilizam este termo ficaria bastante embaraçada para justificá-lo, pois hoje, que se tornou uma moda, dizem a esmo que um músico ou que um pintor é um existencialista.
Um colunista da revista Clartés assina O Existencialista; e, no fundo, esta palavra assumiu hoje uma tal amplitude e uma tal extensão que já não significa mais nada.
Parece que, na falta de uma doutrina de vanguarda análoga ao surrealismo, as pessoas ávidas por escândalos e por agitação se dirigem a esta filosofia, que não pode por sua vez lhes trazer qualquer contribuição neste domínio; na verdade, é a doutrina menos escandalosa, a mais austera; ela é estritamente destinada aos técnicos e aos filósofos.
Não obstante, ela pode ser facilmente definida.
O que complica as coisas é que há duas espécies de existencialistas: os primeiros, que são cristãos, e entre os quais eu colocaria Jaspers e Gabriel Marcel, de confissão católica; e, do outro lado, os existencialistas ateus, entre os quais é preciso pôr Heidegger, assim como os existencialistas franceses e eu mesmo.
Aquilo que todos têm em comum, é simplesmente o fato de estimarem que a existência precede a essência, ou, se quiserem, que é preciso partir da subjetividade. O que exatamente devemos entender por isto?
Quando consideramos um objeto fabricado, como por exemplo um livro ou um estilete, este objeto foi manufaturado por um artesão que se inspirou em um conceito; ele se baseou no conceito de estilete, e igualmente numa técnica de produção precedente que faz parte do conceito, e que no fundo é uma receita.
Assim, o estilete é a um só tempo um objeto que se produz de uma determinada maneira e que, além disso, tem uma utilidade definida, de modo que não é possível supor que algum homem produza um estilete sem saber para que seu objeto servirá.
Diremos portanto que, para o estilete, a essência – ou seja o conjunto de receitas e de qualidades que permitem produzi-lo e defini-lo – precede a existência; e assim a presença, à minha frente, deste estilete ou daquele livro é determinada. O que temos aí, por conseguinte, é uma visão técnica do mundo, na qual se pode dizer que a produção precede a existência.
Quando concebemos um Deus criador, este Deus é assimilado na maior parte do tempo a um artesão superior; e seja qual for a doutrina que temos em mente, quer se trate de uma doutrina como aquela de Descartes quer se trate da doutrina de Leibniz, nós assumimos sempre que a vontade segue mais ou menos o entendimento, ou no mínimo o acompanha, e que Deus, quando cria, sabe precisamente aquilo que cria.
Assim, o conceito de homem, no espírito de Deus, é assimilável ao conceito de estilete no espírito do industrial; e Deus produz o homem seguindo técnicas e uma concepção, exatamente como o artesão fabrica um estilete seguindo uma definição e uma técnica.
Assim, cada homem individual é a realização de um certo conceito que está no entendimento divino. No século XVIII, no ateísmo dos filósofos, a noção de Deus foi suprimida, mas não a ideia de que a essência precede a existência.
Esta ideia, nós a encontramos um pouco por toda parte: nós a encontramos em Diderot, em Voltaire, e mesmo em Kant.
O homem é possuidor de uma natureza humana; esta natureza humana, que é um conceito humano, se encontra em todos os homens, o que significa que cada homem é um exemplar específico de um conceito universal, o homem; em Kant, o resultado desta universalidade é que o homem selvagem, o homem da natureza, assim como o burguês, estão restritos à mesma definição e possuem as mesmasqualidades de base. Assim, também aqui a essência do homem precede esta existência histórica que encontramos na natureza.
O existencialismo ateu, que eu represento, é mais coerente.
Ele declara que se Deus não existe, há ao menos um ser cuja existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana.
O que significa dizer que a existência precede a essência? Significa antes de mais nada que o homem existe, se encontra, surge no mundo e que ele se define depois.
O homem, tal qual o existencialismo o concebe, se não é definível, é porque de início ele não é nada.
Ele só será depois, e ele será tal qual se terá feito.
Assim, não há natureza humana, porque não há Deus para concebê-la.
O homem simplesmente é, não só tal qual ele se concebe, mas tal qual ele se quer, e como ele só se concebe após a existência, como ele só se quer após este impulso rumo à existência, o homem nada mais é que aquilo que ele se fez.
Este é o primeiro princípio do existencialismo. É também aquilo que chamam de subjetividade, a qual nos recriminam sob esse mesmo nome.
Mas que queremos dizer com isso senão que o homem tem uma dignidade maior que a da pedra ou da mesa?
Pois queremos dizer que o homem antes de mais nada existe, ou seja, que o homem é antes de mais nada aquele que se lança num futuro, e aquele que é consciente de se projetar no futuro.
O homem é antes de mais nada um projeto que se vive subjetivamente, ao invés de ser uma espuma, um detrito ou uma couve-flor; nada existe precedentemente a este projeto; não há nada no céu inteligível, e o homem será antes de tudo aquilo que ele tiver projetado ser. Não aquilo que ele quiser ser.
Pois aquilo que entendemos ordinariamente por querer, é uma decisão consciente, a qual, para a maioria de nós, é posterior àquilo que fizemos de nós mesmos.
Posso querer aderir a um partido, escrever um livro, me casar; tudo isto não é senão uma manifestação de uma escolha mais originária, mais espontânea do que aquilo que denominamos vontade.
Mas se realmente a existência precede a essência, o homem é responsável por aquilo que ele é.
Assim, a primeira meta do existencialismo é fazer com que todo homem tome posse daquilo que ele é, e fazer com que caia sobre ele a responsabilidade total por sua existência.
