REPÚBLICA E “RELIGIÃO SOCIAL”: MAÇONS, ESPÍRITAS E TEOSOFISTAS NO ESPAÇO PÚBLICO CEARENSE


REPÚBLICA E “RELIGIÃO SOCIAL”: MAÇONS, ESPÍRITAS E TEOSOFISTAS NO ESPAÇO PÚBLICO CEARENSE

1 Marcos José Diniz Silva ∗Universidade Estadual do Ceará –UECE


RESUMO

Analisa a atuação de maçons, espíritas e teosofistas no espaço público cearense na Primeira República, enquanto componentes duma rede de pensamento moderno-espiritualista, aqui definida como vertente espiritualista influenciada pelo racionalismo e cientificismo-positivista e guardando elementos das tradições esotéricas e ocultistas. Será perceptível nos discursos e práticas sociais desses agentes, a formulação de proposições alternativas de caráter religioso, social e político, constituindo-se alternativa ideológica original à política social do catolicismo e às organizações de esquerda, nos embates sociopolíticos e religiosos do Ceará das primeiras décadas do século XX.

RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO

1 Este artigo tem por base algumas questões desenvolvidas em minha Tese de Doutorado Modernoespiritualismo e espaço público republicano: maçons, espíritas e teosofistas no Ceará, defendida no Programa de Pós-Graduação em Sociologia/UFC, em junho de 2009. Esta pesquisa contou com apoio financeiro da Fundação Cearense de Apoio ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico – FUNCAP. 

∗ Graduado e Especialista em História. Mestre e Doutor em Sociologia. Professor do Curso de História da Faculdade de Educação, Ciências e Letras do Sertão Central – FECLESC-UECE (Campus Quixadá-Ce). Tem artigos publicados sobre maçonaria e espiritismo no Ceará e é autor do livro No compasso do progresso: a maçonaria e os trabalhadores cearenses. Fortaleza: NUDOC/UFC, 2007. (Coleção Mundos do Trabalho). 

A emergência do regime republicano no Brasil configura um processo de modernização que tem por base a secularização e a laicização do Estado estabelecendo, consequentemente, a distinção entre as esferas do Estado e da sociedade civil. No que respeita à liberdade religiosa, ocorre um processo inverso ao que se costuma definir como a tendência das transformações da modernidade. Ou seja, com a secularização republicana separando-se a Igreja do Estado e liberalizando-se a prática pública das diversas crenças e denominações religiosas – Decreto 119A, de 1890 e Constituição de 1891 – dá-se a expansão das práticas religiosas no espaço público em condição de igualdade jurídica com o culto católico, até àquele momento o único de caráter público e oficial. Essa realidade não apenas põe em questão a visão teleológica da secularização como irremediável “desencantamento do mundo”, restringindo a religião cada vez mais ao âmbito privado; como, por sua vez, estabelece caracteristicamente um processo jurídico-político de definição, legitimação e alocação social do que deveria ser uma “religião”. Produziu-se, de acordo com Montero, “um intenso conflito em torno da autonomia de certas manifestações culturais de matriz não-cristã, ou da sua legitimidade para expressar-se publicamente”.

2 Desse modo, na primeira metade do século XX, por exemplo, manifestações variadas de “feitiçaria”, “curandeirismo” e “batuques”, nos quais se incluía o Espiritismo, de origem francesa, “só puderam ser descriminalizados quando, em nome do direito à liberdade de culto, passaram a se constituir como religiões”.

3 Em tais formulações, ressalta Giumbelli, o intenso debate jurídico “versou quase nunca sobre a religião que teria liberdade, quase sempre sobre a liberdade de que desfrutaria a religião”.

4 Ou seja, as resistências e negociações do catolicismo aos limites impostos à sua presença no novo Estado, imprimiam um papel modelador dessa matriz cristã na definição do lugar, das características e dos limites da religião na sociedade. 2 MONTERO, Paula. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos CEBRAP. São Paulo, n. 74, p. 49-50, março/2006. 

3 Ibid. 

4 GIUMBELLI Emerson. O fim da religião: dilemas da liberdade religiosa no Brasil e na França. São Paulo: Attar Editorial, 2002, p. 276. Cf. GIUMBELLI Emerson, A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. Religião e Sociedade. Rio de Janeiro: ISER, n. 2, p. 80, 2008. vol. 28

Nesse contexto, ressalta o papel do Estado no delineamento jurídico das condições de funcionamento do espaço público, aqui entendido como a esfera da sociedade civil que emerge com o Estado secular republicano. Essa esfera pública ainda não configurava plenamente uma “esfera pública burguesa”.

5As condições socioeconômicas, culturais e políticas da realidade brasileira, agravadas pelo mandonismo, pelo arbítrio e pela fictícia liberdade de expressão, não favoreciam o incremento da esfera pública como espaço da crítica e do controle do Estado pela sociedade civil. 

Nas últimas décadas do século XIX, Fortaleza já se consolidara como entreposto comercial de base agroexportadora, sustentada no binômio gado/algodão, centralizando o setor importador-exportador e auferindo os benefícios do capital, da infra-estrutura e da integração econômica e cultural com a Europa. Esses fatores fortalecem a camada burguesa, sobretudo comercial, e a expansão da classe trabalhadora e dos estratos médios, como funcionalismo e profissionais liberais. A euforia comercial apresentava também seu aspecto importador, estimulando o consumo dos bens materiais e simbólicos da civilização européia. Disso resultaria, de um lado, o impulso à modernização urbana, a adoção de condutas/etiquetas civilizadas e com elas as últimas novidades intelectuais, científicas, filosóficas e políticas da matriz cultural européia. De outro lado, essa diversificação social trazia consigo maior fracionamento e tensão no tocante à mentalidade e às práticas urbanas. 

Contando 50 mil habitantes na passagem para o século XX (78.536 habitantes em 1920, atingindo 126.666 habitantes em 1930), Fortaleza não apenas se expandia em seus jardins, praças, passeios, comunicação telegráfica, como também nas lides intelectuais com a proliferação de academias literárias e científicas, lojas maçônicas, clubes de leitura, livrarias e cafés, constituindo espaços de sociabilidade e terreno fértil para a difusão dos ideários da modernidade, do racionalismo e do cientificismo. 

A cidade extrapolava o lugar de centro vital da economia mercantil, constituindo também um esboço de esfera pública (representada, sobretudo, na imprensa de variada feição ideológica, em academias e centros literários) desenhada pelo conjunto irrequieto de suas novas instituições. 

