Se algum dia [...] os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, e dos imprescindíveis deveres, que contraíram perante a moral e a nação, corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, e, por uma inexplicável aberração, faltarem com a devida jusça aos nfelizes que sofrem escravidão indébita, eu, por minha própria conta, sem impetrar o auxílio de pessoa alguma, e sob minha única responsabilidade, aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a “resistência”, que é uma virtude cívica [...].
LUIZ GAMA
Luiz Gama superou muitos obstáculos e viveu sob insultos e ameaças lançados pelos escravocratas e seus capangas.
Valeu-lhe, porém, a solidariedade de um certo número de juristas, jornalistas e militantes abolicionistas, como também da maçonaria e, em parcular, da Loja América, a mais influente de São Paulo, que ele dirigiu entre 1874 e 1881.
Desde seu primeiro artigo, datado de agosto de 1864 e publicado no Correio Paulistano, até seus últimos escritos de 1881- 1882, ele se vê constrangido a rebater a pecha de “ignorante” das coisas do direito e das letras que lhe era imputada por seus desafetos e inimigos.
De fato, Luiz Gama não obteve o diploma de advogado, dispondo apenas de uma autorização para apresentar causas em foro, como solicitador ou, na acepção pejorativa do ofício, rábula.
Ora, a hostilidade ao negro e ex-escravo que “jamais frequentou academias” decuplicava, indo à ameaça de morte, quando ele sustentava na imprensa e nos tribunais a liberdade de pessoas livres “arbitrária e criminosamente” escravizadas.
Luiz Gama sublinha num artigo impactante, intulado “Questão de liberdade” (1869), que a escravidão constitui “direito anômalo”, mesmo sendo sancionada pelas leis.
Na circunstância, ela só pode ser aceita “depois de prova completa” do direito de propriedade adjudicado ao senhor.
Porém, à medida que o direito positivo brasileiro evolui e se explicita nas leis penais, comerciais e civis, como também nos procedimentos processuais, adensando a rala legislação escravocrata das Ordenações Filipinas e as referências longínquas ao Código Justiniano, a contradição entre o princípio da liberdade e o direito de propriedade eclode nos tribunais.
Nos Estados Unidos, o outro grande país do Novo Mundo onde o escravismo é consubstancial à construção do Estado, essa contradição engendrou uma “guerra jurídica”, vencida pelos escravocratas, que precedeu o conflito armado entre o Norte e o Sul.
Como é sabido, julgando o caso Dred Sco versus Sandford (1857), a Corte Suprema estatuiu que a Constituição não atribuía direito algum de cidadania aos afro-americanos, fossem quais fossem – livres, libertos ou escravos.
A decisão exacerbou o conflito entre nortistas e sulistas, contribuindo para o desencadeamento da Guerra Civil (1861-1865).
No Brasil, o estatuto jurídico da propriedade escrava se tornou ainda mais precário em consequência das leis de 1818, 1831 e 1850, sobre a ilegalidade do tráfico negreiro.
Abrangendo a diplomacia, a política, a economia e a história do direito, o tema é complexo e foi estudado por vários historiadores.
Na realidade, sob pressão da diplomacia britânica e da Royal Navy, Portugal editou o alvará de 1818 decretando o fim do tráfico de africanos nos portos africanos ao norte do equador.
Na sequência da Convenção Anglo-Brasileira de 1826, o governo da Regência completou a medida, proibindo o tráfico de escravos de toda a África para o Brasil em 1831.
A lei de 1831 especificava ainda que todo africano introduzido no Brasil após aquela data era livre ao pisar no solo nacional, e que seus detentores e supostos proprietários passavam a ser sequestradores.
Nos termos do artigo 179 do Código Criminal do Império, o crime de sequestro estava assim definido: “Reduzir à escravidão pessoa livre, que se acha em posse da sua liberdade”.
Várias vezes evocado por Luiz Gama, o decreto de 12 abril de 1832, que regulamenta a lei de 1831, determina os procedimentos para a busca e libertação dos africanos ilegalmente desembarcados depois da data de lei.
Não obstante, 43 mil africanos trazidos do norte do equador foram introduzidos e escravizados ilegalmente de 1818 a 1831, e outros deportados de toda a África, entre 1831 e 1850.
Esses 788 mil indivíduos, assim como seus filhos, netos e bisnetos, foram mandados ilegalmente no cativeiro até 1888.
Seus alegados proprietários cometeram impune e continuadamente o delito de sequestro.
Como sucedeu em vários dramas históricos, as instruções governamentais para a perpetração desta violência maciça, configurando o pecado original da ordem jurídica brasileira, foram sigilosas.
