Quase resulta desnecessário assinalar que por trás de qualquer manifestação há algo prévio que a conformou e que a essa energia deve sua razão de ser, mesmo que se tenha essa manifestação como fenômeno ou expressão de qualquer tipo.
Os exemplos mais belos deste fato são a espontaneidade, o gesto puro, a verdadeira intuição intelectual e o ato gratuito.
A vida, a natureza, e o cosmos, seriam ilustrações admiráveis deste singelo e magno acontecimento permanente.
Eles se expressam no enquadramento espaço-temporal em que se plasma qualquer manifestação, estando por certo o homem incluído como parte integrante desta.
Seriam, pois, todas estas revelações simultâneas dos seres e das coisas, coetâneas com o tempo em uma moldura espacial determinada; e, portanto, as expressões possíveis, sujeitas a estas dimensões espaço-temporais – onde se produz a existência humana –, que coalham em formas cristalizadas, têm que ter uma estrutura prévia, respondendo a certas coordenadas – modelos ou ideias arquetípicas –, para que possam ser elas mesmas as coisas ou os seres que constituem o universo.
Na verdade, estes entes a que estamos nos referindo não são, senão, símbolos ou energias-força que representam – cada qual da sua forma ou maneira substancial – a ideia que eles encarnam, dando lugar dessa maneira ao cosmos inteiro, ao qual configuram.
No simbolismo do tecido, é fácil advertir que a face brilhante e luminosa do visível, do desenho exotérico, é a expressão do laborioso, oculto, escuro e ordenado trabalho da trama e da urdidura.
A ideia de uma estrutura “anterior”, ou prévia, a um fenômeno, ou expressão qualquer, não é só óbvia para o filósofo, para o arquiteto, para o artesão ou profissional – ou para um operário de qualquer índole –, senão para todos os que tenham pensado alguma vez na linguagem ou simplesmente em qualquer morfologia.
A imagem visível é, pois, a projeção ou o reflexo do pensamento, da ideia, ou da intuição intelectual, mediante a qual se manifestam as coisas ou se as pretende expressar.
Por isso que estes símbolos ou jogos de símbolos – que estabelecem entre si diversas relações de distinto tipo –, configuram códigos ou linguagens diferentes, que ao serem expostos a um nível de compreensão menos sutil, necessariamente têm que obscurecer seu conteúdo, ou ocultá-lo, do ponto de vista de um nível mais denso ou rarefeito de leitura.
Eis o motivo da função mediadora dos símbolos, como emissários, pontes ou portas de passagem de um plano da realidade a outro, que está sempre além deste[50].
Sobretudo em um mundo que supomos achatado e igualitário, quando na verdade se trata de um universo diferenciado e hierarquizado.
Prova disto nos dão as distintas espécies que o povoam, assim como os diversos espaços que o constituem, e os diferentes tempos que acontecem nele.
Por isso é que todo símbolo é significativo, ou significante, qualquer que este seja, e em particular aqueles em que as distintas tradições da antiguidade verteram sua experiência, como testemunho de seu conhecimento a respeito do simbolizado.
Porque para estes povos os símbolos não são arbitrários, ou convencionais, ou “metafóricos”, mas sim figuram os próprios princípios, com os quais guardam uma unidade analógica tão viva, quanto real.
Isso é o que permite o símbolo passar da ordem fenomênica ao transcendente.
Ou seja: que facilita a revelação sintética ou a compreensão de uma linguagem universal e eterna, da qual o próprio símbolo é apenas um suporte, para acessar uma ordem distinta, que se acha em outro nível, com relação à visão literal ou alegórica que estamos acostumados a ter dos fatos e das coisas.
Por outro lado, o símbolo – geralmente numérico ou geométrico – se oculta do olhar ordinário sob o ouropel do decorativo ou do funcional, porque essa é a maneira em que se cumpre a ordem natural das coisas manifestadas.
Isto é particularmente destacável no simbolismo construtivo, em especial no que se refere ao centro ou ao eixo.
Tal é o caso do centro invisível de qualquer espaço, no qual são extremamente notórios os muros e as paredes, ou o marco que o circunda [espaço].
O mesmo acontece com o simbolismo do arco arquitetônico, onde as evidentes colunas foram levantadas simetricamente a partir de um centro, no plano horizontal, que não é mais que a projeção do eixo vertical.
O qual, por outra parte, permanece perfeitamente oculto e imperturbável, enquanto estamos acostumados a admirar os luxuosos e pesados cortinados exteriores e os agregados mais ou menos tardios[51].
O símbolo passou despercebido e devemos realizar um trabalho conosco mesmos, interno, para poder resgatar os valores simbólicos.