De tal modo, ao longo das primeiras décadas republicanas, se engendraria maior complexidade na “arte do raciocínio público” de orientação política. A título de exemplo, encontram-se diversas associações de trabalhadores e partidos políticos (Partido Operário, Partido Socialista Cearense), para fins de reivindicação de direitos ou de transformação nas bases da organização social vigente.

5 Cf. HABERMAS, Jurgen. Mudança estrutural da esfera pública. Tradução Flávio R. Kothe. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003

Algumas dessas instituições veicularam “órgãos informativos”, em jornais de pequeno porte e tiragem, porém de relevante significado para a formação de quadros militantes e de uma “opinião pública” favorável às reivindicações e direitos dos trabalhadores.6 

Na outra margem proliferaram os periódicos de caráter liberal e conservador, pontificando os interesses da elite econômica e política, do movimento maçônico e da religião católica, representando seus partidos políticos e outras organizações. 

Embora ressalvando os limites estruturais desse espaço público em formação, é relevante observar os significados socioculturais da pluralidade das manifestações públicas das religiões e crenças; como também sua difusão na imprensa, nas associações de trabalhadores, nos grêmios cívico-literários, na cena política, propondo novas alternativas religiosas, morais, sociais e políticas. 

É nesse espaço público republicano do Ceará da Primeira República, que se pretende analisar as proposições moderno-espiritualistas de maçons, espíritas e teosofistas, situando a presença histórica de outras religiosidades no confronto com as normatizações e mentalidades decorrentes da religião tradicional estabelecida – o catolicismo. 

O MODERNO-ESPIRITUALISMO DE MAÇONS, ESPÍRITAS E TEOSOFISTAS 

Quando Allan Kardec colocou no frontispício de O Livro dos Espíritos, a expressão “Filosofia Espiritualista” deixava claro, dentre outras coisas, que a nova idéia tinha um conteúdo religioso embora diverso da concepção tradicional de religião. 

6 “Aliando socialistas, positivistas, anarquistas, maçons e espíritas nessas primeiras décadas do século XX, o movimento [operário] conferia maior amplitude organizacional, maior representatividade social, maior capital cultural, revelando nos seus discursos uma riqueza de representações de mundo que, longe de serem contraditórias, ou fruto de imaturidade de classe ou ideológica, revelavam um projeto de sociedade que não descartava os valores da sociedade tradicional em sua totalidade, mas operava uma redefinição de mundo à luz dos elementos da modernidade”. SILVA, Marcos J. D. Modernidade e espiritualismo na imprensa operária cearense da Primeira República. Revista História Hoje. São Paulo: ANPUH, vol. 5, n. 13, p. 13, 2007. 

Mesmo com a recorrente advertência de que a doutrina espírita era, acima de tudo, uma ciência de observação, de onde derivava uma filosofia com conseqüências morais, os fundamentos espiritualistas da nova ideia levaram-na a ser interpretada como nova crença, nova religião. 

Assim, seus fundamentos: 

- existência de Deus, preexistência e sobrevivência do Espírito, reencarnação, mediunidade, pluralidade dos mundos habitados, considerados como conhecimentos e práticas espiritualistas presentes em toda a história da humanidade, foram encarados sob uma perspectiva racionalistanaturalista e organizados como corpo de doutrina. 

Para o codificador do Espiritismo, esses fundamentos, embasados nas “Leis Divinas ou Naturais”, na lei dos fluidos/magnetismo, na lei de ação e reação, na lei de evolução, tinham como objetivo precípuo uma consequência moral. 

Em síntese: 

O Espiritismo era o Cristianismo no seu aspecto de ensino moral, na prática moral dos ensinamentos evangélicos, fundada numa rigorosa justiça divina que permitia aos homens a felicidade futura. 

O Espiritismo reviu a moral cristã à luz dos ensinamentos dos Espíritos, fundamentando a lei evangélica da relação permanente entre os vivos e os habitantes do mundo invisível.7 

O advento do Espiritismo no Brasil, com sua alternativa de “fé racional” de alentada referência na “ciência positiva”, encontraria entre os maçons, atacados pelo catolicismo ultramontano, condições favoráveis de disseminação. Observe-se que a segunda metade do século XIX fora marcada, no Brasil, pela difusão do positivismo e do evolucionismo junto às elites letradas e liberais, de tal modo que a adesão de maçons a esses postulados tornara-se uma resposta ao movimento ascendente de romanização católica, de acirrado combate aos modernismos. Convém, portanto, refletir sobre os aspectos religiosos das práticas maçônicas, tendo em vista que o considerável número de maçons-espíritas não encontraria explicações plausíveis apenas nos elementos filosóficos racionalistas e cientificistas que partilhavam, e que não lhes constituía exclusividade na sociedade de então. Genericamente, a Maçonaria pode ser definida como uma fraternidade masculina, iniciática, evolucionista e racionalista, pautada no respeito à diversidade de ideias e crenças de seus membros, exigindo dos mesmos a reverência a um Ser Supremo, um Criador. 

Dessa exigência, decorre uma questão que tem sido motivadora de preconceitos e graves conflitos: É a Maçonaria, então, uma religião?

7 SILVA, Eliane M. Reflexões teóricas e históricas sobre o espiritualismo entre 1850 -1930. Campinas, Unicamp: 1997. D 

A Maçonaria se apresenta como uma “religião sem dogma”, “eminentemente religiosa”, professando uma “religião natural”. Ou seja, há um pressuposto espiritualista oriundo dos “mistérios antigos”, acrescido dos desenvolvimentos modernos do racionalismo e do cientificismo, dos quais deriva uma perspectiva filosófica e moral que se harmoniza com a essência das religiões monoteístas praticadas por seus membros. Essa característica religiosa da instituição maçônica lhe rendeu severa oposição e muitas perseguições da religião católica, especialmente a partir do século XVIII, após a constituição da Maçonaria moderna ou Especulativa.8 

A radicalização racionalista do movimento iluminista do final do século XVIII, configurada nas revoluções burguesas que derrubaram as estruturas do Antigo Regime, legou à Maçonaria a condição de inimigo número um da religião católica, que exacerbou o caráter religioso e político daquela, através do mito dos complôs. Fator que agravara esse quadro tenso fora é o surgimento de uma corrente maçônica radicalmente laica e materialista, que se proclamava sociedade de pensamento com fins culturais e políticos, com finalidades explícitas de combater o clericalismo e a influência “obscurantista” da religião na sociedade obstaculizando o progresso humano. 

Assim o fez o Grande Oriente da França, em 1877, seguido em outros países, sobretudo latinos, de modo mais ou menos radical. 

