O homem e a natureza
A Maçonaria é uma escola iniciática e filosófica que visa o aperfeiçoamento moral, intelectual e espiritual do ser humana (REAA, 2012). Crê na capacidade do homem autodeterminar o seu destino através da reflexão, do estudo, do trabalho, da prática das virtudes e, mediante o seu livre-arbítrio, tornar-se construtor da sua história. A jornada espiritual do Maçom impõe-lhe contínuo e laborioso ofício de lapidar o seu carácter a fim de encontrar os seus atributos divinos, permitindo tornar-se um homem mais virtuoso; ao aperfeiçoar-se, poderá finalmente ajudar a humanidade rumo à evolução e à felicidade.
A Maçonaria declara, peremptoriamente, que todos os homens são iguais, pois compartilham uma natureza divina que os tornam dignos de participarem da vida e das possibilidades de autodesenvolvimento na unidade do seu Criador.
Se ele nada sabe, pela sua razão e liberdade, pode tudo aprender e reescrever o seu destino. Depositário de uma dignidade imanente, na Maçonaria encontra plena doutrina para o aperfeiçoamento do seu espírito, independente das circunstâncias sociais, dos títulos profanos ou do poder económico. Neste ambiente de liberdade e igualdade, espera cultivar a fraternidade que une os seres humanos como verdadeiros irmãos, independente da raça, nacionalidade, crença ou opção política.
No âmago da sua doutrina universal e não dogmática, a dignidade humana sempre foi um eixo axiológico dos seus sacros ensinamentos.
Ao convidar o homem a se elevar acima dos seus vícios e paixões, conclamando -o a desenvolver a plenitude da sua natureza divina, imago dei, antecipou os conceitos actuais de dignidade humana.
A Maçonaria nega categoricamente qualquer tipo de manipulação ou sujeição do homem por outro homem ou do homem pelo Estado, razão pela qual historicamente se posicionou contra os regimes absolutistas, e se dedicou à consolidação do Estado Democrático de Direito, assim como à defesa do Estado laico, porém respeitando a liberdade de culto. Logo, é com naturalidade que a ordem Maçónica observa que o conceito de dignidade humana passa gradativamente a integrar o direito internacional, projectando-se sobre as constituições nacionais, reorganizando a hierarquia jurídica dos povos num patamar evolucionário superior.
A dignidade humana, como dito, é um dos eixos axiológicos por excelência da Maçonaria, fundamento ontologicamente do homem, imagem e semelhança do Criador.
Conjuntamente, crê num Cosmos ordenado, justo e perfeito, que emergiu do caos inicial, reflexo, embora difuso, do esplendor do mundo celestial; a natureza é, portanto, sagrada. Na génese universal, Cosmos e homem são formados pela Vontade Divina, o primeiro emergindo das trevas, o segundo do barro. Visto que a natureza preexiste à criação do homem, seja do ponto de vista teológico quanto científico, em ambos os casos ela se constitui a matriz natural para gerir e manter o homem.
O homem surge tardiamente no planeta Terra, o que o torna obrigatoriamente herdeiro das condições precedentes. Das suas mãos nada edificou: os rios, a atmosfera, as frutas, os campos, nem as cavernas onde nos primórdios da sua existência buscava guarida e escondia-se dos trovões, dos relâmpagos e da sua própria ignorância. A natureza tem, pois, um valor imanente, seja teológico, pois foi obra divina, seja científico, pois na relação causal evolucionária, da sua matriz, engendrou o Homo Sapiens.
A integridade da natureza, ou seja, a plenitude das suas funções primevas é uma condição fundante da vida humana. A degradação ambiental é, portanto, uma violação do direito da própria natureza de existir e, por consequência, torna-se meio de destruição da biosfera que engendra a vida. Logo, não há dignidade humana sem a dignidade da natureza, ambos são interdependentes e formam um todo indissociável.
O homem, portanto, apesar da sua razão, o que o coloca, numa visão antropocêntrica, em posição especial na criação, não o liberta da condição de criatura ao lado de toda natureza, e mais, a sua razão e consciência, causas da sua singularidade, exigem dele o zelo pelo ambiente.
Princípios e dilemas históricos
Desde a sua origem oficial, que remonta a 1717, em Londres, a Maçonaria mantém um diálogo fraterno nas sociedades em que se instala. Além da sua dimensão esotérica, cujas essências herdou das antigas escolas de mistério da antiguidade (MACKEY, 1874), a Maçonaria incorporou nas suas doutrinas os grandes pensamentos da humanidade, de Pitágoras à Kant, dos princípios Herméticos ao Iluminismo. Os cientistas encontravam na Maçonaria liberdade de investigação e compromisso com a verdade.
