MAÇONARIA DO SÉCULO XXI: PENSAR, SENTIR E VIVER

 

Autor: Luiz Carlos Silva

LOJA MAÇÔNICA DE ESTUDOS E PESQUISAS RENASCENÇA N° 1

Resumo

Perplexa, a sociedade moderna assiste simultaneamente a ruptura de antigas estruturas societárias e a emergência de uma nova ordem mundial. 

Acompanhar as mudanças em curso no mundo e estar afinado com seu diapasão e implicações são deveres de todo ser mortal que deseja administrar relativamente bem sua vida neste plano do Universo. 

Refletir para reconstruir poderia ser o lema a ser adotado pela atual geração de maçons nesse limiar do Terceiro Milênio. 

Frequentemente, coexistimos com outros e com o mundo afastando-nos uns dos outros, desconfiando uns dos outros, destruindo as condições críticas para nossa própria existência. 

Vivemos em conflito com a ordem natural das coisas e em desacordo com nossa dimensão biológica. 

Nós, seres humanos, por natureza temos necessidade de explicações. 

Precisamos entender a nós mesmos, compreender os outros e o mundo em que vivemos. 

Dessa necessidade nasceu a ciência moderna, e das aplicações práticas dela originou-se a tecnologia moderna. 

Entretanto, há outros domínios de nossa existência que não podem ser explicados pela ciência. 

Neles a ciência não atua, ou não o faz do modo objetivo com que opera no lado concreto do nosso viver. 

Esses domínios subjetivos incluem, por exemplo, valores, sentimentos, emoções, paixões, intuição. 

Afetados pela crise civilizatória em curso, os maçons necessitam reorientar seu modo de pensar, de sentir e de viver Maçonaria. 

A essência da atividade Maçônica é a inclusão do outro. 

As "sociedades administradas" totalmente resultaram em “sociedades mercantilizadas” quase que totalmente. 

Esses fatos da vida são parte do nosso cotidiano. 

A Maçonaria opera nessa realidade cultural. Nossa tarefa é questioná-la, analisá-la e transformá-la. 

Nosso sucesso em realizar essa tarefa pode ser a diferença entre o desencanto e a esperança; não uma diferença abstrata e poética, mas aquela que gera vontade e a ação. 

Mudança de modelo mental

Para pensar a Maçonaria do século XXI é preciso partir da base do modelo mental (ou modo de pensar, ou sistema de pensamento) por meio do qual construímos o nosso mundo. Há poucas esperanças de mudar o mundo que elaboramos, ao longo da nossa interacção com ele, se não modificarmos antes o modo de pensar que utilizamos para essa construção. Assim, propomos que, do ponto de vista do Acolhimento Maçónico, o pensar (que inclui o sentir), e o viver sigam a seguinte dinâmica:

O diagrama exprime algumas das principais dimensões do ser humano: o sentir, o pensar, o falar e o agir. 

Todas estão entrelaçadas, de modo que modificações em qualquer uma repercutirão sobre as demais. Trata-se de uma abordagem integrada e integradora, na qual tudo acolhe tudo e por tudo é acolhido.

Isto significa que é preciso, antes de mais nada, compreender que o privilégio dado pela nossa cultura à tecno-ciência, em prejuízo das humanidades, é um dos principais obstáculos à colocação em prática das iniciativas ou objectivos da Maçonaria. 

Portanto, desde o início convém ter em mente que aquilo que se deseja é introduzir ações de acolhimento numa cultura que é ou está basicamente não-acolhedora, uma cultura na qual a competição predatória, a devastação da natureza e a exclusão social não recebem o grau de atenção e questionamento que deveriam. 

Estas palavras, porém, não devem ser tomadas como desestimulo ou pessimismo, mas sim como um convite à reflexão.

Para pôr em prática os objetivos sociais da Maçonaria é preciso mudar de modelo mental. Trata-se de uma mudança ampla e profunda, que não pode ser feita por meio de iniciativas superficiais e de curto prazo. Eis o nosso desafio. Sem o compreender e buscar meios de o superar, as nossas boas intenções cairão no vazio.

Lidar com estes obstáculos exige, antes de tudo, que pratiquemos o que propomos.

O pensar inclui o sentir. 

Em geral, sentimos antes de pensar. Ou, de modo inverso, o que pensamos produz sentimentos. Pode-se dizer então que o sentir e o pensar se influenciam mutuamente, isto é, estão em relação circular.

Para trabalhar a interação entre o sentir, o pensar, o falar e o agir propomos começar examinando o que sentimos diante do sofrimento e da doença ou de outro infortúnio. 

A nossa proposta é iniciar pelo sentir e depois entrar em contato com o que pensamos, segundo vários pontos de vista, ou sejam, o dos que podem e devem resolver o problema, o do “paciente” ou queixoso, o dos seus familiares e o da comunidade. 

Examinemos alguns dos nossos sentimentos diante de tais situações e da necessidade de buscar atendimento, ou mesmo da necessidade de, fora dessas situações, procurar ações preventivas.

Em geral, os profissionais, como é a praxe na nossa cultura, foram preparados para sentir, pensar, falar e agir com base na lógica binária: o modelo mental de causa e efeito, a lógica do “ou/ou”. 

Trata-se de um padrão que exclui em vez de acolher, que separa em vez de juntar, que fala de acções, não de interacções, de vivência e sobrevivência em vez de convivência.

Em especial, é um modelo que privilegia as partes isoladas, em prejuízo das relações. 

A este respeito Václav Havel, ex-presidente de República Checa, tem uma frase que não deve ser esquecida: “Educação é a capacidade de perceber as conexões ocultas entre os fenómenos”. Por sua vez, Elizabeth Rondon Amarante, neta do Marechal Rondon, em contacto com os índios myky, descobriu que na língua deles não existe o verbo “viver”; no seu lugar está o verbo “conviver”, que significa morar, viver com, viver com o mundo, com os outros e consigo mesmo.

Relação, eis a palavra-chave, a argamassa do Maçom. Se sabemos tudo sobre uma espécie vegetal ou animal, uma técnica, um tratamento, etc., podemos dizer que somos especialistas, eruditos. Mas só quando compreendemos e vivemos as relações entre as pessoas, as coisas e os fenómenos é que somos realmente educados. Nesse sentido, Maçonaria é educar. E a formação maçónica é, pois, um processo pedagógico.

No contexto das acções de formação de profissionais, a maior preocupação das nossas escolas e faculdades, predominantemente voltadas para a tecno-ciência, é instruir, adestrar e treinar. Mas poucas educam. Poucas ensinam aos que nelas estudam a compreender que a percepção das relações, das interacções, pode diminuir a incerteza e, portanto, atenuar o medo.

Uma sociedade regida por um sistema de pensamento que privilegia a divisão, o afastamento, o não-acolhimento é uma sociedade de desconhecidos, de estranhos. O desconhecimento produz a desconfiança, e esta alimenta o medo e é por ele realimentada.

Se temos medo de entrar em contacto com os nossos sentimentos, emoções e subjectividades, acabamos adoptando uma visão de mundo em que tudo nos parece externo, objectivo. É como se não compartilhássemos o mesmo mundo com as pessoas com as quais lidamos no quotidiano. Como colocar-nos então no lugar delas?

Este raciocínio faz lembrar um mito da Grécia clássica: a história do Curador Ferido. Conta a lenda que a arte de curar foi ensinada por Apolo ao centauro Quíron. Este, por sua vez, a transmitiu a Esculápio, o deus da medicina.