No Brasil, apesar da influência cultural francesa no século XIX, não se configurou de modo determinante a característica antireligiosa das maçonarias francesa e italiana, embora o anticlericalismo tenha feito seus prosélitos com bastante alarde até pelo menos a década de 1920. 

Porém, a religiosidade maçônica não se limita à obrigatória crença em Deus, denominado Grande Arquiteto do Universo (G.A.D.U.). 

8 A historiografia maçônica convencionou dividir a história da Maçonaria em três grandes períodos. São eles: Maçonaria Primitiva, da antiguidade mais remota até o final do Império Romano, integrando a mística hindu, mesopotâmica, egípcia, hebraica, mitráica e grega; Maçonaria Operativa ou confrarias, disseminadas na Europa medieval, até o início do século XVIII, congregando construtores e artífices livres das amarras da servidão; Maçonaria Especulativa ou Moderna designa a fase iniciada nos princípios do século XVIII, mais especificamente na Inglaterra, em 1717, quando se funda a primeira Grande Loja, até os dias de hoje. Nesse período, intensificou-se uma prática iniciada no século XVII, de “receber homens que não eram profissionais, mas que pelo seu interesse demonstrado para com a Ordem e seus mistérios, abriam-se-lhes a oportunidade de serem aceitos na Fraternidade”. LINHARES, Marcelo. História da Maçonaria (Primitiva, Operativa, Especulativa). Londrina: Editora Maçônica A Trolha, 1997, p. 99. Grifo do autor. 

Em 1922, nas comemorações do centenário da Independência do Brasil, o Grande Oriente do Brasil, no Rio de Janeiro, publicou o Livro Maçônico do Centenário, rica coletânea de informações e ensinamentos onde destaca substanciosa autodefinição: Ela [a Maçonaria] não é uma política, nem uma religião, nem uma filosofia, no sentido particularizado de todas essas coisas. 

Ela é tudo isto, entretanto, ao mesmo tempo – política sem partido, religião sem dogma, filosofia sem conclusões obrigatórias. 

É ela tudo que resume anseio humano para a perfeição, tudo que dá asas ao intelecto e o liberta da escravidão das seitas, tudo que é luz posta no caminho da vida para a peregrinação interminável, por que justamente busca a perfectibilidade inatingível.9 (Grifo nosso) 

Há, também, quem defenda a Maçonaria como “eminentemente religiosa” ou “sumamente religiosa”, por considerarem-na portadora de uma “religião natural” que possibilita a seus membros, a partir da diversidade religiosa, o desenvolvimento dos ritos em direção à compreensão cada vez mais profunda das leis divinas e da “Verdade”. No Ritual do aprendiz maçom (1870), J. M. Ragon ensina: A Maçonaria é uma sociedade íntima de homens escolhidos, cuja doutrina se fundamenta sobre o amor de Deus, sob o apelativo de Grande Arquiteto do Universo, e sobre o amor para com todos os homens. Sua norma é a religião natural e a moral universal. Reconhece por causa a verdade, a luz, a liberdade; por princípio a igualdade, a fraternidade, a caridade; por armas, a virtude, sociabilidade, o progresso; por objeto o aperfeiçoamento e a felicidade do gênero humano que procura reunir sob uma única bandeira.10 (Grifo nosso) Essa “religião natural” maçônica conservando elementos esotéricos das tradições e Mistérios Antigos, aos quais se acrescentaram pressupostos racionalistas, positivistas e evolucionistas dos séculos XVIII e XIX, configurou com o Espiritismo e a Teosofia, promovida pela Sociedade Teosófica, uma grande corrente modernoespiritualista. 

9 BASTOS, Octaviano; CARAJURÚ, Optato; DIAS, Everardo. Livro maçônico do centenário. Rio de Janeiro: [s. n.], 1922, p. 29. 

10 FERRER BENIMELI, José A.; CAPRILE, Giovanni; ALBERTON, Valério. Maçonaria e Igreja Católica. Ontem, hoje e amanhã. 4 ed. Revista. Tradução e adaptação de Valério Alberton. São Paulo: Paulus, 1998, p. 50-51. Embora tenha a religião natural ou deísmo surgido na Inglaterra e na França entre o final do século XVII e início do XVIII, fato que poderia ter influenciado na conformação do aspecto religioso da Maçonaria moderna; o sentido que a Maçonaria lhe dá está mais próximo da religião como culto interior, reconhecendo as revelações e a relação sobrenatural com a divindade. Ou seja, uma forma de teísmo.


Afinidades históricas e doutrinárias valem também para as relações entre maçons e teosofistas – que, aliás, remontam a muitos séculos antes do surgimento da Sociedade Teosófica11, em 1875, sob a liderança de Helena P. Blavatsky. Observe-se, por exemplo, o entendimento sobre o significado de religião na proposição da Sociedade Teosófica, a partir do entendimento de Blavatsky, e sua correspondência ao significado do mesmo termo na Maçonaria. Para a fundadora da Sociedade Teosófica, “Apesar da imensa diversidade que oferecem do ponto de vista exterior, todas as religiões têm um fundo comum nas ideias dogmáticas, filosóficas e morais”. Mais adiante, acrescentando: De fato, o estudo comparado das religiões demonstra que os ensinamentos fundamentais sobre a Divindade, o homem, o universo, a vida futura, são substancialmente idênticos em todas elas, apesar de sua diversidade aparente. [...] Esta base comum de todas as religiões dignas deste nome explica-se por que todas elas emanam da Grande Fraternidade de Instrutores Espirituais, que transmitiram aos povos e raças as verdades fundamentais da religião, sob a forma mais apropriada às necessidades daqueles que deviam recebê-las, bem como às circunstâncias de tempo e lugar.12 (Grifo nosso) Destaca-se nessa definição, o “fundo comum” dogmático, filosófico e moral das religiões, o “estudo comparado das religiões” e sua inspiração celeste nos ensinamentos da “Grande Fraternidade de Instrutores Espirituais”. Esses aspectos farão eco junto à Maçonaria. Num referenciado dicionário maçônico, por sua vez, o autor também partirá do reconhecimento de que, apesar da diversidade de cultos externos, “todas as religiões apresentam uma base comum em seus internos princípios morais, filosóficos e místicos”.13 Mais adiante, o autor justifica a assertiva: Com efeito, o estudo comparativo das religiões demonstra serem idênticos os seus ensinamentos fundamentais sobre a Divindade, o homem, o universo, a vida futura, porém adaptados à época e ao povo a que se destinaram. Por outras palavras, são as mesmas as suas verdades esotéricas, que não raro aparecem desfiguradas em seus cultos exotéricos. 

