Cosmopolitismo, patriotismo e imaginário maçónico em “Ernst und Falk: Gespräche für Freimaurer”, de Gotthold Lessing (1778-80)
De modo pioneiro, Lessing abordou temas como a liberdade religiosa e o cosmopolitismo, sendo um dos primeiros iluministas a utilizar os neologismos “Kosmopolit” e o seu sinónimo “Weltbürger” no contexto de uma filosofia abertamente cosmopolita (NISBET, 2013, p.237).
Como muitos dos membros da “República das Letras” europeia do século XVIII, Lessing foi membro de uma Loja Maçónica, a “Para as três Rosas de Ouro” (Zudendrei Goldenen Rosen), de Hamburgo, a partir de 1771.
A sua experiência maçónica, numa época em que a Maçonaria alemã vivenciava conflitos ideológicos internos, com uma profusão de sistemas ritualísticos e simbólicos distintos competindo entre si acabou revelando-se central para a formação do opúsculo “Ernst e Falk: diálogos entre maçons” (Ernst und Falk: Gespräche für Freimaurer) [1], produzido por volta de 1778 e publicado inicialmente de forma anónima.
Consistindo em cinco diálogos (dos quais apenas os três primeiros foram inicialmente publicados) e contém, segundo o próprio autor, se não uma “verdadeira ontologia” da Maçonaria, uma tentativa de definição precisa da natureza essencial da organização [2].
O contexto geral da obra
O século XVIII viu a emergência de novas formas de sociabilidade. O Absolutismo, como prática política que seguiu ao fim das guerras religiosas que tinham devastado o continente europeu desde o início da Reforma Protestante, funcionou estabelecido sobre uma clivagem entre a razão individual e a razão de Estado: o soberano não se interessava pelo foro íntimo dos seus súbditos na medida em que este não interferisse nos negócios do Estado (KOSELLECK, 1999, p. 38).
A ordem internacional então estabelecida punha em pé de igualdade os estados independentemente das suas constituições internas, seja religiosa seja de organização política.
O foro íntimo tornou-se o ponto de partida da contestação do Absolutismo e o surgimento do Iluminismo.
O segredo, neste contexto, andava de mãos dadas com a exposição, muitas vezes dentro de novas formas de sociabilidade já que os súbditos – excluídos que estavam da política – começaram a se reunir em espaços apolíticos, onde podiam discutir o estado de coisas fora da alçada estatal (KOSELLECK, 1999).
Uma destas novas formas de sociabilidade foi a Maçonaria.
A Maçonaria é uma sociedade fechada, ritualística, de carácter iniciático, estruturada simbolicamente em torno das tradições e lendas das guildas de pedreiros (masons em inglês, maçons em francês) que, com o declínio das corporações de ofício na era moderna, passou por uma transição para uma organização especulativa a partir do ingresso cada vez mais frequente de gentis-homens desvinculados do ofício nos fins do século XVII [3].
Em algum momento, provavelmente entre 1717 e 1721, ocorre em Londres a separação formal entre a corporação de ofício e a sua contraparte especulativa com a fundação da Grande Loja de Londres e Westminster a partir da união de quatro Lojas especulativas londrinas numa Grande Loja [4].
A organização da Maçonaria trazia algumas peculiaridades em relação às demais sociedades da época. Dos seus membros não se exigia senão um credo religioso vagamente deísta que não incompatibilizava a iniciação quer de cristãos (católicos ou protestantes) quer de judeus, muçulmanos e mesmo membros de religiões politeístas, como hindus. A organização também proibia formalmente os seus membros de envolverem as Lojas nas disputas políticas. Além disso, a Maçonaria aderia expressamente à ideia de igualdade entre os membros a despeito das suas posições hierárquicas “profanas” (i.e., relativas à vida fora da organização, como títulos nobiliárquicos, postos governamentais e graduação militar). Os maçons obrigavam-se, sob o manto de segredo, a reconhecerem e ajudarem uns aos outros na medida das suas possibilidades. Nas palavras de Koselleck:
Essas associações [maçónicas] caracterizam-se pela evocação de mitos e mistérios antigos e pela criação de uma hierarquia independente, nem clerical nem estatal, apenas uma nova forma de organização peculiar da nova sociedade civil
Esta fórmula provou ser um sucesso dentro e fora da Inglaterra, e em poucos anos já se encontravam Lojas Maçónicas em quase todos os países da Europa Continental e em muitas das suas colónias no ultramar. Em pouco tempo as Lojas se tornaram nós numa grande rede (network) que se espalhava pela Europa ligando homens e ideias (WEISBERGER, 2017).