E quando dizemos que o homem é responsável por si mesmo, não queremos dizer que o homem é responsável por sua estrita individualidade, mas que ele é responsável por todos os homens.
Há dois sentidos do termo subjetivismo, e nossos adversários jogam com estes dois sentidos. Subjetivismo quer dizer de um lado escolha do sujeito individual por si mesmo, e, de outro lado, impossibilidade para o homem de ultrapassar a subjetividade humana.
É este segundo sentido o sentido profundo do existencialismo. Quando dizemos que o homem se escolhe, entendemos que cada um dentre nós se escolhe, mas com isso queremos dizer que ao se escolher ele escolhe todos os homens.
Com efeito, não há um só de nossos atos que, ao criar o homem que queremos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem tal qual nós estimamos que ele deve ser.
Escolher ser isto ou aquilo, é afirmar ao mesmo tempo o valor daquilo que escolhemos, pois não podemos jamais escolher o mal; aquilo que escolhemos, é sempre o bem, e nada pode ser bom para nós sem que o seja para todos.
Assim, nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, pois ela engaja a humanidade inteira.
Se sou um operário, e se eu escolho aderir a um sindicato cristão ao invés de ser comunista, se, por esta adesão, eu quero indicar que a resignação é no fundo a solução que convém ao homem, que o reino do homem não é deste mundo, então eu não engajo somente o meu caso: eu quero a resignação para todos, por consequência minha decisão engajou a humanidade inteira.
E se quero, num fato ainda mais individual, me casar, ter filhos, mesmo que este casamento dependa unicamente da minha situação, ou da minha paixão, ou do meu desejo, através disto eu engajo não somente a mim mesmo, mas à humanidade inteira no caminho da monogamia. Assim, sou responsável por mim mesmo e por todos, e eu crio uma certa imagem do homem que eu escolho; ao me escolher, eu escolho o homem.
Isso nos permite compreender aquilo que está por trás de palavras um tanto grandiloquentes como angústia, desamparo, desespero. Na verdade, tudo isso é bastante simples.
Quando, por exemplo, falamos em desamparo, expressão cara a Heidegger, queremos dizer simplesmente que Deus não existe, e que é preciso extrair até o fim todas as consequências. O existencialismo é extremamente oposto a um certo tipo de moral laica que gostaria de suprimir Deus com o menor custo possível.
Quando, por volta de 1880, alguns professores franceses ensaiaram constituir uma moral laica, eles disseram quase isso: Deus é uma hipótese inútil e custosa, nós a suprimimos, mas é necessário não obstante, para que haja uma moral, uma sociedade, um mundo policiado, que certos valores sejam levados a sério e considerados como existentes a priori; é preciso que seja a priori obrigatório ser honesto, não mentir, não bater na sua mulher, fazer filhos etc., etc.
Queremos portanto fazer um pequeno arranjo que permitirá mostrar que estes valores existem tais quais sempre foram, inscritos num céu inteligível, ainda que, por outro lado, Deus não exista.
Dito de outra forma, e é esta, creio, a tendência que todos na França chamam de radicalismo, nada mudará se Deus não existe; nós encontraremos as mesmas normas de honestidade, de progresso, de humanismo, e teremos feito de Deus uma hipótese desusada que morrerá tranquilamente e por si mesma.
O existencialista, ao contrário, considera extremamente inquietante que Deus não exista, pois com ele desaparece toda possibilidade de encontrar valores num céu inteligível; já não pode mais haver qualquer bem a priori, pois não há uma consciência infinita e perfeita para pensá-lo; não está escrito em parte alguma que o bem existe, que é preciso ser honesto, que não se deve mentir, precisamente porque estamos numa dimensão na qual só existem homens.
Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse tudo seria permitido”.
Eis o ponto de partida do existencialismo.
De fato, tudo é permitido se Deus não existe, e por conseguinte o homem está desamparado, porque não encontra nem nele, nem fora dele uma possibilidade de se pendurar. Ele já não encontra mais desculpas.
Se de fato a existência precede a essência, jamais encontraremos explicações fazendo referência a uma natureza humana dada e fixada; em outras palavras, não há qualquer determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.
Se, além disso, Deus não existe, nós não encontraremos à nossa frente valores ou ordens que legitimarão nossa conduta.
Assim, não temos nem atrás de nós, nem adiante, no domínio luminoso dos valores, justificativas ou desculpas. Estamos sós, e sem desculpas.
É neste sentido que digo que o homem é condenado a ser livre.
Condenado, porque ele não se criou a si mesmo, e ademais é, não obstante, livre, pois uma vez que foi lançado no mundo, ele é responsável por tudo aquilo que faz.
O existencialista não crê na potência da paixão.
Ele jamais pensará que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos, e que, por conseguinte, é uma desculpa.
Ele acredita que o homem é responsável por sua paixão. O existencialista não pensa tampouco que o homem pode encontrar socorro em um sinal qualquer que o orientará no mundo; pois ele acredita que o homem decifra ele mesmo os sinais como bem entende.
Ele pensa, para concluir, que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a cada instante a inventar o homem.
O escritor Francis Ponge disse, num belo artigo: “O homem é o futuro do homem”.
É perfeitamente exato. Somente que, se se entende com isto que este futuro está inscrito no céu, que Deus assim o quer, então isto é falso, pois este já não seria a rigor um futuro.
Mas se se entende que, seja lá qual for o homem que apareça neste mundo, ele tem um futuro a construir, um futuro virgem que o espera, então esta expressão é justa.
Se, por sua vez, a existência precede a essência e se nós queremos existir ao mesmo tempo em que fazemos nossa imagem, esta imagem é válida para todos e para toda a nossa época.
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