Para tratar do tema “Maçonaria” é necessário analisar os diversos elementos que
constituem o que podemos chamar de “mitos” e “imaginários” que foram construídos em torno dessa instituição.
Esses mitos e imaginários foram construídos tanto pelos próprios maçons como pelos opositores da Maçonaria, em especial a Igreja Católica e as demais Igrejas cristãs.
Esses mitos e imaginários permanecem vivos até os dias atuais, fato que indica a importância de se realizar uma análise mais detalhada sobre o tema.
Começaremos pelos mitos e imaginários construídos pela própria Maçonaria para depois tratarmos das construções efetivadas para tentar denegrir e demonizar essa instituição.
O primeiro aspecto a ser ressaltado sobre a Maçonaria é o seu impressionante investimento na criação de um “mito da origem”.
Essa criação ocorreu desde o início das atividades maçônicas, momento que é reconhecido pelos historiadores como ocorrido durante o período medieval.
Para Azevedo (1996), citando um historiador especialista na história da Maçonaria: “Segundo Paul Naudon, há entretanto um ponto de concordância entre seus estudiosos quanto à filiação direta da franco-maçonaria moderna (a maçonaria especulativa) à antiga maçonaria de ofício (a maçonaria operativa)1 ” (AZEVEDO, 1996, p. 180).
Assim, entre o surgimento das confrarias de pedreiros (a maçonaria operativa) durante a Idade Média, aproximadamente no século XIV – data dos mais antigos textos que citam essas confrarias (AZEVEDO, 1996, p. 180) e a fundação da primeira Loja maçônica (maçonaria especulativa) em 1717 (BENHAMOU, 2009, p. 28), ou seja, praticamente quatro séculos, aconteceu esse intenso movimento que produziu um passado mítico para a instituição.
Azevedo (1996) propõe que as antigas corporações de ofício, existentes desde a antiguidade e que ressurgiram no auge do período medieval, tiveram como características tanto o aspecto operativo como o especulativo.
Podemos considerar essa afirmação a partir da probabilidade de que havia entre os conhecedores dos ofícios, especialmente o das construções, tanto os indivíduos hábeis com as ferramentas quanto aqueles que se preocupavam com as medidas, as formas e os “segredos” contidos nos cálculos geométricos e matemáticos, isto é, uma ciência que não era acessível a todos os construtores e pedreiros.
Portanto, é possível que, dentro desse conjunto de artesãos da construção, tenha havido não apenas a transmissão dos conhecimentos das técnicas, mas também a construção de um “mito de origem” a partir da busca pela origem da ciência das construções.
Sabemos por Eliade (2007) que os “mitos de origem” são fundamentais para o homem religioso e foram fundamentais para todas as culturas.
Tanto os mitos da criação do universo, da Terra e da humanidade – as cosmogonias – como os mitos de surgimento das instituições humanas constituem uma das bases para a estruturação das culturas.
O mito é assim mostrado por esse autor: A definição que a mim, pessoalmente, me parece a menos imperfeita, por ser a mais ampla, é a seguinte: o mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “principio”.
Em outros termos, o mito narra como, graças às façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja ela uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.
É sempre, portanto, a narrativa de uma “criação”: ele relata de que modo algo foi produzido e começou a ser. (ELIADE, 2007, p. 11, grifo do autor) Parece-nos que os antigos maçons, ao construírem o “mito de origem” da Maçonaria, buscaram permanecer dentro dessa estrutura do mito, conforme definida por Eliade.
Mais do que isso, eles realizaram aquilo que era um procedimento comum na cultura anterior ao desenvolvimento da ciência moderna, isto é, procuraram pela origem de uma ciência da construção, recuando cada vez mais longe no tempo histórico em busca do evento “fundador” da franco-maçonaria ou freemasons, isto é, da confraria dos pedreiros livres.
Assim, podemos considerar a história da Maçonaria sob duas perspectivas.
Por um lado, do ponto de vista histórico, a franco-maçonaria teve origem numa corporação de ofício com características peculiares no mundo medieval, pois detinha uma liberdade de locomoção e deslocamento que não era comum a outras corporações.
Segundo Azevedo (1996), citando Naudon: O único poder então existente capaz de conceder tais privilégios, ou seja, as franquias, era a Igreja. E foi sob a sua tutela que se desenvolveram essas confrarias laicas de artesãos privilegiados conhecidos na época como os francs-mestiers.
Os textos mais antigos nos quais se faz menção a esses artesãos itinerantes, devotados às mais diversas atividades de construção, foram encontrados na Inglaterra ao tempo em que o francês era a língua oficial, e também a língua dos ofícios.
Assim, além do termo francs-mestiers, consta em documento de 1376 o termo ffremason; em 1381, masonfree; em 1396, ffremaceons2 . (AZEVEDO, 1996, p. 180)
Com essa liberdade de circulação por toda a Europa e com o aval da Igreja, os franco-maçons passaram a organizar sua confraria em termos mais filosóficos e especulativos com a passagem do tempo e o aprofundamento dos ideais renascentistas.