Todavia, a estrutura original da Maçonaria inglesa, que era relativamente simples, composta de três graus (aprendiz, companheiro e mestre), ganhou novas e variadas versões tão logo se espalhou pelo continente europeu com a invenção de vários sistemas de “altos graus” que nada mais significavam do que uma ampliação progressiva do segredo e com pretensões políticas e teológicas mais ostensivas. Esta situação era ainda mais verdadeira na Alemanha, palco de disputas, desde a década de 1760, entre diversas facções maçónicas e paramaçónicas, num estado de virtual anarquia que duraria pelo menos até o início do século XIX.
Foi neste cenário, pois, que Lessing foi admitido na Loja Maçónica “Para as Três Rosas de Ouro”, de Hamburgo, no Outono de 1771. Segundo um dos seus biógrafos, Lessing adoptou uma postura levemente simpática à Ordem, ainda que tenha ficado decepcionado por ter encontrado menos do que esperava (ROLLESTON, 1889).
“Ernst und Falk” foi escrito possivelmente entre 1776 e 1778 e foi ostensivamente dedicado ao Duque Ferdinando de Brunswick (1721-1792), militar e prócer maçónico alemão, líder do sistema da Estrita Observância, que tinha lido e gostado das versões não publicadas do texto. Esta dedicatória muito provavelmente fora feita para burlar os mecanismos da censura. Os três primeiros diálogos foram publicados originalmente de forma anónima, enquanto os dois últimos foram “vazados” e publicados – ao menos nominalmente – sem a sua autorização. A obra desagradou aos maçons alemães, que a viram como indiscreta, e acabou não se incorporando ao cânone das obras “populares” sobre Maçonaria.
Trata-se de uma série de cinco diálogos.
Dois personagens, apenas, aparecem: o personagem de Ernst simboliza a Maçonaria real e os seus defeitos, ao passo que o personagem Falk simboliza a versão ideal da Ordem.
Nos diálogos Ernst e Falk debatem uma série de concepções sobre a Ordem e a sociedade que revelam um pouco da visão de Lessing, dentre outras coisas, sobre cosmopolitismo e o patriotismo, duas concepções aparentemente antagónicas sobre a posição do indivíduo no mundo e no seu país.
Os diálogos
Como já dito, o texto possui cinco diálogos, dos quais o segundo é, talvez, o mais importante para o escopo do presente artigo. O primeiro diálogo inicia-se com Ernst tentando sondar os pensamentos de Falk, então quieto. Após uma breve troca de amenidades, Ernst pergunta de modo directo a Falk se ele era Maçom:
Ernst: É verdade, meu amigo, que você é um Maçom?
Falk: Esta é uma pergunta de quem não o é.
A resposta de Falk, formulada de modo enigmático, explica-se pelo facto de que parte do segredo maçónico é a posse de certas palavras, fraseologia, apertos de mãos e sinais utilizados para no contexto da identificação mútua [5]. A posse deste conhecimento demarca e distingue os que estão dentro daqueles que estão fora. Ao fazer a pergunta de modo ordinário, e não do modo convencionado entre os maçons, Ernst mostra a Falk que não é membro da organização.
Logo na sequência, Falk esclarece a Ernst que crê ser Maçom, mas não tanto por ter sido regularmente iniciado numa Loja, mas por entender e reconhecer a existência e os fins da Ordem. Falk explica a um incrédulo Ernst que a Maçonaria não é algo arbitrário, mas sim uma necessidade na natureza humana e na sociedade civil.