Com Quíron, Esculápio aprendeu a praticar a cura pelas ervas. Entretanto, Quíron tinha uma ferida que jamais cicatrizava: ele vivia curando os outros, mas estava sempre doente, sempre sofrendo, e por isso era capaz de compreender os sofrimentos daqueles a quem tratava.

Este mito pode ser interpretado como uma sugestão da necessidade que o Maçom tem de reconhecer a sua própria vulnerabilidade, isto é, precisa tomar consciência da sua própria ferida, que representa a possibilidade de ele próprio “adoecer” e sofrer. Em outros termos, colocar-se no lugar do outro para poder avaliar o sofrimento dele e, então exercer a solidariedade e a fraternidade.

No contexto das acções interpessoais, os nossos modos básicos de sentir têm como apoio a divisão, a fragmentação, a pouca compreensão do que significa relacionar-se, ligar-se, acolher, comprometer-se, compartilhar.

As nossas ações são em geral vistas como relações de uso. Vemo-nos como fornecedores de produtos e serviços que se destinam a “usuários”. O uso pressupõe o descarte e a posterior exclusão, isto é, um segmento da população utiliza outro e depois o descarta.

Em suma: o nosso sentir atual é desagregador, separador, disjuntivo. Não compreendemos bem a extensão e a profundidade da ideia de relação, junção, participação. O nosso sentir é o de quem não aprendeu a pôr-se no lugar do outro. É um sentir não-maçónico, não-acolhedor.

Se, como no diagrama há pouco apresentado, a Maçonaria é identificada com um processo que requer a simultaneidade de várias iniciativas, é necessário começar pela modificação do nosso modo de sentir. A primeira providência para tanto é educacional. Ela requer uma reaproximação com a cultura humanística, que vem há longo tempo sendo posta em plano secundário.

Modos de pensar: o que é preciso modificar

Na nossa cultura predomina o pensamento linear, a lógica binária, isto é, o modelo mental “ou/ ou”. E é sobre esse assunto que agora nos aprofundaremos.

Fragmentação, imediatismo e super simplificação, eis três das características fundamentais do sistema de pensamento (ou modelo mental) que condiciona a nossa cultura. Trata-se de um condicionamento muito antigo, que vem da época de Aristóteles (384-322 a.C.).

O sistema de pensamento proposto por Aristóteles constitui uma das bases orientadoras da ciência actual. Corresponde à lógica clássica, que se baseia no princípio do terceiro excluído: “A” é igual a “A” e diferente de “B”; ou é ou não é; ou sim ou não; ou certo ou errado; ou isso ou aquilo.

Depois do filósofo grego, esse sistema de pensamento foi ampliado por muitos outros filósofos e cientistas, dos quais os mais destacados foram o francês René Descartes (1596-1650) e o inglês Isaac Newton (1642-1726). Descartes propunha que o conhecimento seria mais eficaz pelo exame das partes isoladas (embora propusesse também uma síntese final). Newton sustentava que a ciência deveria buscar sempre leis universais, que estabelecessem relações de causa e efeito.

Este condicionamento se acentuou nos últimos três séculos e até hoje predomina na nossa cultura. Está profundamente enraizado na nossa mente. Na prática, acabou se tornando quase que o único meio pelo qual interagimos com o mundo e tentamos entendê-lo. Praticamente todas as nossas “certezas”, as nossas teorias a respeito do mundo, são baseadas nesse modo de pensar. Eis os seus principais pressupostos:

  1. A maneira mais adequada de conhecer um objecto ou situação é dividi-lo e estudar as partes em separado, para depois tentar reunir os resultados da investigação numa síntese;
  2. as causas são sempre imediatamente anteriores aos efeitos ou estão muito próximas deles;
  3. a ligação causa-efeito ocorre sempre num mesmo contexto de espaço e tempo;
  4. o mundo é visto de modo binário, pelo padrão “ou/ou”: ou bem ou mal; ou certo ou errado; ou real ou imaginário; ou vencedor ou vencido; ou amigo ou inimigo e assim por diante;
  5. tendência à quantificação e à objetividade, o que leva à dificuldade de lidar com a subjectividade, os sentimentos, a intuição, as emoções, enfim, com os aspectos qualitativos da vida.

Na lógica linear, a divisão e a polarização constituem um componente da maior importância, pois ele leva-nos a acreditar que há sempre pólos antagónicos entre os quais é preciso escolher. Não que devamos ser contra as escolhas, é claro. A possibilidade de escolher é um dos fundamentos da liberdade e da democracia que tanto exaltamos. Mas aqui se trata da escolha binária, do ou isso ou aquilo, sem mais opções, que limita as nossas possibilidades de exercer a individualidade, a criatividade, a consciência crítica. É uma escolha limitada, estreita, propícia à imposição da manipulação e do controle. Não há abertura para reflexão, ponderação, negociação, investigação qualitativa, relações, interacções. Os nossos dirigentes, na Ordem, são diferentes?

Somos, portanto, prisioneiros das polarizações: ou inocente ou culpado; ou virtude ou vício; ou saúde ou doença; ou bem ou mal; ou fiel ou infiel; ou tudo ou nada ou Oriente ou Ocidente. Esta formatação mental dificulta a nossa percepção da diversidade e da complexidade do mundo natural e, é claro, não se pode respeitar aquilo que não se percebe.

Trata-se, pois, de um aprisionamento que estreita e limita a nossa percepção e compreensão. Com base nele surgem posturas como o imediatismo, o narcisismo, o isolacionismo e a insensibilidade. As imensas dificuldades de comunicação entre as pessoas e as instituições por elas criadas (a família, a escola, os governos, as empresas, as culturas, enfim) são, em especial, geradas por esse modo de ver. Trata-se de uma lógica de exclusão, não de inclusão. Não é difícil concluir que ela dificulta, e muito, as iniciativas e os objectivos da Instituição e, portanto, a formação do Homem Integral, o verdadeiro Maçom.

Outra, e talvez a mais desalentadora, peculiaridade desse nosso condicionamento é o fato de que a maioria dos nossos irmãos nem ao menos percebe a sua existência. Ou seja, eles não se dão conta de que estão condicionados.

A experiência mostra que quanto mais nos repetimos, mais marcamos passo, mais insistimos em não mudar o nosso modo de pensar, mais incapazes nos tornamos de perceber essa situação. A este respeito, Albert Einstein tem duas frases bem conhecidas:

  1. “nenhum problema pode ser resolvido pelo mesmo estado de consciência que o criou”;
  2. “tudo mudou, menos o nosso modo de pensar”.

Ainda assim, o modelo binário/simplificador/linear é necessário para as situações mecânicas, instrumentais, operacionais, da vida. O que o torna problemático não é a sua existência nem as suas aplicações, mas sim o facto de ele ser visto como quase único, exclusivo, inapelável. É esse detalhe que faz com que ele produza, ao lado de resultados práticos significativos, consequências muitas vezes desastrosas, como as dissidências e surgimento de novas “potências”.

Deste modo, quando falamos em mudar o modo de pensar, de maneira alguma pretendemos propor a eliminação do padrão binário e a sua substituição pelo seu oposto. Tal atitude equivaleria a incorrer no mesmo equívoco com sinal trocado.

Ao contrário, é imperioso manter o modelo binário, mas não é menos indispensável complementá-lo com um modo de pensar abrangente, holístico. 

Ou seja: pensar o todo sem deixar de lado as partes, o que significa pôr em prática a máxima do filósofo francês Blaise Pascal (1623-1662): “Considero impossível conhecer as partes sem conhecer o todo, bem como conhecer o todo sem conhecer as partes em particular”.