11 “Seu objetivo [da Sociedade Teosófica] declarado foi, no início, a investigação científica dos fenômenos chamados espíritas, depois do que foram expostos seus três principais objetivos: 

-1º) A Fraternidade humana, sem distinção de raça, cor, religião ou condição social; 

-2º) O estudo sério das antigas religiões para fins de comparação e de seleção de uma moral universal e 

-3º) O estudo e desenvolvimento dos poderes divinos latentes no homem. 

No momento atual [1892], a Sociedade Teosófica tem mais de 250 ramos disseminados em todo o mundo, a maioria dos quais na Índia, onde também se encontra seu Centro principal. Compõe-se de várias secções: a Hindu, a americana, a Australiana e as Secções Européias”. BLAVATSKY, Helena P. Glossário Teosófico. 5 ed. Tradução de Sílvia Sarzana. São Paulo: Ground, 2004, p. 645. Grifo da autora. 

12 Ibid., p. 564. 

13 FIGUEIREDO, Joaquim G. de. Dicionário de Maçonaria (seus mistérios, seus ritos, sua filosofia, sua história). São Paulo: Editora Pensamento, 1998, p. 388. Grifo nosso.

Seus imortais fundadores foram todos Mensageiros da Verdade única, que deram à humanidade seu evangelho de União e Fraternidade, para que através do Amor as almas se religuem entre si e ao Supremo.14 (Grifo nosso)

Tal semelhança de perspectiva – “base comum” das religiões, “estudo comparativo” das tradições religiosas, inspiração comum nos “Mensageiros da Verdade única” – já se evidenciara na fundação de Sociedade Teosófica, na iniciação maçônica de Blavatsky e na pertença maçônica de diversos de seus colegas – “irmãos” – fundadores e seguidores. 

Essa concepção religiosa da Maçonaria confrontava diretamente o dogmatismo da religião tradicional, atraindo sua reação, da mesma forma quando da radicalização laicista, anticlerical e materialista de algumas potências maçônicas.15 Delineadas as condições das afinidades entre Maçonaria e Espiritismo, Maçonaria e Teosofia, restam as relações entre Espiritismo e Teosofia. 

Além das diferenças de nomenclatura na descrição das leis e fenômenos espirituais – ocidentalização com o Espiritismo, orientalização com a Teosofia – e do tratamento esotérico (Teosofia) versus tratamento exotérico (Espiritismo) dessas questões; desponta um aspecto central na oposição entre as duas doutrinas: a condenação teosófica à invocação dos mortos, por considerá-las próprias das almas inferiores, grosseiras e com efeitos espirituais perniciosos.16 

Essa divergência com um dos fundamentos do Espiritismo fundava-se numa perspectiva divergente do que seria o “Espírito”. 

Para Allan Kardec: A alma é um Espírito encarnado e o corpo é apenas o seu invólucro. Há no homem três (coisas: 

1.º) O corpo ou ser material, semelhante ao dos animais e animado pelo mesmo princípio vital; 

2.º) A alma ou ser imaterial, espírito encarnado no corpo; 

3.º) O liame que une a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o Espírito. [...] O liame ou perispírito que une corpo e Espírito é uma espécie de invólucro semimaterial. A morte é a destruição do invólucro mais grosseiro.

14 FIGUEIREDO, Joaquim G. de. Dicionário de Maçonaria (seus mistérios, seus ritos, sua filosofia, sua história). São Paulo: Editora Pensamento, 1998, p. 388. Grifo nosso. 

15 Define-se potência maçônica como: “Alto Corpo Regular: Grande Oriente, Grande Loja, ou Supremo Conselho”. (Ibid., p. 357.) 

16 Cf. CASTELLAN, Ivonne. O Espiritismo. São Paulo: Difel, 1955, p. 83.

O espírito conserva o segundo, que constitui para ele um corpo etéreo, invisível para nós no seu estado normal, mas que ele pode tornar acidentalmente visível e mesmo tangível, como se verifica nos fenômenos de aparição.17 (Grifo do autor) 

Já para Helena Blavatsky: O espírito é uniforme e imaterial e, quando se encontra individualizado, é da mais elevada substância individual. Suddasattva, a essência divina, de que é formado o corpo dos mais elevados Dhyânis que se manifestam. 

Por conseguinte, os teósofos repelem a denominação de “Espíritos” para aqueles fantasmas que aparecem nas manifestações fenomenais dos espíritas [...] o Espírito não é uma entidade no sentido de ter forma [...] porém, cada espírito individual [...] pode ser descrito como um centro de consciência, um centro autosenciente e autoconsciente; um estado, não um indivíduo condicionado. 18 (Grifo da autora) 

Ambos consideravam como tarefa primordial, o combate ao materialismo, assegurando para si o lugar de proeminência no concerto espiritualista, detentores que se consideravam, das verdades últimas da moderna espiritualidade. 

Desse modo, para Kardec: Sem dúvida alguma as crenças espiritualistas dos tempos passados já não conseguem satisfazer hoje. Não se acham no nível intelectual de nossa geração. 

Em muitos casos, estão em contradição com os dados seguros da Ciência. Transmitem ao espírito ideias incompatíveis como a exigência do positivo que predomina na sociedade moderna. 

Além disso, incorrem no erro imenso de impor-se pela fé cega e de condenar livre exame. O resultado é, incontestavelmente, o desenvolvimento da incredulidade na maioria. [...] 

Quantas pessoas que, graças ao Espiritismo, voltaram a crer, disseram: ‘Se nos tivessem apresentado Deus, a alma e vida futura de maneira racional, jamais teríamos duvidado!’.19 (Grifo nosso) 

A líder teosófica, por sua vez, tratando dos obstáculos enfrentados na difusão da moderna teosofia e da conveniência do seu aparecimento, informava: Justamente porque se considerou que chegou o tempo apropriado, fato demonstrado pelos esforços determinados de tantos estudantes sérios para alcançar a verdade [...] seus guardiães permitiram que ao menos algumas porções daquela verdade fossem proclamados. 

Se a formação da Sociedade Teosófica tivesse sido adiada por mais alguns anos, metade das nações civilizadas ter-se-ia tornado, por essa época, materialista radical, e a outra metade antropomorfista e fenomenalista.20 (Grifo da autora)

17 KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de José Herculano Pires. Capivari: Editora EME, [1857] 1996, p. 25. 

18 BLAVATSKY, Helena P. Glossário Teosófico. 5 ed. Tradução de Sílvia Sarzana. São Paulo: Editora Ground [1892], 2004, p. 175. 

19 KARDEC, Allan. Obras Póstumas. In: ______. Obras completas. Tradução de Torrieri Guimarães. São Paulo: Opus Editora, [1890] 1985, p. 1135, grifo nosso. 