Ernst não se convence desta suposta necessidade. Ele aponta que muitas das qualidades das quais se gabam os maçons não são exclusivas deles, mas valores que deveriam ser comuns a qualquer cidadão. Falk retorque afirmando que as boas acções praticadas pelos maçons não são apenas aquelas facilmente percebidas por todos (tais como diversas acções de filantropia que enumera), mas sim aquelas que “tornam as demais boas acções supérfluas”. Ernst, então, diz que a afirmação é uma charada – e que ele se recusa a pensar sobre charadas.
O segundo diálogo passa-se horas mais tarde. Ernst e Falk reencontram-se. Questionado por Falk sobre se tinha reflectido sobre a resposta dada, Ernst reage dizendo que Falk é como os outros maçons: “jogam com palavras, formulam perguntas e respondem sem responder”, e que doravante não irá mais tratar de Maçonaria com ele. Falk então propõe que mudem de tópico, e Ernst, então, propõe que observem um formigueiro perto deles.
Ernst aponta, então, como as formigas trabalham em ordem, mesmo sem quem as comande. Falk então concorda, e diz que pode ser possível que possa haver ordem sem governo. Ambos concordam, entretanto, quem uma ordem sem governo somente seria possível se cada indivíduo fosse capaz de se autogovernar.
Falk então questiona Ernst sobre se ele acha que a sociedade civil é um fim, ou um meio, ou seja, se os homens foram feitos para o Estado, ou se o Estado é que fora feito para os homens. Após o seu interlocutor se mostrar inclinado para a última afirmação, Falk responde:
Concordo inteiramente convosco. Os Estados servem para congregar os homens, a fim de que, nesta associação e por meio dela, cada indivíduo aproveite ao máximo a porção de felicidade à qual faz jus pela sua natureza. A soma total da felicidade individual de todos os membros faz a felicidade da sociedade; fora disso, não há mais nada. Porque qualquer outra felicidade social, que supõe uma que alguns indivíduos devam sofrer, não é senão uma máscara da tirania.
Os dois concordam que a sociedade civil e as constituições políticas são meios, e não fins, e meios criados pelos homens, pelo que – afirma Falk – não apenas não são infalíveis como frequentemente falham e produzem resultados opostos aos pretendidos.
Ernst não se dá por convencido e crê na possibilidade de invenção de uma Constituição perfeita. A conversa segue:
Ernst: (…) creio que entendo você agora, mas nós sabemos o porquê de tantos indivíduos não obterem nenhuma felicidade extra na Constituição do seu Estado. Existem muitas constituições políticas: umas, portanto, são melhores que outras. Algumas são bem defeituosas e em franca contradição com as suas intenções, e a melhor delas ainda há de ser inventada.
Falk: (…) Vamos presumir que a melhor Constituição concebível já foi escrita, e que todos os seres humanos pelo mundo aceitaram esta melhor Constituição: não crês que mesmo então, mesmo esta melhor constituição deve dar azo a coisas altamente prejudiciais à felicidade humana e das quais os seres humanos no estado de natureza eram totalmente ignorantes?
Ernst: Na minha opinião se tais coisas se originassem da melhor Constituição, ela já não mais seria a melhor.
Falk: E alguma outra melhor seria possível? Se sim, presuma ser esta Constituição a melhor e repita a minha pergunta.
(…)
Falk: Então vamos presumir que a melhor Constituição concebível já foi escrita, e que todos os seres humanos pelo mundo aceitaram esta melhor Constituição. Todas as pessoas no mundo constituiriam, assim, um Estado único?
Ernst: Dificilmente. Tal estado, gigantesco, seria impossível de se administrar. Ele teria que se dividir em vários estados menores, e todos seriam administrados pelas mesmas leis.
Falk: Por outras palavras, os povos continuariam a ser alemães e franceses, holandeses e espanhóis, russos e suecos, ou qualquer outro nome pelos quais sejam chamados.
Lessing reconhece que a ideia de um governo único, mundial é irreal, e que, portanto, o poder teria necessariamente que ser distribuído em unidades menores, ponderando o que se vê como as unidades políticas naturais, ou seja, os grupos étnicos – alemães, franceses, holandeses, espanhóis, russos, suecos, etc.