Um modo abrangente de pensar

O modelo mental que considera não apenas as partes, mas também as relações entre elas, é o pensamento sistémico, que deriva da teoria dos sistemas. Sistema é um conjunto de partes que interagem visando um objectivo comum. Um organismo vivo é um bom exemplo: é composto de células, que se organizam em tecidos, os quais por sua vez estruturam os órgãos. O funcionamento harmonioso dos órgãos determina o bom funcionamento (a saúde) do sistema.

Há sistemas fechados e sistemas abertos. Nos primeiros, não há trocas com o meio ambiente, e por essa razão eles tendem a consumir a sua energia interna e acabam se desintegrando. Os sistemas abertos trocam matéria e energia (ar, água, alimentos) com o ambiente, onde estão outros sistemas, e por isso se mantêm íntegros. Quando este intercâmbio cessa, por qualquer motivo, esses sistemas desintegram-se.

O pensamento linear permite pensar as partes separadas do todo. O pensamento sistémico permite pensar o modo como as partes se relacionam entre si para formar o todo. O modelo linear lida com os fenómenos em termos de causa-efeito (causalidade simples). O pensamento sistémico permite ir além da causalidade simples, isto é, possibilita a compreensão das relações e interacções no interior de cada sistema e entre sistemas diferentes.

O nosso cérebro está preparado para os dois modelos mentais, isto é, está programado também para relacionamentos e não apenas para a divisão e a fragmentação. Por outras palavras, a natureza preparou-nos para nos acolhermos mutuamente. Deve haver, portanto, um equilíbrio entre o modo de pensar fragmentador e o abrangente.

O modelo mental que permite compreender a necessidade de equilibrar os pensamentos linear e sistémico chama-se pensamento complexo.

Os dois lados do ser humano

Assim, temos um lado objectivo e lógico, indispensável para que lidemos com as situações objectivas, concretas, quantitativas, do quotidiano. Mas não é apenas nisso que consiste o nosso viver. Temos também um lado subjectivo, que inclui os sentimentos, as emoções e a intuição. Em todas as circunstâncias da vida essa dimensão está presente.

O equilíbrio deve existir entre os dois sistemas de pensamento. Por outras palavras, esses dois modos de pensar devem acolher um ao outro. Deste modo, as palavras “complementaridade” e “acolhimento” são da maior importância neste e noutros contextos. Elas indicam a necessidade de evitarmos o equívoco produzido pelo nosso condicionamento básico pelo modelo mental “ou/ou”, segundo o qual devemos sempre ver as coisas como dois pólos antagonistas, entre os quais é imperioso escolher um.

Se seguirmos este impulso, como quase sempre fazemos, logo ver-nos-emos divididos em duas grandes facções:

  1. os que adoptam o pensamento linear como modelo de pensamento predominante;
  2. os que fazem o mesmo com o pensamento sistémico.

Eis, portanto, o ponto mais difícil de compreender quando se fala sobre esse assunto: o condicionamento leva-nos sempre a escolher de imediato um dos pólos. Como o condicionamento pelo modelo linear formata a consciência da nossa cultura, para todos nós é difícil pensar na forma de complementaridade. 

Quer dizer: temos dificuldade de compreender o acolhimento, a interacção, a relação, porque estamos condicionados a pensar em termos de escolhas polarizadas, ou seja, em função da divisão, do não-acolhimento, da exclusão.

Depois dos trabalhos do filósofo francês Edgar Morin, aos poucos vem ficando cada vez mais compreensível, inclusive em vista de ações práticas, o que sempre foi óbvio: há momentos na vida em que é preciso medir, pesar e contar. E há, também, momentos em que é preciso levar em conta os sentimentos, as emoções, a subjectividade e a intuição. Nestes instantes, é necessário utilizar o pensamento sistémico.

Como não podemos, na maioria dos casos, saber em que instantes precisaremos pensar de um modo ou de outro, devemos estar preparados para utilizar os dois, com ênfase no que se tornar necessário numa determinada situação.

A proposta de Morin tomou o nome de pensamento complexo. Para esse autor, nem o pensamento linear nem o sistémico são capazes, quando isolados, de nos fazer compreender a complexidade das nossas vidas e da nossa relação com o mundo natural.

O pensamento complexo é um modo de pensar que procura ligar dois sistemas de pensamento que estão separados pela nossa cultura. É um modo de ver acolhedor, de integração. 

É por esta razão que ele constitui a base teórica da Maçonaria que pensamos, para enfrentar os desafios do mundo atual. 

O objetivo do pensamento complexo é permitir que lidemos de modo adequado com a complexidade. Esta pode ser definida como a condição natural de todas as coisas e processos do Universo, no qual tudo está ligado a tudo e tudo depende de tudo, assim como está em cima, assim está em baixo.

Há pouco, dissemos que a complexidade é a condição natural de todos os processos, coisas e fenómenos do Universo. Dissemos também que tudo está interligado. Com efeito, o pensamento complexo é uma forma abrangente, acolhedora, de perceber e entender o mundo natural. Por isso a ele (e à complexidade) se aplicam as chamadas leis da ecologia, das quais citaremos quatro. São elas:

  1. Todas as coisas estão interligadas;
  2. Tudo vai para algum lugar;
  3. Nada é gratuito;
  4. A natureza sempre dá o troco.

Comentemos brevemente cada uma.

De saída, convém notar que em todas está presente de modo implícito ou explícito, um princípio básico, ou seja, a ideia de que não apenas são importantes as partes isoladas, como também a ligação (a relação) entre elas. Isto é, no mundo natural as coisas e os seres vivos acolhem uns aos outros numa dinâmica incessante.

“Tudo vai para algum lugar” significa que, por exemplo, a garrafa vazia de plástico que jogamos na rua ou numa estrada, pensando que assim nos livraremos definitivamente dela, entra na complexidade do mundo natural. E o faz de modo poluidor, interferindo em equilíbrios delicados, de tal modo que um dia nós mesmos, ou os nossos descendentes (a quem dizemos amar, acolher, e com cujo futuro tanto nos preocupamos), sofreremos as consequências dessa agressão.

A terceira lei diz que nada é gratuito: tudo tem um preço, a ser pago por nós mesmos ou pelos nossos descendentes. Pois, como diz com clareza a quarta lei, a natureza (e os outros) sempre dá o troco, revida às agressões a que a submetemos. O que pode ocorrer de modo violento, tanto em relação às catástrofes naturais, quanto às desavenças entre as pessoas.

De todo modo, um ponto é fundamental: entender que o facto de ignorarmos as consequências dos nossos actos não significa que deixaremos de ser responsáveis por eles. 

Quer dizer apenas que estamos fugindo a essas responsabilidades, ou seja, que estamos alienados. É, portanto, indispensável que tomemos consciência de como e por que estamos alienados. Não há nenhuma dúvida de que este é o primeiro passo de qualquer iniciativa de mudança.

Como é evidente, as leis acima mencionadas e comentadas funcionam para o bem e para o mal. Por isso, o enunciado que diz que a natureza sempre dá o troco, não deve ser compreendido com o significado de vingança e sim como retomo, retribuição.

E, como é mais claro ainda, elas não apenas são as leis da ecologia: podem também ser vistas como as leis do pensamento complexo ou as leis que o homem Maçom tem de observar.

O Iniciado Maçom tem compromissos com as gerações futuras e, portanto, deve ter uma forte consciência voltada para o meio-ambiente.

É imperioso lembrar que uma das proposições morais maçónicas é: “O bem das gerações futuras deve ter primazia sobre o bem dos presentes”.