Enquanto Kardec defendia a superioridade do Espiritismo em relação ao espiritualismo “dos tempos passados” e seu poder terapêutico sobre a incredulidade, Blavatsky situa a proclamação de “porções” da verdade – autorizada pelos “guardiães” – através da Sociedade Teosófica, como o grande antídoto ao materialismo. Note-se sua referência indireta às “crenças espiritualistas dos tempos passados”, ou “antropomorfismo”; e ao Espiritismo ou “fenomenalismo”. 

Enfim, espíritas e teosofistas tendo concepções próximas sobre Deus, evolução espiritual, reencarnação, lei de causa e efeito ou karma, pluralidade dos mundos ou planos habitados, diferenciavam-se na forma de abordar esses conteúdos. 

Segundo Yvonne Castellan, apenas num “detalhe” se entendem espíritas e teosofistas: quando “atribuem aos Evangelhos um sentido secreto, esotérico, de origem hindu, que Jesus teria conhecido através dos Essênios”. 

E, conclui: “Espiritismo e Teosofia, doutrinas próximas e longínquas, em todo caso interferentes”.21 Assim, o moderno-espiritualismo, como rede de pensamento composta por maçons, espíritas e teosofistas, propiciava afinidades eletivas e alianças intelectuais entre esses agentes, em sua maioria como a dupla pertença – maçônico-espírita, maçônico-teosófica – enquanto atuavam em diversos espaços da vida social. 

Assentava-se nos seguintes fundamentos: 

(a) difusão da antiga lei dos renascimentos sucessivos (reencarnação); 

(b) evolução espiritual; 

(c) evolução planetário-cósmica; 

(d) possibilidade de comunicação entre os vivos e os mortos (mediunidade); 

(e) aliança entre religião e ciência; 

(f) complementaridade entre todas as crenças religiosas, fundada na unidade das leis divinas; 

(g) a defesa e a prática da liberdade, da fraternidade e da solidariedade entre todos os povos, crenças e raças. 

Essa múltipla pertença intelectual, embora guardando uma relação de cumplicidade, solidariedade e fraternidade, às vezes quebradas pelos conflitos internos a cada configuração, demonstra, em primeiro lugar, que as trajetórias individuais diferenciadas desses agentes refletiam condições alternativas de formação de um status intelectual que favoreceu a constituição de ampla corrente de pensamento moderno-espiritualista.

20 BLAVATSKY, Helena P. Glossário Teosófico. 5 ed. Tradução de Sílvia Sarzana. São Paulo: Editora Ground [1892], 2004, p. 41-42. 21 CASTELLAN, Ivonne. O Espiritismo. São Paulo: Difel, 1955, p. 83-84. 

Em segundo lugar, constituía um movimento intelectual que, mesmo reconhecendo as especificidades históricas e doutrinárias inerentes a cada uma das três instituições, compunha uma relativa unidade no tocante ao sentido profundo/oculto da religião, à explicação da essência do homem, do seu papel social e da destinação da Humanidade. 

Esses princípios espiritualistas difundidos por nesses segmentos permitiram delinear uma perspectiva não apenas espiritual, mas, significativamente sociopolítica, que os identifica como alternativa moderno-espiritualista no contexto dos debates sociais no Ceará da primeira metade do século XX, especialmente no tocante à chamada Questão Social. 

Esta era entendida, por esses segmentos, como fundamentalmente uma questão moral-espiritual. 

Tais proposições têm como característica marcante a intervenção no mundo, levando consigo a mensagem autonomista da transformação do homem, no intuito de impulsionar evolutivamente seu progresso, relativizando o providencialismo da religião tradicional. 

Adensando-se nas classes altas e, sobretudo, médias, essa rede de pensamento concorria com a hegemonia católica na definição de uma nova espiritualidade, propondo-se colaboradora na solução dos problemas sociais vigentes. 

Enfim, quebrado o monopólio católico da manifestação religiosa pública, emergia o debate sobre a intercessão da religião com as esferas privada, pública e estatal. 

Esse debate sobre as relações entre religião e política no Brasil e especialmente no Ceará, no contexto de difusão do moderno-espiritualismo, guarda uma dimensão sócio-histórica original tendo em vista os percursos distintos de maçons, espíritas e teosofistas e os intercâmbios de suas religiosidades. 

Defensores da necessidade de um Estado laico, os moderno-espiritualistas estiveram mais propensos ao republicanismo, às ideologias liberais, e às vezes até libertárias, tendo em vista sua perspectiva humanista da autotransformação dos indivíduos e sua irradiação benéfica ao todo social. 

DESIGUALDADES, “QUESTÃO SOCIAL” E EVOLUÇÃO ESPIRITUAL 

Note-se a similitude de princípios dos ensinos teosóficos e espíritas, aplicados numa crônica sem terminologias religiosas, porém difundindo elementos do esoterismo. 

Assim, o jornalista maçom-espírita Teodoro Cabral22 (assinando Polibio), referindo-se às “cenas de violência”, “discórdias, agressões, espancamentos, assassínios”, comuns na sociedade cearense daquele tempo, sobretudo nos terrenos jornalístico e político; recorre aos ensinos dos “ocultistas da mais remota antiguidade”, para simbolizar o “governo e o desgoverno das paixões”: Era a figura geométrica da estrela de cinco pontas. 

Uma ponta para cima, duas para os lados e duas para baixo representavam o espírito dominando a matéria, o homem que conhece a si mesmo, que é senhor das próprias volições. 

A estrela invertida, isto é, com duas pontas para cima, duas para os lados e uma para baixo, significava o homem dominado pela matéria, dirigido pelas correntes que agitam o seu meio de ação, escravo dos seus desejos. 23 (Grifo nosso) 

Polibio vulgariza, com isso, um ensino de profundo significado e muita recorrência nos simbolismos esotéricos. 

Pode-se imaginar como repercutia esse tipo de ideia aos olhos dos leitores cearenses, sobretudo daqueles não afeitos aos conhecimentos espirituais e aos “ocultistas” da Antiguidade. 

Já que a pertença religiosa do cronista não era segredo para ninguém, menos ainda para os “letrados”, pode-se aquilatar que esse tipo de ensino heterodoxo cumpria um papel muito específico de formação de uma nova espiritualidade. 

Nos parágrafos seguintes, o cronista prossegue na interpretação “ocultista”, distinguindo os tipos de “ignorantes” espirituais: Os que sabem afirmam que neste mundo não há nada à toa. Há perfeita harmonia na discordância aparente. A natureza não se confina ao mundo material. 

Vai adiante. 