A aceitação de membros não profissionais como “filósofos, hermetistas e alquimistas” (AZEVEDO, 1996, p. 180), produziu uma atração entre homens da nobreza e da intelectualidade, desejosos de dar livre vazão às suas reflexões sobre os diversos “mistérios” da natureza e da vida, conhecimentos que, naquele momento, eram controlados pelo poder eclesiástico.
É por esse caminho que a Maçonaria foi se consolidando até surgir oficialmente na Escócia em 1717, quando se formalizou enquanto instituição, com templo, ritos, doutrinas e organização hierárquica.
Portanto, podemos considerar que juntamente com a história da Maçonaria enquanto instituição há também um mito sobre o surgimento do saber sobre a construção, e que a Maçonaria – a confraria dos pedreiros – está ligada a esse saber.
É interessante que Benhamou (2009), em artigo na Revista História Viva nº 71, que se declara maçom e autor de diversos livros sobre a Maçonaria, faça questão de negar e até ridicularizar os mitos construídos em relação à origem da instituição.
Por outro lado, para nosso propósito neste trabalho e independentemente das reflexões de Benhamou (2009), é importante olhar para o elemento mítico que marca a instituição maçônica.
O mito de origem da Maçonaria que nos leva mais longe no tempo refere-se a uma possível filiação dos conhecimentos maçônicos aos construtores das pirâmides no Egito Antigo.
Nessa civilização ocorreu a construção de alguns dos maiores monumentos arquitetônicos da humanidade, mostrando a existência, desde tempos muito antigos, de conhecimentos matemáticos, geométricos e arquitetônicos muito profundos, além é claro, do simbolismo intenso que essa civilização construiu sobre suas realizações.
Nesse sentido, Benhamou (2009), contrário a esse mito, propõe: Seria sedutor imaginar uma maçonaria atravessando os séculos para preservar os segredos dos primeiros construtores de pirâmides.
Eis uma ideia bonita, mas nada mais que inventiva. É verdade que papiros datando de 2000 a.C. antes de nossa era (sic) descrevem o que poderíamos chamar corporações, com objetivos definidos: caridade, condições de trabalho, salários, privilégios.
As referências maçônicas ao Egito e a seus mistérios, porém, são recentes.
Surgiram nos séculos XVIII e XIX, quando a franco-maçonaria se estruturava.
Os ritos chamados egípcios, como o Rito de Mênfis-Misraim, se multiplicaram no século XIX. Atualmente, subsiste uma maçonaria egípcia que reivindica uma herança espiritual, mas é preciso refletir sobre o que os maçons do século XIX pensavam sobre o Egito.
Para eles, tratava-se do berço dos ritos iniciáticos, o que resultou em uma visão extremamente deformada, que foi bastante explorada pelos escritores românticos [...]. (BENHAMOU, 2009, p. 29).
Como podemos observar, houve dentro da Maçonaria, em passado mais remoto ou mais recente, a construção de um mito de origem que indica uma filiação a um conhecimento específico, o dos construtores, como também aos conhecimentos secretos guardados pelos iniciados das escolas de mistérios, que existiram também no antigo Egito.
A nosso ver, a preocupação de Benhamou (2009), conforme apresentada na citação, mostra uma característica da atual fase da Maçonaria, que está se tornando mais pública, abrindo algumas das portas onde se encerravam os mistérios que povoaram o imaginário dos não iniciados durante séculos.
Não nos cabe aqui discutir se essa desmistificação da Maçonaria é positiva ou negativa, o fato que constatamos é que esses mitos ainda são muito importantes.
Outro mito de origem da Maçonaria propõe que os conhecimentos maçons surgiram durante a construção do Templo de Jerusalém pelo Rei Salomão.
Neste mito, os segredos sobre a construção do Templo teriam sido guardados pelo engenheiro-chefe Hiram Abiff.
Essa lenda é contada por Gwercman (2005) em artigo da revista Superinteressante: A lenda mais famosa conta que a origem da maçonaria está na construção do grande templo de Salomão, em Jerusalém, narrada no Velho Testamento.
Durante a obra, Hiram Abiff, o engenheiro-chefe, foi assassinado por 3 de seus pupilos.
O motivo do crime é nebuloso, mas envolveria segredos de engenharia guardados por Hiram e uma disputa por promoções de cargo.
O fato é que Hiram foi para o túmulo, mas não revelou o que sabia. Além de mártir, virou exemplo de bom comportamento maçônico. (GWERCMAN, 2005, p. 53)
Esse personagem Hiram Abiff, não existe no texto bíblico, entretanto, há na narrativa da construção do templo (I Reis, 7) a presença de um artesão com grande habilidade vindo de Tiro, cujo nome é Hiram, que foi responsável pelo acabamento do templo.
Também não há a narrativa do assassinato de Hiram, mas é possível que seja este personagem a origem do mito maçônico sobre o homem que guardou os segredos da construção até a morte, atitude que é exigida dos maçons quando entram para a instituição.
Esse mito de origem da Maçonaria nos traz à reflexão o mais importante aspecto do imaginário que foi também construído em torno dessa instituição; como já dissemos, tanto pelos próprios maçons quanto por seus opositores.