Os caminhos da mudança

Falemos agora de modo mais específico sobre a questão da mudança. O que é preciso para que mudemos o modo de pensar? Para responder a esta pergunta, examinemos o diagrama a seguir:

Acompanhemos a sequência: existe uma estrutura que produz o pensamento. O pensamento gera ações. As ações produzem resultados (consequências). É o que estamos acostumados a observar no dia-a-dia. E como acontece com as leis da ecologia, na Maçonaria, essa progressão tanto funciona para o bem quanto para o mal.

maçonaria

Vejamos um exemplo. Num hospital, trata-se com antibióticos infecções por estafilococos. No início a resposta é boa e os pacientes melhoram. A seguir, porém, percebe-se que a bactéria se tomou resistente. Então pensa-se sobre o que fazer – e o faz por meio do modelo mental linear, na forma de causa e efeito imediato: para estafilococos resistentes, antibióticos mais potentes.

Usa-se então antibióticos mais potentes. Os pacientes melhoram. Logo depois, contudo, os estafilococos tomam a apresentar resistência. E de novo pensando linearmente: para bactérias mais resistentes, antibióticos mais potentes. É claro que esta é uma providência correcta – mas não deveria ser a única.

Ao pensar linearmente, procuramos solucionar o problema com o mesmo modelo mental que o criou. 

E assim caímos na linearidade de sempre: Bactérias resistentes => antibióticos potentes => bactérias resistentes => antibióticos potentes >. E assim por diante.

O problema não é resolvido, mas apenas adiado. Com efeito, hoje sabe-se que existem cepas de estafilococos resistentes a todos os antibióticos conhecidos. O que aconteceu? Caiu-se, como sempre, numa solução simplista. Com isto, deixou-se de considerar em conjunto os demais (e múltiplos) factores envolvidos nas infecções hospitalares.

O modelo mental complexo propõe que em vez de questionar o pensamento depois de ele ter sido estruturado é preciso dar um passo atrás e, como se vê no diagrama, questionar a estrutura que lhe deu origem.

E qual é esta estrutura? Ou, dizendo de outra maneira, qual é a estrutura que produz o pensamento? A resposta que nos ocorre de imediato é: o cérebro. É dele que se origina o pensamento. Esta é a conclusão linear, baseada na causalidade simples. 

Trata- se, portanto, de uma conclusão simplista. Vejamos porquê:

  1. Não há muitas dúvidas de que o pensamento se origina no cérebro;
  2. Mas este órgão não está solto no ar: ele faz parte de um sistema (o nervoso);
  3. Este, por sua vez, faz parte de um organismo, o qual vive num mundo, num meio ambiente.

Estamos, portanto, utilizando aqui o pensamento complexo. E por meio dele chegamos a um raciocínio bem mais abrangente, desenvolvido pelo cientista chileno Francisco Varela: a mente faz parte do cérebro; o cérebro faz parte do corpo; o corpo faz parte do mundo; logo, a mente faz parte do mundo. Todas estas instâncias estão interligadas; elas acolhem-se mutuamente. 

Deste modo, podemos dizer que se a mente faz parte do mundo, a estrutura que a produz não é apenas o cérebro, como se vê no diagrama a seguir:

O ser humano é físico porque tem um corpo físico, composto por elementos químicos; é biológico porque esse corpo está vivo; é psíquico porque ele comporta uma mente; é social porque vivemos em sociedades; é cultural porque as sociedades produzem culturas; é histórico porque tudo acontece ao longo de um processo histórico; é ambiental porque vivemos num meio ambiente ou bioma.

Assim, como foi dito há pouco, afirmar que é apenas o cérebro que produz a mente é uma atitude simplista. É claro que ele é o órgão básico em que se dá a maioria, mas não todos, os processos mentais. Quem produz a mente é o ser humano em interação com a totalidade.

Esta é a conclusão a que chegou a moderna ciência cognitiva. 

E ela só foi possível quando várias disciplinas se uniram num grande esforço, cada qual dando a sua contribuição: a psicologia cognitiva, a neurociência, a linguística, a filosofia da mente, entre outras. Ou seja: trata-se de um esforço interdisciplinar que a moderna Maçonaria, a Maçonaria do presente para o futuro, não deve olvidar.

A cultura e a sua transformação

Uma vez vistos e compreendidos os marcos conceituais apresentados até aqui, logo surge a pergunta de sempre: mas o que fazer para pôr tudo isto em prática? Ou, com outras palavras: como passar a fazer as coisas (entre elas, claro, as acções da Maçonaria) de um modo diferente do actual? Mas, que seja benéfico e eficiente.

A resposta a esta indagação implica lidar com uma palavra-chave, que aliás está expressa na pergunta: o verbo fazer. Ela é importante, pois também está na definição de cultura.

Hoje, costuma-se definir cultura de uma forma simples, mas eficaz: é o modo como as coisas são feitas num grupo, organização ou instituição. Quando uma equipe de arqueólogos e antropólogos faz escavações numa determinada região, no Egipto, por exemplo, em busca de civilizações antigas, vai à procura do que esses povos, há muito desaparecidos, deixaram feito: estátuas, ruínas de templos e outros prédios, urnas funerárias, cerâmica e assim por diante. Todo este material permite que em muitos casos se reconstitua o modo de vida, os costumes, a religião, a história, a cultura, enfim, dessas civilizações.

Se quisermos que algo se modifique num determinado grupo, organização ou instituição é preciso mudar o modo como as coisas são feitas nesse grupo, organização ou instituição. Ou seja: é necessário mudar a sua cultura.

Eis, portanto, o nosso desafio: transformar a nossa cultura de relacionamento: modificar os seus modos básicos, actuais e desvirtuados, de fazer, que, como sabemos, incluem, a desvalorização das pessoas, havendo em muitos casos o predomínio da frieza em prejuízo do humano. Estes são modos de fazer que caracterizam uma cultura não- maçónica.

Trata-se, portanto, de criar e implantar uma cultura da verdadeira Maçonaria num domínio em que reina o seu contrário. Não é preciso pensar muito para chegar à conclusão que estamos diante de um desafio de grandes proporções, que, por isso mesmo, não pode ser superado a curto e a médio prazo.

Tempo, cultura e mitos

Esta é, talvez, a principal das dificuldades, que não são poucas, para a criação e implantação de uma cultura Maçónica na verdadeira acepção da palavra: a questão do tempo, do prazo.

Como todos sabem, a nossa sociedade caracteriza-se, entre outras coisas, pelo imediatismo. Queremos tudo no menor prazo e preço possíveis.

Mas este não é o único obstáculo a superar, pois ele faz parte de um amplo âmbito de modos de fazer e viver. Como mostram os estudiosos do assunto, a nossa cultura vem do patriarcado europeu. Ao longo dos séculos, tem avançado e consolidado os seus fundamentos, cuja base de raciocínio é como já sabemos a lógica binária ou pensamento linear. 

O pesquisador americano Sam Keen sintetiza assim o que chama de mitos patriarcais do Ocidente, a cujo conjunto chama de lógica da mitologia ocidental:

  1. Obsessão pela máquina;
  2. A convicção de que o sentimento, a intuição e as emoções são modos primitivos e imaturos de pensar;
  3. A convicção de que a natureza e os seres vivos do sexo feminino devem ser controlados e afastados das posições de poder;
  4. A convicção de que a vida humana deve ser organizada segundo os ditames da economia de mercado;
  5. A convicção de que o conhecimento técnico-científico e o poder são as bases da identidade humana.