Como os fenômenos físicos estão submetidos a condições imperiosas, chamadas leis científicas, assim também os fenômenos sociais, psicológicos, espirituais ocorrem em obediência a regras incoercíveis. [...] 

Os que “conhecem” igualmente não se molestam quando os eruditos do mundo profano põem em dúvida a existência de uma ciência espiritual. 

Ao ignorante vulgar, falta o conhecimento da matemática para poder acreditar que se meçam as distâncias siderais. 

Ao ignorante letrado, falece [...]. 

O cego não tem culpa de não poder observar os fenômenos luminosos [...].24 (Grifo do autor) 

22 Jornalista e poliglota autodidata, Teodoro Cabral (1891-1955) foi fundador do jornal Gazeta de Notícias, em Fortaleza (1927), onde foi diretor, redator e cronista muito apreciado. Foi espírita e maçom, ocupando cargos de diretoria nas respectivas instituições. 

23 GAZETA DE Notícias, Fortaleza, 16 set. 1927. 

24 Ibid. 

Outro maçom-espírita de renome na sociedade fortalezense, o professor Euclides César25, por sua vez, esposa os princípios evolucionistas, quando opina sobre questões sociopolíticas de seu tempo. 

Num artigo em que trata da recém ocorrida “Revolução de 1930”, da qual fora entusiasta, esperando grandes renovações para a sociedade brasileira, com “seu caráter profundamente salvador”; Euclides César justifica o momento tumultuado como episódio natural no quadro evolutivo das sociedades humanas. 

Assim, reconhecendo que o Paraíso ainda estava distante, que a república de Platão e a perfeição absoluta de Rousseau são “redouradas utopias”, afirma sua crença na evolução planetária: Todavia, podemos afirmar que a Humanidade evolve e a prova aí temos no simples fato de que a espécie humana veio da antropofagia. [...] 

No tempo [ponto] de vista político surgiu no planeta com a tribo que irradiou os primeiros lampejos do Direito e da Moral no colo virginal das selvas. 

A lei de Spencer é, portanto, aplicável a todos os domínios do espírito humano. 

Evolver é marchar para a perfeição, para o conhecimento da eterna verdade, que é Deus.26 (Grifo nosso) 

Do mesmo modo, o “fardo de miséria” das classes trabalhadoras da moderna sociedade industrial apresentava-se como desafio ao pensamento moderno-espiritualista. 

Como encarar, do ponto de vista espiritual, a extrema miséria ao lado da opulência burguesa? 

Como equalizar, filosófica e religiosamente, a pobreza, a miséria, a ignorância e os conflitos sociais? 

Helena Blavatsky, em A Chave para a Teosofia, esclarece a posição da Sociedade Teosófica sobre “reformas políticas e questões sociais”: “Procurar alcançar reformas políticas sem antes haver efetuado uma reforma na natureza humana, é o mesmo que colocar vinho novo em odres velhos”. 27 (Grifo da autora) Assim, para a autora, “Todas as coisas boas e más na humanidade têm suas raízes no caráter humano, e esse caráter é e tem sido condicionado pela cadeia infinita de causa efeito. [...] 

25 Euclides César (1887-1973), natural da Paraíba, veio ainda jovem para Fortaleza, tornando-se funcionários do telégrafo nacional e professor de línguas estrangeiras em escolas particulares. Foi maçom e espírita. Com larga atuação nos meios literários, jornalísticos e operários, Euclides César é tido como um verdadeiro agitador cultural. 

26 A RAZÃO, Fortaleza, 21 nov. 1930. 

27 BLAVATSKY, Helena P. A Chave para a Teosofia. 3 ed. Tradução de Célia de Moraes. Revisão técnica de Ricardo Lindermann. Brasília: Editora Teosófica, [1889] 2004, p. 202. 

O progresso somente pode ser alcançado através do desenvolvimento das qualidades mais nobres”.28 

Sintonizando essa linha de pensamento, em Fortaleza, o primeiro número do órgão informativo da Loja Teosófica Unidade, já traz o tema da Questão Social. 

Com o título: “A fraternidade e a questão social”, Luiz de Moraes Correia29 afirma que é apoiada na “fraternidade”, como “Lei da Natureza”, que “oferece a Teosofia a ambicionada solução do problema proletário”

E argumenta: Os princípios teosóficos são de molde a justificar a conquista, pela revolução ou pela dinamite, do conforto material que sobra ao rico e falta ao pobre? 

Não. A Teosofia ensina que as desigualdades naturais de fortuna, inteligência e qualidades devem ser acolhidas sem revolta pelo homem, pois que semelhantes situações foram por ele mesmo criadas e se ajustam ao estágio correspondente de sua evolução.30 

Mas, segundo o teosofista, não é “possível enquadrar no extremo inferior da desigualdade natural de fortuna, a pobreza que atinge as raias da miséria”. Pois é justamente essa “miséria” que “vemos crescer e avultar no mundo moderno, ao lado do luxo descomedido e dos gozos que entorpecem o corpo e aviltam o espírito”. 

A solução, pela proposição teosófica, estaria na fraternidade. 

Antecipava, assim, Moraes Correia, os desenvolvimentos que faria, em 1927, em obra de interpretação teosófica da Questão Social: A civilização vindoura, que já desenha os seus contornos à face do planeta, será fraternal e cooperativista. [...]. Porque diverge profundamente a tônica da atual civilização do espírito da que lhe vai suceder, chocam-se entre si os princípios sobre que uma assenta e as bases sobre que a outra vai repousar. 

Esse choque se revela e se traduz na feição presente da questão social. Eis a sua razão de ser.31 (Grifo nosso) 

Também os agentes espíritas e maçons dispuseram-se a solucionar o “problema proletário”. 

O professor Euclides César, que estivera nas atividades do Partido Socialista Cearense, em 1919, pronunciando discursos nos eventos públicos do mesmo, manteve estreitas relações com as associações de trabalhadores. 

28 BLAVATSKY, Glossário Teosófico. 5 ed. Tradução de Sílvia Sarzana. São Paulo: Editora Ground [1892], 2004, p. 205. 

29 Moraes Correia (1881-1935), natural do Piauí, bacharela-se pela Faculdade de Direito do Ceará, em 1910. Muda-se para Fortaleza, em 1918, tornando-se professor daquela instituição. Destacou-se com jurista, escritor e nos meios políticos e intelectuais cearenses, como também por sua atuação maçônica e teosófica. 