Por outra parte, já se sabe que esta linguagem foi utilizada unanimemente pelos mestres e artistas de todas as civilizações tradicionais.
Devemos começar então por criar em nosso interior as possibilidades da compreensão, necessárias para interpretar e vivenciar estes “segredos” da arte e do símbolo.
Pois entre eles e nós só se acha uma muralha psicológica, que se pode transpor face a uma imensa dificuldade atribuível ao esquecimento e, mais ainda, à inversão total dos valores atuais sobre o mundo e sobre o próprio homem, que, entretanto, hoje como ontem, nasceu para o conhecimento.
E embora o símbolo, o mito e o rito possam ser tratados de forma conjunta, possivelmente seja necessário estabelecer alguma diferenciação dentre eles.
O símbolo iconográfico está mais relacionado com o espaço e de fato – como é notório nos yantrams hindus e nos ícones do cristianismo oriental – trata de induzir, ou criar, um espaço distinto na consciência de quem o contempla.
O mito, pelo contrário, poderia vincular-se em maior grau com o tempo e na verdade nos conecta com um tempo diferente do cotidiano.
No templo se combinam estas duas características e o espaço sagrado pretende “capturar” o tempo dos heróis e dos deuses.
O rito, por sua parte, dramatiza (ou psicodramatiza, para falar em termos modernos) a cerimônia, e reitera, através da voz, o gesto e o movimento, o tempo e o espaço primigênios[52].
Resgata-os na sua virgindade e pureza original, outorgando à ordem interna e ao pensamento, seu autêntico valor, sua intrínseca harmonia[53].
E aqui devemos recordar que toda arte reconhece origens sagradas (não necessariamente religiosas). Tal é o caso da dança, da música, da poesia (vates, por isso “Vaticano”), etc.
Por outra parte a arte não se propôs a outra coisa como meta ao longo dos tempos, assim que ela foi uma permanente busca do conhecimento, ou melhor, do reconhecimento.
Agora, ao existirem ideias arquetípicas, ou jogos prototípicos estruturais anteriores a toda manifestação e que, ao expressá-la, conformam-na, é lógico inferir que essas coordenadas constituem um modelo universal exato, preciso e concreto.
Por certo que tal modelo não seria rígido, maquinal ou um artefato de relojoaria, caso pudéssemos imaginá-lo com nossa programação industrial.
E menos ainda um computador infernal ou uma gigantesca gravação [N.T.: orig. “cassette”] indefinida, que finalizaria, junto com nossas vidas e a do mundo, em uma constante relação de causa-efeito.
Mas bem se trataria de um organismo vivo, tal como o homem e a natureza e, portanto, um mistério cheio de pontos de junção, impossíveis de ser computados por seu próprio comportamento supralógico e metaquantitativo.
Em suma, uma poética.
Uma obra de arte.
Nesse sentido, o cosmos e a projeção [N.T.: orig. “plan”] ou plano em que se conformou, configuram a mais gigantesca possibilidade de expressão e concepção artística imaginável, já que deste modelo, e sua manifestação, derivam todas as formas possíveis e secundárias de realização, tenham estas um sentido qualquer, o inverso, ou estejam neutralizadas entre ambos.
Posto que a desarmonia constante das partes é a que produz necessariamente a harmonia e o equilíbrio do conjunto.
Isto é tão válido para o modelo cósmico universal, como para o homem em sua integralidade, que não é mais que uma miniatura daquele.
De um lado o homem verdadeiro como ponto interior ou coração do cosmos, de outro, opostamente, o universo como uma projeção do ser.
A forma mais simples está em todas as formas, o que equivale a dizer que tudo está em tudo e que tudo está em nós mesmos.
E é curioso observar que estas singelas verdades, que de algum jeito conhecemos – e que por certo todos experimentamos –, estão hoje como cobertas por um véu de vergonhosa autocensura, porque talvez sintamos temor de que nos retrotraiam à infância, ou à adolescência, e nos façam, acaso, perder a bagagem “intelectual”, às vezes tão árdua e esforçadamente conquistada.
Para alguns seria de um gosto duvidoso afirmar que a vida – ou a natureza, como ilustração dela – nunca se equivoca.
Ou que sua pele tem todo tipo de texturas e que troca a roupagem todas as estações. Também assegurar que cresce, desenvolve-se, envelhece e morre.
Que a manifestação universal – simbolizada pela dança de Shiva – é a perfeição, o equilíbrio e a harmonia; que no percurso e decurso do mundo, ou do cosmos, toma todas as formas possíveis e não há aroma nem som que não esteja incluído nela.