A estas características, o biólogo Humberto Maturana e a psicóloga Gerda Verden-Zöller acrescentam:

  1. Apropriação. Desejo de domínio;
  2. Atitude extractivista e predatória para com a Terra;
  3. A desconfiança vista como regra nos relacionamentos interpessoais;
  4. Relações interpessoais baseadas no modelo autoritarismo-obediência- vigilância-controle;
  5. A guerra vista como um modo natural de convivência.
  6. Predomínio do modelo mental linear (lógica binária).

Como é fácil perceber, o não-relacionamento maçónico que permeia muitas das nossas acções é apenas uma manifestação desse quadro bem mais amplo. 

Além do mais, toda a atual economia de mercado estimula esse modo competitivo, excludente e predatório de vida. 

As suas consequências em relação aos ecossistemas, a escalada da exclusão social e, é claro, a chamada desumanização das pessoas, estão à vista de todos.

É em relação a tudo isto que precisamos agir. Não se trata, evidentemente, de empreendimento de resultados imediatos. Entretanto, diz o quase lugar-comum, se quisermos cobrir alguma distância, pequena ou grande, o primeiro passo deve ser dado. 

É este o espírito do presente trabalho sobre a Maçonaria que pretendemos: dar os primeiros passos de uma jornada que sabemos ser muito longa.

Para que não haja dúvida sobre o que queremos dizer quando falamos em mudança de cultura, é importante lembrar a frase de Robert Theobald: “É impossível modificar um elemento numa cultura sem alterar todos os outros”. E não poderia ser de outra maneira, pois, como sabemos, uma cultura é um sistema, um sistema criado por nós, seres humanos.

A cultura patente comporta as estruturas de superfície de um grupo, organização ou instituição. É a fachada e, do lado de dentro, a pintura das paredes, os móveis, a decoração, os murais e quadros de avisos, o modo como as pessoas se trajam, como elas se comunicam umas com as outras e com os visitantes. É a maneira como elas se comportam, enfim. A cultura patente representa o modo como a organização quer ser vista. É a cultura manifesta.

A cultura latente é o pólo oculto. Inclui os conflitos, os problemas, as animosidades, as dificuldades de relacionamento. Nela se encontra aquilo que a organização não quer que apareça. Entretanto, se é ali que estão os problemas, é também nesse âmbito que estão a criatividade, as possibilidades de negociação e mudança.

Para as finalidades deste trabalho, porém, o que realmente importa é conhecer um pouco sobre o que ocorre nos pólos instituído (cultura patente) e instituinte (cultura latente). Utilizamos para tanto, a metáfora da balança de dois pratos e um fiel, cuja utilidade é chamar a atenção para dois factos básicos:

  1. Uma organização em que a balança pender em excesso para o pólo instituído será inevitavelmente rígida, burocrática e lenta. Será uma organização difícil de administrar, além de pouco eficiente.
  2. Uma organização em que a balança pender demais para o pólo instituinte será excessivamente fluida. No limite, tenderá à desorganização e à anarquia. Como no caso anterior, será uma organização de difícil administração e baixa eficiência.

Assim, deduz-se que o conhecimento do que acontece nos pólos instituído e instituinte de uma organização é a base de todo trabalho de mudança de cultura organizacional. Se o nosso objectivo é buscar a mudança organizacional, é necessário estabelecer, tanto quanto possível, o equilíbrio entre as culturas patente e latente.

Ou, dito de outro modo, promover a harmonia entre: o instituído e o instituinte; o linear e o sistémico; a lógica e a intuição; a razão e a emoção.

Para dizer o mesmo de uma forma bem mais agradável, mas nem por isso menos eficaz, lembremos os versos do poeta Ferreira Gullar:

TRADUZIR-SE

Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo.
Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão.
Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira.
Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta.
Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente.
Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem.
Traduzir uma parte na outra parte – que é uma questão de vida ou morte – será arte?

Em qualquer organização há componentes como os valores compartilhados, as crenças, as normas de comportamento, as estruturas organizacionais e os sistemas de controle. O ponto central, porém, é sempre representado pelas pessoas.

As organizações são sistemas dentro de sistemas mais amplos, isto é, as sociedades. Estas, por sua vez, fazem parte de sistemas mais amplos, e dessa forma chegamos ao âmbito planetário. Fazer parte de um grupo, organização ou instituição requer, portanto, consciência participativa, ou seja, responsabilidade social, ambiental e planetária.

Por isso todo programa da Maçonaria que pensamos e queremos, é necessariamente um empreendimento comunitário, o que não quer dizer, porém, que os obreiros precisem abrir mão das suas individualidades. Ao contrário, um dos pontos mais importantes a compreender é que tomar plena consciência da individualidade (que leva à fraternidade) é a melhor maneira de evitar o individualismo (que leva à exclusão).

Assim, os focos mais importantes do processo de mudança organizacional aqui buscados são:

  1. Desenvolvimento pessoal.
  2. Desenvolvimento interpessoal.
  3. Visão e comprometimento compartilhado.
  4. Compreensão da complexidade.

Sobre estas áreas é que se aplicarão os métodos e técnicas de mudança de cultura organizacional.

Como já foi dito há pouco, trata-se de um esforço comunitário, um trabalho de todos e para todos, uma actividade que abandona a linearidade do individualismo e da exclusão e busca o desenvolvimento em rede (membro, triângulo, loja, potência) enfim, que começa com o reforço da individualidade e procura a solidariedade e a fraternidade.

Digamos a mesma coisa com outras palavras, com os versos do poeta João Cabral de Melo Neto:

TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol dos seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia ténue,
se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.

Considerações éticas

A actual situação do mundo inclui, além do desastre ecológico para o qual nos encaminhamos, uma série de distorções: injustiça e desigualdade social, económica e política; exclusão social; concentração de renda e poder; miséria e marginalização, na globalização económica; inacessibilidade da maioria às conquistas científicas e tecnológicas; não-consolidação de uma cultura de defesa dos direitos humanos e da cidadania; a discriminação da mulher; o racismo; e assim por diante.

A compreensão da ética desta proposta implica uma abordagem complexa, não- excludente, das suas diversas variáveis. É preciso entender, como observa Edgar Morin, as múltiplas causas que se interpenetram e se modificam umas às outras. Isso significa dizer que cada caso, indivíduo, comunidade, país, tem as suas particularidades, que são fundamentais para o entendimento do que acontece e do que pode ser feito. O que nos leva a sempre relativizar as generalizações aqui utilizadas.

Valores

Por trás dos sistemas políticos e económicos, e também dos movimentos dos seres humanos, de modo individual ou colectivo, encontraremos sempre valores que influem nos comportamentos. Não é difícil perceber o quanto a competição, o autoritarismo, o poder centralizado, o individualismo, o egoísmo, a ganância, a apropriação e a acumulação são valores que permeiam o modo de vida de muitos de nós e acabam gerando a situação a que chegamos.

A maioria das nossas relações é hierarquizada. Se os dominadores impõem a sua vontade, os dominados obedecem, e com isso delegam responsabilidades e se alienam. Os submissos não assumem responsabilidades (“Estou fazendo porque ele mandou, eu não tenho nada a ver com isto”), e quem manda acredita estar fazendo a coisa certa.

Desta forma, o controle e a vigilância tornam-se cada vez mais necessários: precisamos controlar (dominar) a natureza, os obreiros, os funcionários, o conteúdo, o orçamento, a droga. Além disso, é necessário disputar o poder, lutar pelas vantagens. Adquirir e manter os privilégios a qualquer custo, nem que para isso tenhamos que nos corromper e corromper tudo à nossa volta. Competir e ganhar, ganhar e competir, sempre a qualquer preço! Até onde?

