Para iniciar a reflexão sobre o imaginário que envolve a Maçonaria vamos abordar um aspecto importante desenvolvido na cultura ocidental durante os últimos séculos: a ideia da existência de uma ciência oculta, alheia às conquistas e conhecimentos da ciência racionalista. Eliade (1979) em artigo intitulado “O oculto e o mundo moderno” faz uma reflexão sobre a grande valorização das chamadas “ciências ocultas” ou do “ocultismo” e do “esoterismo” durante os últimos séculos, com particular ênfase no século XIX em diante.
Para definir o que é esse “oculto”, esse autor utiliza o texto de Edward A. Tiryakian: [...] por oculto, eu entendo práticas, técnicas e procedimentos intencionais que:
a) fazem uso de poderes secretos ou desconhecidos da natureza ou do cosmos, poderes esses incomensuráveis ou irreconhecíveis pelos instrumentos das ciências modernas; e
b) que buscam resultados empíricos, tais como o conhecimento da sucessão dos acontecimentos ou a alteração de seu curso norma...
Para se ir mais longe, na medida em que a pessoa que pratica a atividade oculta é alguém que adquiriu conhecimento e habilidades necessárias a tais práticas e, na medida em que tais práticas e habilidades são aprendidas e transmitidas de maneira social (embora não abertas ao grande público), de modo organizado, ritualizado, podemos chamar essas práticas de ciências ou artes ocultas. (TIRYAKIAN apud ELIADE, 1979, p. 57)
A partir dessa definição, Eliade (1979) afirma que essas “crenças, teorias e técnicas chamadas ocultas e esotéricas” (p. 57) já existiam desde a mais alta antiguidade, nas civilizações do Antigo Egito e da Mesopotâmia, assim como nas civilizações grega e romana, e que elas permaneceram vivas durante todo o período medieval – apesar do controle que a Igreja Católica procurou exercer sobre a sociedade.
Esses conhecimentos chegaram ao mundo moderno pelas atividades de muitos alquimistas, místicos e instituições com caráter iniciático.
Eliade (1979, p. 63) elenca muitas das influências exercidas pelas ciências ocultas durante o período renascentista e também a importância desse conhecimento para o próprio desenvolvimento da ciência moderna.
Copérnico, Giordano Bruno e outros cientistas do período estiveram completamente ligados a essas ciências que tinham sua origem nas culturas antigas.
A magia, a cabala, a bruxaria, a alquimia, a astrologia, as práticas xamânicas antigas, são muitas das expressões desse conhecimento que tiveram um valor fundamental para muitos sábios do Renascimento e continuaram sendo difundidas em círculos restritos até serem “redescobertas” pelos intelectuais livres-pensadores do século XIX e XX (ELIADE, 1979, p. 63).
Do ponto de vista deste trabalho, quando se fala em Maçonaria há uma referência natural à mais polêmica das sociedades secretas e iniciáticas do mundo ocidental, justamente porque esta parece guardar – e estimula todos a pensar dessa forma – os mais profundos segredos das ciências ocultas, normalmente definidas pelos inimigos como rituais e conhecimentos satânicos.
Benhamou (2009a) mostra que, desde a Revolução Francesa, foi difundida a crença de que a Maçonaria estaria à frente de um projeto cuja finalidade era modificar radicalmente as estruturas de poder que então existiam na sociedade ocidental.
O autor afirma: Não há dúvida de que a Revolução Francesa foi deflagrada em nome dos valores defendidos pelos maçons no fim do século XVIII.
A luta contra o despotismo real e a defesa da liberdade eram temas recorrentes nas lojas francesas da época.
Há, no entanto, quem acredite que o levante de 1789 teria sido a primeira etapa de um complô mundial orquestrado pelos maçons para destruir todas as religiões.
Inúmeros historiadores já demonstraram quão absurda é essa teoria, mas até hoje ela sobrevive entre os amantes de teorias da conspiração. (BENHAMOU, 2009a, p. 30)
O autor propõe que havia realmente muitos maçons envolvidos no movimento revolucionário, mas que no andamento do processo os adeptos da Maçonaria, em sua maioria “burgueses, aristocratas, militares e, surpreendentemente, eclesiásticos” (BENHAMOU, 2009a, p. 31), foram considerados inimigos da revolução, tendo um de seus grãos mestres “o duque de Orléans, Philippe Egalité” (p. 31) sido guilhotinado em 1793.