O autor, entretanto, adverte contra os riscos daquilo que podemos identificar como um nacionalismo étnico:
Falk: Ao menos, então concordamos numa coisa. Sendo o caso [da divisão do poder em estados menores], cada um destes estados não teria o seu próprio interesse? E cada membro destes estados iria compartilhar com os interesses do seu próprio estado?
Ernst: E daí?
Falk: Estes interesses diversificados eventualmente entrariam em colisão, tal e qual já acontece hoje, e dois cidadãos de dois estados distintos não seriam mais capazes de encontrarem sem preconceitos do que hoje, quando um alemão se encontra com um francês, ou um francês quando encontra um inglês.
Ernst: É bem provável.
Falk: Por outras palavras: presentemente, quando um alemão encontra a um francês, ou um francês a um inglês (e vice-versa), não se trata mais do encontro de um mero ser humano com outro mero ser humano, atraídos um ao outro por força da sua natureza comum, mas um encontro entre um tal ser humano e outro tal ser humano que estão conscientes das suas tendências opostas. Isto os faz frios, reservados e desconfiados um em relação ao outro, mesmo antes que tenham a menor interacção ou experiência compartilhada como indivíduos.(…).
Lessing estava ciente de que aspectos como a etnicidade ou a religião (o personagem Falk cita, à guisa de exemplo, as relações entre cristãos, judeus e muçulmanos) são capazes de unir uma comunidade. Esta união, entretanto, é feita à custa da divisão entre esta e aquela comunidades:
Falk: (…) um estado: vários estados. Vários estados: várias constituições. Várias constituições: várias religiões.
Ernst: Sim, sim. Assim me parece.
Falk: Assim o é! Agora você pode ver o segundo mal que a sociedade civil causa, contrariando as suas intenções: não pode unir o povo sem dividi-lo, e não pode dividi-lo sem escavar golfos entre eles, sem construir um muro no seu meio.
As divisões, continua Falk, não se limitam à etnia e religião. Mesmo dentro de uma comunidade supostamente homogénea – mesma origem nacional e mesma religião – divisões existirão, e dentro de cada fracção, uma nova divisão:
Falk: Você concebe conceber um estado sem diferenças de classes? Não importa se boa ou má, mais ou menos perfeita, é impossível que todos os membros de uma sociedade tenham a mesma relação uns com os outros. Ainda que tenham o mesmo quinhão perante a lei, não poderão tê-lo de facto, ao menos não directamente. Existirão, portanto, cidadãos de alto e baixo escalão. Mesmo que toda a propriedade num estado seja distribuída igualmente entre eles, essa igualdade não duraria mais do que duas gerações. Um homem saberá dar melhor uso à sua propriedade do que outro. O outro, portanto, terá que distribuir a sua propriedade não tão bem gerida pelos seus descendentes. Haverão, portanto, ricos e pobres.
As divisões, entretanto, não são sagradas. Vale dizer: se a lei não pode proibi-las (proibição inócua, já que as divisões decorrem necessariamente da operacionalização da Constituição) também não pode obrigá-las. Assim, se os deveres do crente, do estadista e do chefe de família os impelem à divisão, a harmonia social pode ser preservada se “os melhores e mais sábios membros de cada estado estejam dispostos a ir acima e além do chamado dos seus deveres ordinários (opus supererogatum)”.
Assim, Lessing conclui que é mais que desejável que em cada estado hajam homens capazes de ir além dos preconceitos nacionais e de reconhecer quando o patriotismo deixa de ser uma virtude; capazes de não sucumbir às preocupações da sua religião originária, ou que estejam ofuscados pelas distinções civis e sociais. Estes homens, na concepção de Falk, deveriam ser os maçons.
É bem verdade que mesmo a Maçonaria possui as suas divisões internas – e este era um facto especialmente verdadeiro ao tempo e no lugar em que Lessing viveu. Para os fins da compreensão da Maçonaria enquanto fenómeno social, entretanto, o acompanhamento das dissensões administrativas internas mais confunde do que esclarece.