Não se trata exatamente de falta ou confusão de valores, mas de valores que, conscientemente ou não, vêm direccionando os rumos da nossa civilização, e a nossa Sublime Ordem está contextualizada. 

Tais valores precisam ser identificados com clareza e revistos com urgência. Eles têm trazido cada vez mais exclusão, desigualdade, iniquidades, divergências e violência.

Cada vez mais, temos “coisificado” e transformado em produtos a serem comercializados quase tudo, inclusive o próprio ser humano e a vida. 

Coisificamos” os outros e a natureza, e assim estamos cada vez mais separados deles e dela. Acabamos por coisificarmos a nós mesmos e desse modo a vida vai perdendo o seu valor intrínseco, o que nos torna cada vez mais distantes dos princípios fundamentais da Ordem, cada vez mais insensíveis.

Tais valores não vieram do nada: foram construídos no decorrer da nossa história e se mantêm até hoje na maneira específica como nos relacionamos. Seja com a natureza (desperdiçando água, jogando papel nas ruas ou lixo nos rios, desmatando florestas ou desperdiçando papel); seja com os outros (quando os exploramos e negamos, quando não os ouvimos, quando não “reconhecemos” o irmão fora do Templo); seja connosco (quando somos controladores, exigentes e severos, de um lado e, do outro, tão negligentes com vários aspectos de nós mesmos).

Pesquisas também destacam alguns dos valores básicos da nossa cultura patriarcal, entre eles a valorização da guerra e da luta. Falamos o tempo todo em lutar: contra a fome, o terror, a pobreza, o comunismo, o capitalismo, o fanatismo. Supomos sempre a existência de um inimigo, um oponente, o que é um modo de aceitar as hierarquias da autoridade e do poder, o controle do outro, a apropriação.

Este tem sido o modelo predominante da nossa cultura.

Pode-se observar este jogo nas relações mais quotidianas, em casa e também nas transacções entre países. Elas condicionam quase todas as nossas instituições: a família, a escola, os serviços de saúde, o governo, determinando a política, a economia, a educação.

A exclusão, que não é só económica, acaba sendo não só inevitável, mas necessária para a manutenção daquela dinâmica social e económica. Eu ou você, isso ou aquilo, sempre houve e haverá excluídos neste jogo. Com a exclusão vêm a frustração, a mágoa, o medo. E também o ódio e a violência.

A guerra e outras formas de violência são consequências desta maneira de viver, fazem parte desta lógica. Não há, pois, como erradicá-las se continuarmos convivendo e percebendo o mundo dessa maneira. 

Como alcançar a paz sem reavaliar esse modo de pensar e sentir, e os valores nele implicados?

A exclusão, a violência e questões correlatas não estão fora do nosso âmbito. Não são questões só dos excluídos, como se não o fôssemos de alguma forma. Envolve e ameaça a todos. Onde quer que ocorra, qualquer injustiça é uma ameaça colectiva.

Onde quer que aconteça, o desrespeito aos direitos humanos é uma ameaça comum. Se o outro não for livre, também não o seremos. Esta foi a dura lição do século que passou: ou nos responsabilizamos por todos e pelo planeta, ou a nossa sobrevivência estará ameaçada.

Entre outros sentidos, Maçonaria também significa ao menos atenuar a exclusão social. Maçonaria é também garantir acesso. Acesso à comida, à terra, ao crédito e outros insumos; acesso à moradia digna, ao trabalho, à saúde; acesso à educação e à cultura, acesso à informação e ao conhecimento, à reflexão crítica da realidade, de quem somos e de que mundo é este em que vivemos. Maçonaria também significa não- violência e a promoção da paz.

Verdade

Na nossa cultura, apropriamo-nos da terra, dos animais, do trabalho, e acabamos por nos apropriar da verdade. Falo da noção de verdade única, que deve servir para todos. Existiria uma verdade absoluta? Esta verdade que tanto buscamos?

Considerarmo-nos detentores da verdade total assemelha-se a um pesadelo pretensioso, do qual a humanidade parece despertar. Como donos da verdade, julgamos estar autorizados a dizer o que o outro deve fazer, mais que isso, o que ele deve ser. Transformamo-nos no dono do outro, que deixa de ser outro e passa a ser uma coisa. Ninguém é dono da verdade, sejam os pais, o professor, o médico, o director, o Aprendiz ou o Grão-Mestre ou, ainda, a última teoria científica.

Na tradição latina, mores significa norma, costume, conforme os bons costumes, regra. 

Dela se origina a palavra “moral”. Reconhecemos nela um carácter normativo, autoritário, que implica obediência e uniformidade. Como aqui definida, a moral é algo que se impõe de fora para dentro. Um conjunto de valores e regras que deve servir para todos, garantindo assim previsibilidade e homogeneidade nas relações, minimizando as diferenças.

É preciso, porém, atentar para uma questão crucial: como percebemos o outro, um outro diferente de nós, e de que forma entramos em relação com ele. 

Martin Buber foi um dos primeiros a colocar a questão: estamos diante de um outro ser humano ou diante de uma coisa?

“Coisificar” o ser humano equivale a tratá-lo, segundo Marilena Chauí, como não humano, isso é transformá-lo numa coisa. É negar-se a acolhê-lo na sua condição mais profunda.

Por exemplo, quando só vemos a imagem do selvagem pelos critérios dos “civilizados”, que arbitram o que é civilização e barbárie, na verdade queremos reduzi-lo aos nossos parâmetros.

De todo modo, o importante é destacar que agindo e pensando dessa maneira a ideia de alteridade desaparece e, assim, reforça-se a nossa arrogância. Ver as pessoas segundo os nossos pressupostos equivale a negar-lhes as suas infinitas possibilidades humanas. Coisificamos o outro e assim não o acolhemos, cada vez que exercemos os nossos preconceitos e os disfarçamos com valores aparentemente aceitáveis.

Em tudo isto, o mais dramático é que não percebemos que ao coisificarmos as pessoas, tomamo-nos também coisas. Coisificar os outros, coisifica a nós mesmos. Desumanizar os outros, desumaniza-nos. Não acolher os outros é não acolher a nós mesmos.

Legitimar o outro é algo que vai muito além do discurso, passa por toda a nossa dimensão não-verbal de interacção. Expressa-se no olhar, na atitude do corpo, na intensidade do toque. Manifesta-se no dito e no não-dito. É algo que não se disfarça.

Rejeitar tudo o que submete, tudo o que oprime tudo o que nega o ser humano, tudo o que o transforma em coisa, é um dos fundamentos de uma atitude não-violenta, de uma atitude maçónica. Enquanto houver a menor tendência de transformarmos a nós ou ao outro em coisa, haverá miséria e sofrimento no nosso mundo, e este provavelmente seja o mais radical empreendimento a realizar. 

Talvez aqui esteja a chave principal que nos permita efetivamente encontrar uma autêntica vivência maçónica, uma autêntica pedagogia da paz e da inclusão.

Para a palavra “ética” do grego ethos, encontramos uma antiga significação (em Homero e Hesíodo) é morada, habitat, toca, refúgio, estábulo. Refere-se a uma espadalidade na qual nos podemos sentir seguros, acolhidos. Já não é a sobrevivência que se impõe: é a convivência que surge como possibilidade baseada na confiança.

O bem comum constitui a base de uma ética. 

Bem comum não é o bem da maioria, nem o bem do outro, muito menos o bem de uma minoria. É o bem de todos, de todas as espécies vivas do planeta, de todo o meio ambiente. 

Estamos, portanto, falando de uma convivência que garanta o bem da nossa morada, da nossa Instituição, do nosso planeta e de tudo que nele existe.