Efetivamente, numa mensagem confidencial ao presidente da província de São Paulo, em 1854, Nabuco de Araújo, ministro da Justiça, invoca “os interesses coletivos da sociedade” para justificar a não aplicação da lei de 1831 que previa a liberdade imediata dos africanos introduzidos após esta data.
Numa análise que merece uma interpretação tanto psicanalítica quanto histórica, Joaquim Nabuco revela meio século mais tarde, na célebre biografia que escreveu sobre seu pai, a dimensão da manobra do ministro da Justiça em 1854: “a lei de 7 de novembro de 1831 foi sempre o ponto fraco da escravidão como instituição legal. De fato, ela foi sempre amparada pela razão de Estado”.
O censo nacional de 1872, o primeiro a ser feito no Império, registrou uma população de 9,923 milhões de habitantes, incluindo 1,509 milhão de escravos (15,2%).
Na altura, o contingente de cativos legalmente possuídos pelos senhores compreendia apenas os sobreviventes e os descendentes dos deportados oriundos do norte do equador antes de 1818 e dos que nham vindo da zona subequatorial africana antes de 1831.
Tal contingente era necessariamente pequeno e se tornou decrescente a partir dos anos 1860, tomando em conta a mortalidade dos escravizados e o cálculo econômico dos senhores luso-brasileiros e brasileiros, desde sempre fundado na reprodução mercantil (pelo tráfico atlântico e, em seguida, pelo tráfico interno), e não na reprodução demográfica dos escravos.
Ou seja, a última geração de escravos existentes no Brasil era formada, em sua esmagadora maioria, por indivíduos livres, sequestrados e ilegalmente escravizados.
Existindo desde 1818, a escravização de africanos livres e seus descendentes continuou impune, durante décadas, abrangendo um número cada vez maior de indivíduos sequestrados.
Poucas vozes denunciaram esse crime em massa antes de Luiz Gama. Nenhuma voz foi mais corajosa e mais consequente que a sua depois que ele iniciou esse combate, em meados dos anos 1860.
Toda a força dos argumentos jurídicos e da luta política de Luiz Gama consistiu em dar relevo às fraudes jurídicas, civis e clericais responsáveis pela escravização de milhões de pessoas livres e ao pacto dos sequestradores que abafava o escândalo gerado por tais crimes.
“O crime protegido pela lei; [...] as vítimas do delito sacrificadas pelos legisladores!”, escreve Gama numa carta publicada na Gazeta da Tarde em 1881, um ano antes de sua morte. Na verdade, os textos aqui publicados exprimem sua indignação em vários registros.
O livro mostra anúncios em diversos jornais paulistanos, tanto de Gama como de outros advogados abolicionistas, nos quais eles se prontificavam a defender, “gratuitamente perante os tribunais, todas as causas de liberdade”.
Em outro artigo de 1869 (“Um novo Alexandre”) ao Correio Paulistano, ele define, em parte, seu próprio estilo, afirmando que alguns de seus argos se distinguem “pelo ferino da sátira e forte energia de linguagem”.
Outros textos de sua autoria elaboram demonstrações cuidadosas e percucientes do bom fundamento de sua argumentação jurídica.
Como muitos escritos similares, seus textos portam referências a personagens da Antiguidade grega e romana, recurso retórico comum na imprensa da época e, bem mais ainda, nas faculdades de direito e no meio dos magistrados e bacharéis.
Armado com a convicção dos justos, Gama faz flecha com qualquer vareta, usando sólida legislação e, às vezes, a eloquência simbólica.
Assim, numa petição em favor da liberdade de uma escrava que havia depositado em Justiça a soma de 30 mil-réis para sua alforria, Luiz Gama refuta o arrazoado do juiz municipal que julgara a quantia insuficiente.
Depois de oferecer dados concretos, apontando inventários em que escravos receberam avaliação de 30 mil-réis, Luiz Gama apela para o Novo Testamento.
Dirigindo-se ao juiz, ele escreve: “v. s. não a ignora, que a liberdade de Nosso Senhor Jesus Cristo foi vendida [...] por trinta dinheiros, [assim] não é estranhável [...] que, perante v. s., a suplicante avalie a sua própria liberdade em trinta mil-réis”.
Vale notar ainda que o argumento de Luiz Gama, subjacente a vários de seus textos, assimilando a escravidão a um crime contra a humanidade, não é nada retórico e está em consonância com os tratados internacionais e textos legais brasileiros condenando o tráfico.
Desse modo, a proibição do comércio de africanos ao norte do equador, imposta pela Inglaterra no Congresso de Viena (1815) e inscrita por Portugal no alvará de 1818, já evoca os direitos humanos: “O tráfico (de escravos) é repugnante aos princípios gerais da moral e da Humanidade”.