Se aceitarmos a Maçonaria como uma prática de sociabilidade sem uma forma canónica estabelecida (CAMARGO, 2019), então torna-se evidente que apesar das divisões administrativas a Ordem pode ser vista como uma única comunidade imaginada, utilizando-se aqui o conceito cunhado por Benedict Anderson: é imaginada pois os seus membros, os maçons, se imaginam em comunhão com os demais “irmãos” do mundo, é limitada pelas fronteiras estabelecidas pela iniciação ritual, soberana quanto aos seus assuntos internos e, ao final, uma comunidade pois os seus membros se imaginam num estado de “camaradagem horizontal”, (“no nível”, segundo o jargão maçónico) independentemente da desigualdade real (de poder, prestígio ou qualquer outro valor) que se possa observar entre eles (ANDERSON, 2008). Os maçons em todo o mundo compartilham um mesmo “idioma”(isto é, os símbolos e alegorias, que operam como uma língua franca entre eles) e uma mesma tradição cujo mito fundador reside na construção do Templo do Rei Salomão.
Conclusão: cosmopolitismo, patriotismo e ethos maçónico
Em “A Paz Perpétua” (1795) Kant – um contemporâneo de Lessing – propõe um protótipo de tratado perpétuo de paz, estruturado em artigos preliminares e definitivos, contendo ainda anexos e apêndices. As suas considerações partem das condições pelas quais não é possível que os Estados mantenham paz entre si para como os Estados podem manter a paz entre si. Trata-se de uma das obras-chave para a compreensão do cosmopolitismo como ideia.
Os artigos preliminares partem de uma crítica do estado actual das relações de paz e guerra entre os Estados ao tempo de Kant. O filósofo de Königsberg parte de uma análise empírica de condições então prevalentes, justificando o porquê de estas condições serem impeditivas da paz em longo prazo. A sua prevalência, fica assim subentendido, impede o desenvolvimento da confiança mútua entre os Estados e fornecem incentivos materiais e ideológicos para a iniciação da agressão ao nível internacional.
Kant parte de uma análise crítica sobre os exemplos históricos e vai na direcção de prescrições positivas de quais seriam as condições suficientes para a progressiva pacificação da humanidade. Importa ressaltar que tanto a discussão a respeito das origens dos conflitos – em especial quanto às tensões entre os interesses nacionais – quanto as prescrições positivas (como a hospitalidade universal como um dever) encontram eco na obra de Lessing [6].
Na concepção de Falk, a Maçonaria forma uma comunidade em si mesma que transcende as divisões nacionais, religiosas e sociais. Esta concepção é coerente com os valores formalmente esposados não apenas nas obras maçónicas mais populares ao seu tempo (como as Constituições de James Anderson [1734], o Ahiman Rezon de Laurence Dermott [1751] e as Ilustrações da Maçonaria de William Preston [1772]). Na obra de Preston, por exemplo, encontramos um preceito similar à ponderação de Falk:
(..) a Maçonaria é uma ciência que não está confinada a nenhum país em particular, mas que se estende pelo globo terrestre. Onde quer que floresçam as artes, ela florescerá. Além disso, através do segredo e dos sinais cuidadosamente preservados na Fraternidade, torna-se uma verdadeira linguagem universal. Assim, o distante chinês, o árabe feroz, o americano selvagem, todos abraçarão um irmão bretão e saberão que para além dos laços comuns de humanidade haverá uma obrigação forte a induzi-lo a prestar os seus bons ofícios. O espírito furioso do sacerdote moderar-se-á, e o irmão de boa moral, mas persuadido de outras opiniões, poderá receber a sua estima, pois a mútua tolerância em opiniões religiosas é uma das mais valiosas características da Arte. Como todas as religiões ensinam moralidade, um irmão honesto deixará as suas opiniões especulativas para Deus e para si. Assim, através da influência da Maçonaria, que é compatível com a mais sã política, as disputas que azedam a vida e amarguram o espírito dos homens são evitadas, e o bem comum, objectivo geral, é buscado zelosamente.
Deste ponto de vista a utilidade do nosso sistema é suficientemente óbvio. Os princípios universais da arte unem num laço indissolúvel de afecto homens das mais opostas tendências, dos mais distantes países e das opiniões mais contraditórias, de forma que em cada nação um Maçom encontre um amigo, e em cada latitude um abrigo.