Esse aspecto é relativo aos segredos que a Maçonaria guarda para si.
Mais à frente vamos falar sobre esse imaginário, por ora vamos ainda tratar dos mitos de origem.
Um terceiro mito que está relacionado ao surgimento e desenvolvimento da Maçonaria é o que liga os pedreiros-livres à Ordem dos Cavaleiros Templários.
Essa Ordem surgiu durante as Cruzadas com o intuito de prestar socorro e proteção aos peregrinos que se dirigiam a Jerusalém, após a conquista dessa cidade em 1099 (FRANCO JR, 1989).
A própria Ordem dos Templários é envolta em mistérios. Seu rápido crescimento a partir da criação em 1119, tanto em número como em poder, assim como o rápido enriquecimento, foi motivo para o surgimento de inúmeras lendas.
A falta de documentos históricos que facilitem a reconstituição das atividades dos templários nas primeiras décadas de sua existência favoreceu essas criações (LOPES, 2006, p. 51).
Em artigo publicado na revista Superinteressante, Lopes (2006), depois de citar as palavras do historiador Ellis L. Knox em entrevista, fala sobre os tipos de especulação que surgiram a partir da falta de informações: [...] “os documentos sobre essa fase da história deles são escassos.
De 1120 até 1140, tudo é especulativo” diz Ellis “Skip” Knox, da Universidade Estadual de Boise, EUA.
Tanto é assim que os mais empolgados falam de uma escavação secreta no terreno do velho templo: Hugo e companhia teriam descoberto algum segredo dos primórdios da cristandade bem debaixo do seu quartel. Só alguns nobres de alto escalão teriam sido informados do “achado” e o acobertaram, em conluio com a ordem.
O duro é saber que diabos era o tal segredo, porque cada teórico da conspiração tem seu artefato favorito.
Alguns falam das relíquias sagradas do templo judaico; outros, do santo graal; há os que apostam na própria cabeça embalsamada de Jesus Cristo, provando que ele não tinha ressuscitado nem era divino.
Os mais modestos sugerem que as ruínas do templo deram à ordem conhecimentos secretos sobre a natureza mística da arquitetura, como forma de criar espaços sagrados e de se comunicar com Deus.
Essa sabedoria, depois, teria sido passada à maçonaria, que originalmente era uma confraria de mestres construtores. (LOPES, 2006, p. 51 e 52)
Essa especulação sobre os segredos dos Templários tornou-se maior ainda com o fim drástico da ordem decretado pelo Papa Clemente V, a partir da perseguição movida pelo rei da França Filipe, o Belo.
A morte na fogueira dos principais líderes (no ano 1314) e o mistério que envolveu o desaparecimento dos bens e da riqueza acumulada pela ordem foi fundamental para alimentar a ideia de continuidade da preservação dos segredos templários no interior da Maçonaria.
Para Benhamou (2009) essa suposta continuidade entre os Templários e a Maçonaria se deve ao fato da Ordem dos Templários ter construído muitas igrejas e outros prédios na Europa, dependendo para isso das confrarias de pedreiros.
Esse autor afirma: Assim, durante dois séculos, os Templários e as corporações de ofícios coabitaram. Por isso, é tão tentador imaginar que determinados membros da Ordem do Templo fugiram e encontraram refúgio, em especial na Escócia, junto de organizações fraternais de trabalhadores de pedra. (BENHAMOU, 2009, p. 29)
Para completar sua reflexão, Benhamou (2009) propõe que no processo de consolidação da maçonaria especulativa, a instituição se preocupou em alcançar maior prestígio social para atrair membros que possibilitassem à confraria deixar de ser uma simples organização de trabalhadores e passar a outra forma organizativa.
Benhamou afirma: Andrew Michael de Ramsay, grande orador da Ordem Maçônica da França, encontrou um recurso astucioso: fundou uma nova maçonaria, com base na simbologia das Cruzadas. Ele não se referia explicitamente à Ordem dos Cavaleiros do Templo, ainda condenada por Roma, mas a uma ordem construtora que teria surgido na Escócia.
Por meio dessa lenda, construiu o chamado “rito escocês antigo e aceito”, no qual certos graus se referem aos Templários: Cavaleiro do Oriente, Príncipe de Jerusalém, Cavaleiro Rosacruz e Cavaleiro Kadosh. (BENHAMOU, 2009, p. 29).
Por esses argumentos, defendidos por historiadores e maçons e publicados tanto em artigos, como em livros ou em reportagens que misturam investigação histórica e curiosidades sobre mistérios que alimentam o imaginário social, podemos perceber como mito e história estão profundamente enraizados na presença da Maçonaria na sociedade ocidental, possibilitando inúmeras interpretações sobre sua participação nos eventos marcantes da história de diversos países.
Referências
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Sobre o autor Andre Luiz Caes
Possui doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Atualmente é professor da Universidade Estadual de Goiás. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga e Medieval, História do Brasil e História das Religiões, atuando principalmente nos seguintes temas: igreja católica, identidade religiosa, doutrina, relações entre religião e sociedade, relações entre as religiosidades ocidental e orienta
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