Maçonaria também denota, entre outras coisas, refúgio, abrigo, agasalho, o que transforma a sua ética numa significativa redundância: gerar duas vezes confiança e o bem de todos.

Eis a grande questão da Maçonaria e da ética: a convivência. É nela que nos tornamos o que somos e é nela que nos podemos modificar. 

Assim, é preciso reflectir sobre o tema da convivência, se quisermos promover uma aprendizagem verdadeira, que não seja simplesmente a imposição vertical de uma série de conceitos-regras a serem obedecidos sem crítica nem criatividade.

Enquanto há concordância, homogeneidade de ideias e comportamentos tudo vai bem. Enquanto há previsibilidade no comportamento humano as relações se estabelecem sem maiores dificuldades. No entanto, quando a concordância se rompe e não há mais previsibilidade, surge o conflito, as relações se tornam confusas e ameaçadoras. E aqui corremos o risco da desumanização.

É neste contexto que a diversidade se apresenta como um dos grandes desafios da convivência. 

Como lidar com as diferenças? Como resolver conflitos? Como manejar as contradições?

Historicamente, pelo menos desde o surgimento das cidades (cidade-estado), da Urbe, local em que, justamente, teriam que conviver diversidades culturais, étnicas, etc., o que se tem tentado é homogeneizá-las mediante regras impostas a todos.

Não é diferente com o que acontece nos aparatos da nossa Ordem (Potências, ritos rituais, Lojas e as entidades para-maçónicas). Estamos muito mais comprometidos com as regras a que obedecemos do que com o bem estar do outro. Não percebemos que ele é um outro diferente, com necessidades e capacidades próprias. Vemos apenas a nossa função, a nossa obrigação, e cumprimos a regra.

Tudo aquilo que não corresponde ao nosso modelo de “normalidade” está sujeito a um processo de inferiorização e exclusão. Na nossa sociedade o modelo será o homem, branco, ocidental, adulto, rico, saudável, magro, não portador de deficiências, heterossexual, urbano. 

O que foge dele acaba caindo em alguma forma de discriminação. No convívio diário costumamos fazer o mesmo não só com base nesse modelo construído culturalmente e alimentado pelos meios de comunicação, mas com tudo aquilo que consideramos diferente de nós mesmos.

Ser Maçom é, pois, encontrar outra forma de lidar com as diferenças. 

O contato com o diferente é a possibilidade de aprender algo novo, é a possibilidade real de expandir meu mundo. O que, mais que respeitar o diferente, leva a valorizá-lo. Não se trata apenas de tolerar e suportá-lo, pois isso muitas vezes transforma-se em arrogância e preconceito. 

Nem mesmo se trata de só respeitar as diferenças, uma vez que isso se pode transformar em indiferença. O essencial é reconhecer nela o seu verdadeiro valor, pois, com isso humanizamo-nos.

Humanizamo-nos à medida que compartilhamos espaço, comida, intimidade e cuidados. 

Somos filhos do cuidado. Sem ele não existiria espécie humana. Eis um caminho em que aqueles que praticam a Arte Real se podem humanizar e humanizar as relações entre as pessoas: cuidando.

Estamos vivos graças a uma imensa rede de solidariedade. A vida das partes é a vida do todo e a recíproca é verdadeira. Construir o mundo significa construir a si próprio. E construir-se é construir o mundo.

Ser Maçom é encontrar significado para a própria existência humana, é colorir o nosso quotidiano com a beleza mais singela dos gestos amorosos, é o lenitivo doce para os momentos de maior sofrimento, é a esperança que nos reacende o sorriso quando tudo parecia perdido.

Muitas vezes a saúde, a cura, a prevenção, dependentes de tantos factores, não estarão nas nossas mãos, porém o acolhimento, o respeito, a consideração e o cuidado, estes sim, sempre possíveis mesmo que não possam curar a patologia, poderão, antes de tudo, “curar” a desumanidade, uma doença que nos está matando a todo

O viver

Este é o propósito, delinear mesmo que de modo sucinto, uma filosofia prática de “vida Maçónica” e, portanto do Acolhimento. E isto pode ser feito ampliando-o, fazendo com que ele passe da esfera pessoal, vá ao plano interpessoal e, por fim, que a complete no âmbito planetário. 

Este, por sua vez, influenciará a esfera pessoal e assim por diante, criando-se então a grande circularidade expressa na primeira lei da ecologia: tudo está ligado à tudo.

Já sabemos que esta lei, por sua vez, é também a primeira lei do Acolhimento: tudo está ligado a tudo, de modo que tudo acolhe tudo e por tudo é acolhido. 

Assim, pode-se definir o Acolhimento do seguinte modo:

Já aprendemos que viver é sempre viver com os outros – e no mundo. Trata-se de uma condição que cria compromissos e responsabilidades.

O que está expresso no diagrama anterior não é apenas um conjunto de teorias nem um elemento de hipóteses. São factos reais, que não podem ser contestados por argumentos. A este respeito, convém dar pelo menos um exemplo.

Num processo de negociação, costuma-se perguntar: e se a outra parte não quiser negociar? E se o outro lado não quiser participar? Estaria, nesse caso, impedida a negociação? É claro que não. Viver é conviver. Estamos todos no mesmo mundo, queiramos ou não. Recusar-se a participar é uma atitude ingénua, pois cedo ou tarde todos nós – ou os nossos descendentes – seremos atingidos ou influenciados pelos resultados das decisões humanas, participando delas ou não.

Deste modo, recusar-se a participar de qualquer actividade, social ou não, humana ou não, corresponde a participar de modo negativo. Por acção ou omissão, por compromisso ou alienação, participamos sempre, somos sempre responsáveis.

Ilustremos de outro modo este processo:

Somos todos egoístas em maior ou menor grau. Por outro lado, e também em maior ou menor grau, também somos todos altruístas, com excepção é claro, das patologias sociais. Mas o facto é que em determinados momentos da vida a balança pode oscilar mais para um lado ou para o outro, a depender de um conjunto complexo de circunstâncias entrelaçadas.

O egoísmo nos leva ao isolamento, à não-participação, ao individualismo. Estreita e obscurece o nosso horizonte mental. Conduz à competitividade, ao privilégio do valor económico sobre os valores humanos, ao autoritarismo, ao nacionalismo xenófobo e à exclusão.

O altruísmo nos conduz à socialização, à participação e à individualidade. Amplia e torna claro o nosso horizonte mental. Leva à competência do conviver, ao diálogo entre o valor económico e os valores humanos, à democracia, à nacionalidade e à inclusão.

No egoísmo, a tendência é participar negativamente. No altruísmo, tendemos a participar de modo positivo.

Trata-se de escolher entre dois pólos que frequentemente surgem na nossa vida quotidiana:

Eis aqui um ponto da maior importância. Para viver a Maçonaria é preciso, antes de tudo, evitar o mais possível as armadilhas do auto-engano. É ter em mente que, de um lado, nenhum de nós é totalmente favorecido pelo bom senso. E que, de outra parte, todos tendemos a resistir às mudanças, em maior ou menor grau.

Assim, para aprender a lidar com o auto-engano, é necessário o autoconhecimento, V.I.T.R.I.O.L.. E neste ponto nos vemos diante de uma das formas mais comuns de auto-engano: imaginamos, ingenuamente, que podemos nos conhecer sem a ajuda dos outros. E, ainda de modo mais ingénuo, imaginamos que é possível o autoconhecimento de pessoas isoladas do mundo.