Na concepção de Lessing, como nas dos autores maçónicos citados, os deveres patrióticos dos cidadãos não são incompatíveis com os seus deveres cosmopolitas. Em verdade, estes se pronunciam quando aqueles se desvirtuam.
O ethos maçónico enunciado nestas obras clássicas (Anderson, Dermott, Preston) evidencia este aparente paradoxo: ao mesmo tempo em que se exige do Maçom com a sua pátria e com o seu soberano, exige-se também fraternidade para com os demais, em especial os irmãos, ainda que estrangeiros.
Neste sentido, o problema da relação entre o patriotismo e o cosmopolitismo aproxima-se daquilo enunciado por Martha Nussbaum: o cosmopolitismo oferece instâncias viáveis de educação para a solução de problemas que não podem ser fornecidos pelo patriotismo: o patriota é faccioso, e a lealdade com o mundo evita os perigos advindos daquela visão estreita.
Mas a relação entre o Cosmopolitismo e o Patriotismo não é necessariamente uma de puro antagonismo, posto que são mais sentimentos do que ideologias. Como frisou Kwame Appiah (2002),
Um patriota cosmopolita pode contemplar a possibilidade de um mundo em que todos são cosmopolitas enraizados, ligados a uma terra natal, mas que apreciam a existência de outras terras, diferentes, casa de outras e diferentes pessoas.(…) Num mundo de cosmopolitas patriotas as pessoas aceitariam a responsabilidade cidadã de nutrir a política e cultura dos seus países. Muitos, sem dúvida, viveriam as suas vidas nos locais em que foram moldados, e esta é uma das razões pelas quais as práticas culturais locais seriam mantidas e transmitidas. Mas muitos se mudariam, e isto significa que as práticas culturais também viajariam (como têm viajado desde sempre). O resultado disso seria um mundo em que cada forma local da vida humana é resultado de um processo de hibridização cultural persistente e de longo prazo: um mundo, neste ponto, muito parecido com que vivemos hoje.
O cosmopolita, assim, não é necessariamente alguém desvinculado das suas raízes. Através de uma visão cosmopolita é possível que aprendamos mais sobre nós mesmos possibilitando a resolução de problemas que dependem de cooperação internacional, mas principalmente, reconhecemos deveres (obligations) para com as demais pessoas que de outro modo passariam batidos.
A ética maçónica, assim vista, não se sobressai como oposta à ética do cidadão, mas sim complementar, com a solução para o enigma proposto no início por Falk: as boas acções que tornam as demais boas acções supérfluas são aquelas que são praticadas para além do cumprimento do dever. São, portanto, boas acções pois praticadas para o bem comum, e não para o bem o do estado, da religião ou da classe, de forma que os conflitos continuarão a acontecer – pois é inevitável que aconteçam – mas poderão ter nos maçons e na Maçonaria um mecanismo de mediação.
Dificilmente a Maçonaria de Lessing/Falk era a Maçonaria real, quer no século XVIII, quer hoje. Mas Lessing não estava preocupado em descrever a Maçonaria real, e sim em propor a sua Maçonaria ideal como mecanismo para melhorar o mundo real. Neste sentido, esta obra quase esquecida pode fornecer muitas lições valiosas e atemporais para os maçons (ou não maçons) de hoje e de amanhã.
Edgard Costa Freitas Neto – graduado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz, Especialista em Direito e Magistratura pela UFBA e Mestrando em Relações Internacionais pela UFBA
Notas
[1] Como não existem versões conhecidas para o português da obra aqui estudada todas as citações directas serão traduções livres nossas feitas a partir da tradução para a língua inglesa feita por Hugh Nisbet em LESSING, Gotthold Ephraim. Philosophical and Theological Writings (Cambridge: Cambridge University Press, 2005).
[2] LESSING, op cit, p. 184.
[3] A respeito desta fase de transição, conferir STEVENSON, David. As origens da Maçonaria: o século da Escócia (1590 – 1710). São Paulo: Madras, 2009.