O fato, para Benhamou (2009a), é que a publicação de pequenos livretos defendendo a ideia de um complô maçônico acabou por alimentar essa teoria conspiratória que permanece viva no imaginário ocidental até hoje.
O autor cita três obras publicadas ainda no período revolucionário cujo impacto pode ter sido bastante grande. Se pensarmos nessas publicações a partir da ótica apresentada por Darnton (1987) sobre o papel da “baixa” literatura durante o período pré-revolucionário e mesmo durante a Revolução, podemos ter uma noção de como os livretos foram recebidos pela sociedade da época.
Segundo as fontes analisadas por Darnton (1987), o grande comércio de livros na França naquele período era constituído por escritos panfletários e populares, contendo informações não comprovadas sobre a vida de nobres e eclesiásticos, sobre a política real e a administração pública, escritos que disseminavam ideias completamente avessas aos textos filosóficos do Iluminismo.
Vejamos como Darnton apresenta essa “baixa” literatura: Tantas foram, e tão boas, as descrições do ápice da história intelectual do século XVIII, que talvez conviesse rumar noutra direção, tentando atingir a base do Iluminismo e mesmo penetrar seu submundo, lá onde ele possa ser examinado como ultimamente se tem feito com a Revolução – isto é, de baixo.
O ato de escavar, na história das ideias, exige novos métodos e novos materiais.
Remexam-se arquivos, em vez de contemplar tratados filosóficos.
Um exemplo da espécie de detritos que tal escavação pode trazer à luz é a seguinte carta, dirigida por um livreiro de Poitiers a seu fornecedor na Suíça: Eis uma pequena lista de livros filosóficos que desejo.
-Favor mandar a fatura antecipadamente: Vênus no claustro ou
-A freira em camisola
-O cristianismo desvendado
-Memórias da Marquesa de Pompadour
-Investigação sobre a origem do despotismo oriental
-O sistema da natureza Thérese,
-a filósofa Margot, a companheira dos exércitos.
Eis, no jargão do comércio livreiro do século XVIII, uma noção do filosófico partilhada por homens cujo negócio era saber o que os franceses queriam ler. (DARNTON, 1987, p. 13 e 14, grifos do autor)
O autor sugere, em sua análise da literatura do período revolucionário na França, que foi muito grande a circulação e importante o papel desses panfletos, à medida que eles constituíam a maior parte dos textos que circulavam popularmente entre os franceses.
Nessa perspectiva, e voltando aos livretos citados por Benhamou (2009a) que falam do complô maçônico, podemos obter certo entendimento do por que essa lenda adquiriu tanta força.
Os títulos desses livretos já mostram seus objetivos: “Retirando o véu para os curiosos ou o Segredo da Revolução revelado com a ajuda da francomaçonaria” (Abade Lefranc, 1791), “Memórias a serviço da história do jacobinismo” (Abade Barruel, 1793) e “A tumba de Jacques Molay ou História secreta resumida dos iniciados antigos e modernos, Templários, franco-maçons, Illuminati” (Charles Louis Cadet de Gassicourt, 1796).
Os três livros tratam do complô maçônico sem apresentar provas concretas, apenas especulações.
Dentre eles, Benhamou (2009a) cita:
Assim, foi de Londres que Barruel escreveu suas Memórias a serviço da história do jacobinismo.
Um trecho desse livro resume bem a visão do abade: “Nessa Revolução Francesa tudo foi previsto, meditado, combinado, decidido, estabelecido – até os mais espantosos crimes: tudo foi resultado da mais profunda maldade, pois tudo foi preparado, dirigido por homens que tinham como único objetivo as conspirações há muito urdidas em sociedades secretas, e que espreitaram e souberam esperar pelo momento propício para o complô”. (BENHAMOU, 2009a, p. 30)
É importante dizer que essa tese mostrada por Benhamou foi amplamente defendida pelos católicos nos anos após o início da Revolução3 .
Mesmo que a perspectiva apresentada por Benhamou (2009a) procure desmontar a tese da conspiração, o fato é que a participação ativa da Maçonaria no processo de independência dos Estados Unidos, ocorrida em 1776, também ajudou a incentivar o imaginário sobre a influência subterrânea ou explícita dos maçons em movimentos políticos importantes.