30 A UNIDADE, Fortaleza, 1 jan. 1924. 

31 CORREIA, Luiz M. A Questão Social por um novo prisma. Rio de Janeiro: Tipografia Industrial, 1927, p. 9-10.

No início de 1921, o jornal libertário Voz do Gráfico noticia as presenças de Euclides Cesar e do também maçom e espírita, Francisco Prado, em palestra sobre a Questão Social, na solenidade de posse da nova diretoria da Sociedade Deus e Mar.32 No mesmo diapasão, o jornalista César Magalhães colaborava no jornal Voz do Gráfico, ensinando sutilmente suas convicções teosóficas ao operariado, como nesta citação, longa, mas elucidativa de certa perspectiva da relação religião/sociedade: Assim, muitas razões têm os cientistas em quererem que o atual seja um período de transição [...] porque fácil é de prever que a sociedade atual, saturada como está de uma atmosfera asfixiante de iniquidade, deve ser, não reformada, mas constituída de maneira a preencher as lacunas de que está eivada [...]. 

Uma sociedade perfeita, tangida por uma força poderosa que lhe dê vitalidade, por princípios fundamentais, uma ideia regeneradora de um grande espírito [advento de novo guia espiritual] que a ponha em atividade vital e permanente, é o que almejamos advenha com o raiar da aurora rutilante desse ciclo de luz cujos raios já se espargem no mundo científico. 

Uma sociedade regeneradora, tendo por base uma religião cujo culto fosse a verdade; por ideal: o amor, que é o princípio da vida; por princípio: a igualdade, que é a confraternização dos povos; por termo: a perfeição - o fim a que se destina o homem -, e a felicidade - esse sonho insaciável que o embala eternamente -, eis o que traria essa nova época [...].33 (Grifo nosso) 

Essa fraternidade entre os povos ganharia realce ante as notícias da fome que atingia o vale do Volga e o sul da Rússia, causada por uma seca, ainda no processo de consolidação da revolução, que já mobilizava o proletariado mundial. 

Os anarquistas do Rio de Janeiro editam a revista Solidariedade, com tiragem única, para a campanha de mobilização e arrecadação de fundos; criando-se também o Comitê Pró-Flagelados Russos. 

No Ceará, os libertários do Voz do Gráfico tomam a dianteira na campanha, apontando os parceiros na solidariedade: [...] alguns trabalhadores cearenses [...] resolveram fundar nesta capital, como instituição humanitária, o Comitê Pró-Flagelados da Rússia, para cuja divulgação enviaram um apelo aos trabalhadores cearenses já organizados e criaram listas particulares, bem como fizeram comunicação à imprensa da terra e dirigiram outro apelo às diversas instituições como sejam: Loja Teosófica Unidade, Loja [maçônica] Igualdade e Centro Espírita [Cearense].34 (Grifo nosso) 

32 SOCIEDADE DEUS e Mar. Voz do Gráfico. Fortaleza, 6 jan. 1921. Todas as referências ao citado periódico constam em GONÇALVES, Adelaide; SILVA, Jorge E. (Orgs.) A imprensa libertária no Ceará (1908-1922). São Paulo: Imaginário, 2000. 

33 VOZ DO Gráfico. Fortaleza, 25 dez. 1921. 

34 VOZ DO Gráfico. Fortaleza, 26 de nov. de 1921.

Despontam no encaminhamento daquele movimento humanitário, “diversas instituições”, citando-se, preferencialmente, a loja teosófica, o centro espírita e uma loja maçônica. 

Embora tenha sido amplo o número de envolvidos, inclusive no interior do estado do Ceará, é sintomática a afinidade demonstrada pelo jornal libertário para com as três instituições, citadas com tanta familiaridade. 

Essa atitude corrobora a existência de uma rede de pensamento moderno-espiritualista atuando na Questão Social, e não apenas o caráter genérico de uma solidariedade ou fraternidade universal inerente aos movimentos libertários. 

Faziam parte daquele “Comitê”, dentre outros, os militantes operários e maçons Francisco Falcão e Raimundo Ramos, que divulgam carta aberta no mesmo periódico apresentando evangelicamente seu intento caritativo: “nós que somos professos da religião do Meigo Nazareno, aquele que veio ao mundo espalhar o Bem e a Caridade, o Amor e Justiça, ensinando-nos com exemplos práticos a promovê-los [...]”. 

Nessa mesma edição o teosofista César Magalhães, no artigo “O momento russo”, exalta o “movimento de caridade” que se empreendia no Sul do Brasil, destacando que “aqui, no nosso Ceará, um grupo de militantes que professam a mesma Religião social, está à vanguarda do movimento”.35 (Grifo nosso) 

Essas declarações explícitas do “espírito de religiosidade” daquela militância são indicativas de uma religiosidade cristã interiorizada, em oposição ao “culto exterior” do condenado clericalismo. 

Nesse estágio do movimento operário cearense, como de resto no brasileiro, convergiam ainda diferentes matrizes de pensamento que de algum modo estavam voltadas para a Questão Social. 

Admitiam-se nuances espiritualistas nesse discurso operário, desde que afinadas com os ideais racionalistas, libertários, cientificista e laico. 

É pertinente acreditar também que, menos por “indefinição ideológica”, essa multiplicidade de visões caracterizava uma estratégia de alianças entre grupos heterogêneos que tinham como alvo comum o combate ao “obscurantismo” e ao dogmatismo clerical, a serviço da “redenção moral” das “classes laboriosas”, dando solução à Questão Social. 

O Sindicato dos Trabalhadores do Porto, de Fortaleza, registra no ano de 1925, palestras de Euclides Cesar e do positivista Major Praxedes Góes, sobre assuntos morais e cívicos. 

35 VOZ DO Gráfico. Fortaleza, 11 dez. 1921.

Consta, também, convite daquele aos sócios do Sindicato a participarem das conferências do Major Praxedes na Sociedade Deus e Mar. 

Noutra sessão, Euclides César convida os trabalhadores do referido sindicato para a sessão cívica da Escola Proletária, da Sociedade Artística Beneficente. 

Na ocasião, o “secretário [do Sindicato], aparteando, afirma que, antes da política de classe, os trabalhadores devem se unir para tratar de problemas mais urgentes, tais como instrução, educação moral e cívica [...]”.36 

Nesse aspecto, Teodoro Cabral, já relativiza a natureza conflituosa da vida social. 

O “proletário cearense” também era assunto de interesse do cronista Teodoro Cabral (Polibio). 

Numa crônica situada no contexto da greve dos condutores e motorneiros dos bondes da companhia “Light”, em Fortaleza, Polibio se apresenta: “A esta hora em que tua alma se agita amargurada ante os embates da luta pela vida, permite que dirija uma palavra amiga”. 