Da mesma forma, na portaria de 1831, o ministro da Justiça, padre Feijó, condena os negociantes que praticam, “com desonra da humanidade, o vergonhoso contrabando de introduzir escravos da Costa d’África nos portos do Brasil”.
Indo mais longe, o decreto abolicionista de 1848 da Segunda República Francesa estende a definição de crime contra a humanidade à propriedade escrava, e não apenas ao tráfico de africanos, ao considerar a escravidão como “um atentado à dignidade humana”.
No editorial intitulado “Foro da Capital”, publicado no jornal Radical Paulistano em 1869, Luiz Gama insere uma petição dirigida ao juiz municipal Rego Freitas cujo teor deve ser comentado para evitar um mal-entendido.
No texto, ele se refere ao africano Jacinto, de nação congo, desembarcado no Rio de Janeiro em 1848, portanto criminosamente mandado no cativeiro.
Diz Gama que o “preto Jacinto, [...] sendo ainda visivelmente boçal”, foi comprado por um indivíduo que o trouxe para Amparo, em São Paulo.
A palavra “boçal” (na América espanhola, “bozal”) aparece amiúde nos decretos e artigos de jornais do século XIX, assim como na época colonial, para designar o indígena ou o africano que não falava português (ou espanhol).
O Dicionário Moraes (1789) é claro na definição desse adjetivo: “o que não fala ainda a língua do país estrangeiro em que se acha”; em oposição ao “ladino”, de “latino”, isto é, ao estrangeiro que na Antiguidade ibérica falava latim.
Por derivação, boçal passou a significar, no período pós-escravista, indivíduo estúpido, e ladino a designar alguém esperto. Ainda no domínio linguístico e conceitual, é interessante observar como Gama fustiga o arconsistindo em transvestir a questão do escravismo em “questão servil”.
Na “Carta a Ferreira de Menezes” publicada na Gazeta da Tarde em janeiro de 1881, ele escreve: “O que os novos, os sábios, os empelicados altruístas, os evangelizadores da evolução política negreira chamam, de estufadas bochechas, elemento servil é despido de fundamento jurídico [...] é um escândalo inaudito [...] é o imundo parto do suborno, da perfídia e da mais hedionda prevaricação”.
Efetivamente, depois da abolição do escravismo nos Estados Unidos, em 1865, o Brasil recolheu o opróbio de ser a única nação independente americana dotada de um sistema escravista de dimensão continental.
Desde essa época, no Parlamento e na imprensa, o escravismo passou a ser intitulado “questão servil”, termo menos execrado que escravidão.
A trapaça linguística dos escravocratas envergonhados passou para a historiografia como se fora neutra e ainda engana autores e leitores pouco atentos.
A respeito da Guerra da Secessão e do assassinato de Abraham Lincoln, Luiz Gama exprime sua admiração pelos Estados Unidos pós-escravista.
É o que aparece no seu artigo de janeiro de 1867 ao Correio Paulistano, o segundo publicado no livro.
Gama fala “no Brasil americano e as terras do Cruzeiro (do Sul), sem rei e sem escravos!” e, pela primeira vez, nos “Estados Unidos do Brasil”.
Na realidade, a vitória da União e a abolição do escravismo em todo o território americano faz nascer entre os maçons abolicionistas e republicanos, como era o caso de Luiz Gama, um interesse crescente pelas instuições da república federalista que os Estados Unidos eram então o único país do mundo a encarnar.
Em contraste com o modelo do parlamentarismo monárquico britânico e português, minemizados no Brasil, o modelo estadunidense ganha força.
Justamente na altura em que o modelo do Segundo Império, também copiado no Brasil, desaba, e a Terceira República é instaurada na França (1870).
Ressalte-se que Luiz Gama se refere várias vezes à sua militância abolicionista em favor dos seus “irmãos de infortúnio”.
Ex- -escravo, ele lutava em favor dos que eram mantidos na escravidão ou dos que haviam sido reescravizados ao arrepio da lei.
Com toda a força de sua convicção, ele explora as brechas da legislação e até chicanas processuais para fazer valer a prioridade do direito de liberdade sobre o direito de propriedade.
Nesse contexto, Gama era também um defensor dos deportados africanos no Brasil num período em que predominavam o racismo científico e as invasões colonialistas na África.
Haverá um dia em que os estudantes africanos também saberão quem foi Luiz Gama.
De imediato, a prática forense de Luiz Gama, largamente ilustrada neste tema, será útil aos especialistas do direito e aos que estudam o escravismo.
Convirá também aos que estudam a história do Brasil.
Enfim, a luta de Luiz Gama também serve aos brasileiros em geral, a nós, que lidamos hoje com um passado que não passa.
Eis aqui um combatente que enfrentou a grande maioria dos proprietários abusivos, dos opressores e dos autoritários, armado somente com sua coragem e com a força da Lei.
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