Para viver Maçonicamente é preciso ter consciência do auto-engano e de como lidar com ele. Para tanto, é necessário buscar, permanentemente, o autoconhecimento. Este, como sabemos, é um empreendimento interminável, mas nem por isso deve ser negligenciado. O autoconhecimento implica conhecer o outro (e deixar-se conhecer por ele) e conhecer o mundo (e deixar-se conhecer por ele).

Viver Maçonicamente é, portanto, ampliar ao máximo as ideias de diálogo e conhecimento.

Este raciocínio é validado por uma das teorias científicas mais importantes dos últimos tempos: a Teoria de Santiago, desenvolvida pelos cientistas Humberto Maturana e Francisco Varela e hoje mundialmente conhecida. Uma das suas principais bases é o seguinte raciocínio: a vida é um processo de conhecimento; logo, se quisermos conhecê-la é preciso saber como os seres vivos conhecem.

Se conhecer é viver, e vice-versa, viver como Maçom é ampliar ao máximo o conhecimento. E isto, por sua vez, implica levar a atitude Maçónica à prática, em todos os âmbitos e caminhos do quotidiano.

Tudo está ligado a tudo. A filosofia do Acolhimento Maçónico, tal como acima exposta, está presente em todos os domínios da nossa existência. Para que este ponto possa ser mais bem compreendido, convém acrescentar mais alguns pontos de vista, cuja base é o pensamento do filósofo alemão Martin Heidegger.

Comecemos falando dos significados da palavra “acolher”. Os dicionários a registam com os sentidos de hospedar; receber alguém; abrigar, atender; acreditar em, dar ouvido a. 

Desta maneira, acolher quer dizer “dar atenção a”, “preocupar-se com”, “cuidar de”. Significa, portanto, bem mais do que apenas receber e hospedar. A sua proposta também inclui estar disponível, estar à mão.

Percebe-se então que o Acolhimento está muito próximo dos conceitos de preocupação e cuidado, desenvolvidos por Heidegger. Para este filósofo, o ser humano é um ser-no-mundo. Ao nascer, ele se vê lançado ao mundo e, por meio da sua acção com este, precisa de traçar o seu projeto de vida:

A faticidade corresponde à situação em que o ser humano se vê lançado ao mundo numa situação que não escolheu. 

Ela gera a necessidade da elaboração de um plano, de um projecto que dê sentido à vida. Este, por sua vez, deve ser posto em prática. 

Para isso o ser humano precisa articular-se, ligar-se, vincular-se, não só aos outros seres, mas ao próprio mundo. 

Eis o início da colocação do projeto em prática.

A articulação pode ser percebida noutro conceito: o ser humano é um ser-no- mundo. Não se pode concebê-lo de outro modo. 

No entanto, ele não está no mundo de maneira apenas circunstancial. Isto é, não está no mundo como uma coisa que está dentro de outra, como por exemplo, “o lenço está no bolso”. 

Ao contrário, a nossa presença na Terra é estrutural: fazemos parte da sua estrutura e ela faz parte da nossa. 

Tu és pó e ao pó voltarás. Um acolhe o outro.

Ser-no-mundo significa estar indissoluvelmente ligado a ele e a tudo o que nele existe: os outros seres humanos, os demais seres vivos, as estruturas não-vivas do planeta. Tudo acolhe e tudo é acolhido. Tudo faz parte de tudo e com tudo interage.

Por isso, ser-no-mundo é ser-com, quer dizer, é acolher e ser acolhido. Esta é a nossa condição natural, e tudo aquilo que tentar impedir-nos de vivê-la traz como consequência uma situação de mal-estar. Tal desconforto, hoje mais do que nunca, está presente na nossa sociedade, em especial nos grandes centros urbanos. Passar por ele significa que em vez de “ser com” (o que nos levaria a uma cultura de paz), estamos vivendo a condição de “ser contra” (o que nos mergulhou numa cultura de guerra).

Viver Maçonicamente é, pois, viver a própria condição humana. Não a viver, ou vivê-la de modo incompleto, é uma forma de negar a humanidade, a nossa e a dos outros. É não se cuidar, ou cuidar mal, o que por sua vez implica não ser cuidado ou mal cuidado.

“Cuidar” pode ser entendido como preocupar-se, tomar conta, tratar. 

De acordo com esse conceito a maneira de ser básica do ser humano é o cuidado, a preocupação, pois somos seres-no-mundo, estamos no mundo em permanente interacção com os outros. Esse é um conceito de base, estrutural, que deve ser compreendido num sentido ampliado, mas que sem dúvida pode e deve ser levado à prática.

O cuidado e a preocupação, portanto, constituem os alicerces do Acolhimento. 

Esta circunstância pode ser expressa da seguinte forma:

A preocupação (o cuidado) com nós mesmos só nos afasta dos outros e do mundo se adoptarmos uma atitude individualista e, portanto não-comprometida. Cuidar exclusivamente de si, e levar isso a extremos, constitui uma sociopatia, isto é, uma patologia social. Em geral, o individualista se diz um patriota, um nacionalista. Mas, como sabemos, essa posição tem sido utilizada com frequência para justificar a apropriação, a xenofobia (aversão a pessoas e coisas estrangeiras), o fechamento e, portanto, a exclusão.

Cuidar de si sem deixar de pensar nos outros e no mundo é a característica fundamental dos Obreiros da Arte Real. Eles não buscam o individualismo, e sim a individualidade. No seu modo de entender, o nacionalismo xenófobo e excludente está afastado. A sua opção é a nacionalidade, isto é, o saber-se cidadão de um determinado país, mas também não deixar que essa condição impeça que eles se preocupem com a Terra inteira. O seu país é o lugar de nascimento, mas a sua pátria é a Terra.

No início destas considerações, quando mencionamos que o conceito de Maçonaria deveria ser aprofundado e ampliado, como o passo inicial para a sua inclusão nas nossas vidas, era exactamente disso que falávamos: o Maçom é uma pessoa acolhedora, é aquele que cuida de si próprio e estende esse cuidado aos outros e ao mundo.

Em consequência, torna-se claro que a Maçonaria não se limita às acções de beneficências. Ao contrário, os seus princípios estão, de vários modos, incluídos em várias iniciativas importantes no plano mundial.

Conclusão

Tudo isso dito, podemos agora concluir que a essência da actividade Maçónica é a inclusão do outro. Todos os caminhos a ela conduzem e dela retomam. Mas o modo de encontrá-los e as maneiras de trilhá-los requerem energia e persistência, num grau que desafia a todos nós.

As “sociedades totalmente administradas” resultaram em sociedades quase que totalmente mercantilizadas. No mundo actual, caminha-se para a divinização do “mercado”, do dinheiro, do “vil metal”, que a tudo permeia e condiciona.

Admitamos ou não, estes factos fazem parte do nosso quotidiano. A Maçonaria trabalha justamente no meio dessa cultura. A nossa tarefa é questioná-la, analisá-la, transformá-la. O sucesso do nosso empenho constitui a diferença entre o desencanto e a esperança, não apenas a abstracta e poética, mas aquela à qual se somam a vontade e a acção. É o que diz, com outras palavras, o educador Paulo Freire: “Não quero dizer, porém, que, porque esperançoso, atribuo à minha esperança o poder de transformar a realidade e, assim convencido, parto para o embate sem levar em consideração dados concretos, materiais, afirmando que a minha esperança basta. Minha esperança é necessária, mas não é suficiente. Ela só, não ganha a luta, mas sem ela a luta fraqueja e titubeia. Precisamos da esperança crítica, como o peixe necessita da água despoluída”.

Luiz Carlos Silva

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