Nessa página, rica de conteúdos e proposituras, dentro dos princípios do moderno-espiritualismo, o autor se desincumbe do papel de lutador e líder do operariado: Não sou, moralmente, um dos teus; não estou lutando por ti; outros interesses e outros ideais, que não sejam os de tua classe (que, aliás, é a minha) reclamam o melhor do meu esforço. Todavia, teu inimigo não me consideres. Sinto-me ligado a ti pelo sentimento de solidariedade que me prende a todos os meus irmãos em humanidade sem acepção de raça, política e religião. [...] teu guia não posso ser, nem pretendo. Faltam-me as qualidades de [...].37 E é movido por esses “outros interesses e outros ideais”, que Polibio presta-se a educar o “proletário cearense”, reconhecendo o caráter contraditório da sociedade vigente, sua posição conciliatória e a presença do plano divino: “A atual organização social divide a nossa humanidade em classes com interesses divergentes [...]. Não persigo nenhuma e defenderia a todas, se possível me fora”. Porém, apesar das “incompreensões” e “incompatibilidades” que dificultam a realização da “felicidade comum”, o autor finaliza considerando que: O plano para o progresso da humanidade fora traçado, com admirável perfeição, há dois mil anos pelo filósofo dos filósofos, pelo humilde e desinteressado Jesus de Nazaré [...] Não o confundas com religiões que se intitulam de distribuidora da mensagem, e que, dirigidos por homens, imperfeitos como nós outros, tantas vezes a deturpam em prol da satisfação de seus egoísticos interesses [...]. 

36 Apud PARENTE, Francisco J. C. Anauê – Os camisas verdes no poder. 2 ed. Fortaleza: Edições UFC, 1999, p. 81-84. 

37 GAZETA DE Notícias. Fortaleza, 3 set. 1929. 

O teu problema, proletário cearense, o problema dos teus irmãos universo a fora; o problema social, o problema humano por excelência é um problema moral e não um problema econômico.38 (Grifo nosso) 

Reforçava-se, assim, a terapêutica moral na Questão Social, tal qual faziam os teosofistas apresentando um “plano divino”, no qual não era lícito ao operário revoltar-se. 

O espírita Polibio acessava o plano do Evangelho naquelas consciências, ressalvando o cuidado de não confundi-lo com as religiões, “dirigidas por homens, imperfeitos”. Lembre-se aqui, a vigorosa atuação do movimento católico através dos Círculos Operários, no Ceará, desde 1915.39 

A fidelidade de Polibio à perspectiva espiritualista, embora diversa da tradicional, o levava a uma postura declaradamente contrária ao comunismo, exercendo, de suas colunas jornalísticas, permanente ação pedagógica de conscientização do operariado sobre as inconveniências do bolchevismo. 

Porém, não faltaram respostas da militância operária de esquerda a esses setores conservadores, como por exemplo, o jornal comunista Voz Proletária, de 1º de fevereiro de 1930, que declarava em editorial: É verdade que em nossa organização não ensinamos o padre nosso e nem preparamos crianças para a primeira comunhão, visto que nada disso faz parte do nosso programa, mas também não mandamos ler Kardec nem Lutero e, sim, ensinamos ao proletariado o caminho do seu bem-estar, mandando ler Marx e muitos outros mestres [...].40 (Grifo nosso) “Instrução”, “educação”, “regeneração social”, “revolução das ideias”, essa era a tônica do discurso e das práticas de agentes maçônicos, espíritas e teosofistas diante do quadro de “inquietações” em que viviam. 

Antes de um novo mundo, acreditavam na construção de um novo homem; pois aprenderam e ensinavam que a Natureza não dá saltos, logo, desaconselhavam rupturas, “ideais revolucionários” e “apelo às armas”. 

38 GAZETA DE Notícias. Fortaleza, 3 set. 1929. 

39 O Círculo de Trabalhadores Católicos de São José, fundado em 1915 e pioneiro no Brasil, sob o comando da Arquidiocese de Fortaleza, constitui-se em decisiva frente de combate não apenas às correntes socialista, comunista, como também aos grupos positivistas, maçônicos e modernoespiritualistas já estabelecidos com intuitos de educar e regenerar as “classes laboriosas” e solucionar a “questão social”. Cf. SANTOS, Jovelina Silva. Círculos Operários no Ceará: “instruindo, educando, orientando e moralizando” (1915-1963). Fortaleza: NUDOC-UFC, 2007 (Coleção Mundos do Trabalho). 

40 Apud MONTENEGRO, Abelardo F. Os partidos políticos do Ceará. Fortaleza: Edições UFC, 1980, p. 132.


CONSIDERAÇÕES FINAIS 

Defensores da República, da liberdade religiosa, do Estado e ensino laicos, os moderno-espiritualistas também almejavam a aliança religião/ciência, demandando uma fé racional e uma ciência espiritualmente iluminada. 

Ensinavam à população, não o medo da condenação eterna pelos comportamentos imorais considerados decorrentes da degeneração humana do pecado original, mas as alternativas do esclarecimento (ilustração) e do autoconhecimento. 

No que tange à Questão Social, defendiam em uníssono que na raiz dos males sociais estava o fundamento moral-espiritual, considerada a humanidade pelo prisma evolucionista-reencarnacionista. 

Para isso, intervinham sistemática e estrategicamente junto à intelectualidade, à imprensa, ao Estado e às classes populares, no sentido do esclarecimento espiritual da sociedade, com proposituras de educação moral, cívica e religiosa (pluralista) de largo alcance, para a contenção das rebeldias, dos revolucionarismos e das utopias materialistas vigentes

Essa atuação afinada de agentes maçons, espíritas e teosofistas, com sua original complexidade filosófico-doutrinária e religiosa, põem em xeque o enquadramento simplificador de que essas atitudes sociopolíticas seriam indistintamente práticas pequeno-burguesas e reformistas, omitindo-se suas especificidades. 

Contudo, não se devem minimizar as redes de relações e interesses desses agentes junto às elites locais, à medida que sua perspectiva social era de preservação da ordem, da propriedade, da família, da religião. 

Ou seja, a defesa da reforma moral, especialmente voltada para as camadas populares, era condizente com os interesses disciplinarescivilizatórios da burguesia e classes dominantes locais. 

Nesse sentido, questiona-se a proclamada hegemonia da hierarquia e laicato católicos na neutralização do avanço das ideologias de esquerda no Ceará dos anos de 1920 e 1930, devendo-se considerar também a vertente liberal moderno-espiritualista, em tudo oposta aos materialismos. 


FONTE - Fênix – Revista de História e Estudos Culturais Setembro/ Outubro/ Novembro/ Dezembro de 2010 Vol. 7 Ano VII nº 3 ISSN: 1807-6971 

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