Igualmente, se assegurarmos que esta manifestação é a única coisa que não deixou que ser novidadeira, ou surpreendente, sempre um homem ou uma mulher poderá contemplá-la pela primeira vez.
Ou que pôde superar o pessimismo e o otimismo de seus projetos, pois estes são suas realidades de todos os dias.
Que entre seus símbolos e ela mesma não há nenhuma diferença.
E que através da contemplação de sua simbólica transcendemos a dualidade do cárcere da mente, pois contemplar é recriar a obra de arte permanente.
E que, do mesmo modo, somos regenerados cada vez que se cumpre um novo ciclo e se nos abre uma porta de acesso a outras realidades tão mais efetivas quanto menos ilusórias.
O símbolo e a arte – transmissores e receptores de energias – nos brindam com a possibilidade de uma saída, de uma escala, de um caminho a ser percorrido muito mais facilmente do que se imagina.
Às vezes os caminhos se perdem no labirinto.
Talvez essa seja a única forma, para alguns, de sair dele.
No caso da arte e do artista, são particularmente válidas as palavras de William Blake: “pelo caminho do excesso também se chega ao palácio da sabedoria”.
Além disso, havendo um modelo cósmico universal, a obra de arte já está feita; foi simbolizada; e tem um plano e uma ordem.
Todo nosso trabalho consiste em resgatar e unir os nossos próprios fragmentos, para a síntese definitiva.
O mais singelo está sempre ao alcance da mão e na interioridade de cada um.
Realizar nosso trabalho com a soma de nossas possibilidades, participando da grande obra universal mediante pauta e métodos concretos; o primeiro dos quais, já se sabe, é a entrega ao trabalho: uma forma de amor.
E compreendendo que não estamos excluídos da vida e da manifestação, senão que, melhor, tudo se espera de nós, de acordo com as nossas particularidades, quaisquer que estas sejam, sem estabelecer comparações nem julgamentos, tão relativos, quanto arbitrários.
Diz-se que cada um é símbolo. Que a verdadeira obra de arte é o que se pode fazer cada qual consigo mesmo no fundo de seu coração.
As produções são secundárias, e chegam por acréscimo.
O realmente válido se situa na zona mais misteriosa e desconhecida.
E por certo ninguém poderá julgar sem equivocar-se, pois, a liberdade interior é inqualificável.
Muito menos pelo próprio interessado.
Já que ela não necessita de nada, pois sendo apenas a virtualidade de um ponto, um espaço vazio, é simplesmente o que é, gostemos ou não: nós, ou os “amigos”, ou “inimigos”, ou nossa ilusória superestrutura mental, que certas vezes nos aplaude a para que inchemos os nossos peitos como perus, e outras nos deprime muitíssimo para que nos percamos no mais próximo sumidouro.
Autor: Federico González
Tradução: Igor Silva
Notas
[50] – Toda mensagem ou mensageiro é a expressão de uma realidade mais vasta e superior, da qual ele só é o representante.
[51] – O mesmo é válido para qualquer figura geométrica ou “estrutura primária” relacionadas com a numerologia e, em especial, com a série de 1 a 9.
[52] – O templo reúne espaço e tempo, como o movimento –ritual da roda– os conjuga e efetiva. Templus é um diminutivo de tempus. Um microespaço e um microtempo simbolizam todo o espaço e todo o tempo postos em ação pela “roda da vida”.
[53] – Afortunada ou desgraçadamente, não se pode compreender o ritual, o símbolo ou a criação inteira, se não for em posse das chaves que essas expressões levam implícitas, no enquadramento no qual se manifestaram. Se a obra de arte corresponder a uma ideia, ou ao menos a uma forma de pensamento, devemos retroagir à origem dessa ideia ou à identificação com esse modo de pensamento, para poder realmente compreendê-la. Por isso a necessidade de um ensino e a gradual aprendizagem na realização do conhecimento. Quer dizer, o caminho iniciático através da via simbólica ou mítica ou poética. Porque estas proporcionam, de fato, um meio especialmente adequado, um andaime que permite a encarnação, em relação com a abertura da consciência e que, por certo, não só modifica nossa mentalidade, mas também nossa vida. Pois se formos capazes de ouvir as vozes reveladoras que se acham em nosso interior, mediante um trabalho paciente e delicado, uma arte, chegaremos à convicção de que essas vozes correspondem aos ensinos que nos foram dados e que, por outra parte, são o que constituem esse símbolo ou mito que começamos a compreender e que se efetiva ou vivifica em forma ritual no interior da consciência, que dessa maneira adquire categoria universal.
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