George Washington, o primeiro presidente norte-americano, aparece frequentemente em trajes maçônicos durante momentos significativos de seu governo, como a cerimônia de assentamento da pedra fundamental do “Capitólio”, em 1793. (CHATENET, 2009, p. 37)
Consultando outros textos que tratam da história da Maçonaria (BARATA, 1999 e 2000, MOREL, 2001, AZEVEDO, 1996, VIEIRA, 1999 e PINHEIRO, 1997) podemos constatar que os maçons sempre tiveram um importante papel também na política brasileira, sendo, entretanto, impossível afirmar que a Maçonaria como instituição estivesse à frente e comandando os diversos momentos históricos decisivos em que os maçons participaram.
É nesses limites sutis entre a ativa participação dos maçons e a supervalorização do poder da Maçonaria que o imaginário social é alimentado e desenvolvido.
O fato da Maçonaria, como sociedade iniciática, procurar manter – e conseguir, o que é mais impressionante – o segredo sobre suas atividades internas, faz com que o imaginário sobre ela enfoque tanto o cultivo das ciências ocultas como a prática do satanismo.
Por isso, é importante ressaltar alguns pontos sobre a Maçonaria encontrados no texto de Nefontaine (2007):
Diferentemente do que pensa o senso comum, essa organização sempre teve sua existência formalmente conhecida e reconhecida e, logo que surgiu, declarou fidelidade ao poder estabelecido.
Ao mesmo tempo, suas lojas imediatamente reivindicaram o direito de se constituir de forma livre e autônoma, o que gerou perseguições e transtornos com a polícia.
Embora os locais de reuniões fossem perfeitamente conhecidos pelas forças da ordem, a alegação principal para tal repressão era justamente que os maçons se reuniam em segredo.
Na realidade, o juramento de nada revelar do que é dito nesses encontros é o que inquieta e assusta.
Diante das acusações e das perseguições, os maçons repetem que não são uma sociedade secreta, mas sim discreta; que seu segredo é inviolável apenas porque não pode ser comunicado; que a não revelação da filiação de outro é sinônimo de preservação da esfera privada para se protegerem de qualquer retaliação externa, em particular no meio profissional; que a prática do sigilo é preciosa em momentos de ressurgimento de totalitarismos, sempre prontos a perseguilos; por fim, que a ocultação é a garantia de liberdade total de expressão dentro dos limites do templo. (NEFONTAINE, 2007, p. 60)
É interessante essa perspectiva porque mostra o poder do imaginário: o fato de uma sociedade manter em segredo seus rituais e suas doutrinas internas, além de outros como a não divulgação do nome dos irmãos, faz com que os não participantes se incomodem, especialmente se o imaginário é movido pelo medo da conspiração ou medo religioso.
Como dissemos acima, o estudo das ciências ocultas atraiu muitas pessoas nos últimos séculos, mas atraiu também muito ódio e perseguições, como se o estudo do que é oculto pudesse, por si mesmo, se constituir numa ameaça à vida das sociedades.
Esse medo só foi difundido com tanta eficácia porque esteve sempre envolto com as crenças religiosas cristãs e a partir da ideia de que o que está oculto é das trevas.
Nota
3 Para um aprofundamento desse tema, conferir: CAES, André Luiz. Da espiritualidade familiar ao espírito cívico: a família nas estratégias de reestruturação da Igreja (1890-1934). Campinas/Unicamp: Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 1995. Dissertação de Mestrado. No primeiro capítulo desse trabalho, como introdução ao tema principal da Dissertação, o autor faz uma reflexão sobre a reação da Igreja Católica em relação à Revolução Francesa, abordando também a tese da conspiração.
Referências
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Sites
https://padrepauloricardo.org/episodios/um-catolico-pode-ser-macom http://intellectus-site.com/site2/artigos/maconaria-braco-direito-do-diabo.htm http://w2.vatican.va/content/leo-xiii/pt/encyclicals/documents/hf_lxiii_enc_18840420_humanum-genus.htm
Sobre o autor Andre Luiz Caes
Possui doutorado em História pela Universidade Estadual de Campinas (2002). Atualmente é professor da Universidade Estadual de Goiás. Tem experiência na área de História, com ênfase em História Antiga e Medieval, História do Brasil e História das Religiões, atuando principalmente nos seguintes temas: igreja católica, identidade religiosa, doutrina, relações entre religião e sociedade, relações entre as religiosidades ocidental e orienta
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