[4] A data de 24/06/1717 é tradicionalmente aceita como sendo a data de fundação da Grande Loja de Londres, a primeira do mundo, conforme descrito na segunda edição das —Constituições dos Franco Maçons” publicada por James Anderson, em 1734. Esta assunção foi recentemente posta em xeque pelos pesquisadores britânicos Andrew Prescott e Susan Sommers, que demonstraram algumas inconsistências na cronologia dos eventos escrita por Anderson. A respeito, cf. PRESCOTT, A.; SOMMERS, S. Searching for the Apple Tree: revisiting the earliest years of organised English freemasonry. In: Wade, J. (ed.) Reflections on Three Hundred Years of Freemasonry: Papers from the QC Tercentenary Conference. Lewis Masonic. (2017).
[5] Leo Strauss faz notar que Lessing, como muitos filósofos antigos escrevia sob uma dupla linguagem, ao mesmo tempo exotérica e esotérica, num padrão de revelação sob ocultação. Cf. STRAUSS, Leo. Exoteric Teaching. Interpretation: a Journal of Political Philosophy. Vol. 14 n. 1, Janeiro de 1986, pp. 51-61 e TARCOV, Nathan; PANGLE, Thomas. Epílogo in STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (orgs). História da Filosofia Política. Rio de Janeiro: Forense, 2013, pp. 819 e seguintes.
[6] Não se está a inferir, entretanto, seja que Lessing tenha influenciado directamente a Kant neste tópico, ou que Kant tenha participado da Maçonaria em Königsberg: não se conhecem evidências quer de uma coisa, quer de outra.
Referências
- APPIAH, Kwame. Cosmopolitan Patriots. In NUSSBAUM, Martha (org). For love of country? Boston: Beacon Press, 2002.
- ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
- CAMARGO, Felipe Côrte Real de. “The Freemasons are useful to the regime”: An analysis of the representations of Freemasonry in cinema and its utility on reinforcing or criticizing the establishment. REHMLAC+. Vol. 10 n° 2. Dez/2018 a Maio/2019
- KANT, Immanuel. À Paz Perpétua: um projecto filosófico. Beira: LusoSofia Press, 2008
- KOSELLECK, Reinhard. Crítica e Crise. São Paulo: Contraponto, 1999
- LESSING, Gotthold Ephraim. Philosophical and Theological Writings. Cambridge: Cambridge University Press, 2005
- NISBET, Hugh. Gotthold Ephraim Lessing: his life, works & tought. Oxford: Oxford University Press, 2013
- NUSSBAUM, Martha. Patriotism and cosmopolitanism. In NUSSBAUM, Martha (org). For love of country? Boston: Beacon Press, 2002 PRESCOTT, A.; SOMMERS, S. Searching for the Apple Tree: revisiting the earliest years of organised English freemasonry. In: Wade, J. (ed.) Reflections on Three Hundred Years of Freemasonry: Papers from the QC Tercentenary Conference. Lewis Masonic (2017).
- PRESTON, William. Illustrations of Masonry. Londres, 1772.
- ROLLESTON, T. W. Life of Gotthold Ephraim Lessing. Londres: Walter Scott, 1889.
- STEVENSON, David. As origens da Maçonaria: o século da Escócia (1590-1710). São Paulo: Madras, 2009.
- STRAUSS, Leo. Exoteric Teaching. Interpretation: a Journal of Political Philosophy. 14 n. 1, Janeiro de 1986, pp. 51-61.
- TARCOV, Nathan; PANGLE, Thomas. Epílogo in STRAUSS, Leo; CROPSEY, Joseph (orgs). História da Filosofia Política. Rio de Janeiro: Forense, 2013.
- WEBB, Thomas Smith; FREITAS NETO, Edgard da Costa. O monitor dos franco-maçons: ilustrações da Maçonaria. Salvador: Curtipiu, 2017.
- WEISBERGER, R. William. Speculative Freemasonry and the Enlightenment. A study of the craft in London, Paris, Prague, Vienna and Philadelphia.2nd ed. Jefferson: McFarland & Co, 2017.
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