Nesta direcção, a Maçonaria é uma aliada dos avanços da ciência, caso contrário, além de negar a sua história, sacrificaria no altar do absurdo a própria razão humana.
Logo, perante a crise ambiental que a humanidade se depara, encontra-se no saber científico os fundamentos das argumentações e teses, com impessoalidade e imparcialidade. Temas tão relevantes como aquecimento global e o desmatamento não devem ser politizados ou ideologizados, à mercê das paixões sazonais, mas submetidos à prova da lógica e dos factos.
Embora reconhecendo a sua relevância, não se pode delegar à ciência toda a responsabilidade pela superação dos dilemas actuais, nem a sua filha, a tecnologia.
A “desmagificação” e a dessacralização do mundo (SELENE, 2006) nos últimos séculos, conduziram o racionalismo à condição da nova panaceia da humanidade. Como dito acima, este desencantamento do mundo engendrou a concepção dos Cosmos como uma grande máquina. Uma máquina formada por matéria e regida meramente por leis físicas; passível de ser desmontada, cujas entranhas abertas nada mais revelam que mecanismos de causa-efeito.
Porém, sem o resgate de uma abordagem integral da existência do homem e da natureza, em diversos planos conceituais, a degradação ambiental continuará a impor o seu modelo exploratório, seguindo o axioma unidireccional “consumir-e-descartar”.
O mais importante é saber construir com os demais actores sociais um diálogo com bases comuns, que transcendam os dogmas e visões unilaterais. O ambiente e homem devem caminhar juntos, e assim coser uma nova teia de relações inovadoras entre as diferentes religiões, organizações, doutrinas e pessoas.
Uma nova aurora
No seu relatório designado “Our commom future”, também conhecido como relatório Brundtland, a Organização das Nações Unidas conclama os povos do mundo a se unirem em prol dos valores universais que conectam todos os homens. Destaca que a vida no nosso planeta deve ser observada de modo integral, amplo e profundo. Educação, saúde, habitação, alimentação e saneamento são alguns dos direitos humanos fundamentais; a estes direitos, acrescenta-se o de um ambiente saudável, ecologicamente equilibrado.
Não é razoável que poucos desfrutem da natureza, dádiva comum, em prejuízo de muitos, em especial as gerações futuras. O conceito de igualdade na Maçonaria vem ao encontra destes tempos desafiadores.
Todo ser humano tem igual direito em participar da natureza e das suas dádivas. A crise ambiental não pode ser analisada isoladamente, separada da economia, da qualidade de vida, da justiça social, dos modelos tecnológicos de produção.
Modelos de desenvolvimento económico e social não podem ser concebidos sem a sua contraparte ambiental e justiça social. Esperar resolver a crise ambiental sem uma profunda revisão dos paradigmas económico, social, ético e tecnológico é contraproducente e maldosamente ilógico.
É mais do que sabido que se as nações subdesenvolvidas adoptassem os mesmos modelos e tecnologias dos países ricos, a fim oferecer os mesmos bens e serviços a sua população, o planeta colapsaria rapidamente.
Logo, não cabe somente distribuir bens de consumo, pois seria distribuir o resultado de um modelo insustentável, ampliando a crise; é preciso ressignificar a sociedade e a sua relação com os Cosmos.
A crise ecológica exigirá da humanidade não só novos paradigmas científicos e tecnológicos, mas uma nova consciência global de fraternidade; a consciência de que somos todos irmãos e a nossa casa comum está ameaçada.
Neste cenário, a Ordem Maçónica tem muito a contribuir, pois ela é universal e espalha-se por todos os recantos deste planeta azul. O seu discurso libertário e racional, a sua doutrina de caridade e esperança, abriga o melhor do homem e da humanidade.
Mais uma vez a Ordem Maçónica se depara com o seu compromisso sacrossanto de reerguer o homem e a sociedade, elevando-os à plenitude do seu dourado destino, à justiça social e auto-realização.
Para isso, o Maçom é convidado a reflectir sobre o homem, a natureza e a sociedade. O Maçom deve recolher-se no interior de sim mesmo, encontrar os seus limites e falhas conceituais, em com o rigor da sua mente organizada e espírito refinado, recriar-se, renascer e, por fim, guiar a sociedade a novos patamares de desenvolvimento humano.
Se antes as economias eram restritas às fronteiras nacionais e o conceito de soberania isolava os povos, hoje a dinâmica da civilização ultrapassou as fronteiras das nações e novos blocos supranacionais passaram a dominar o cenário globalizado.
Ao lado desta globalização económica, social e cultural, engendrou-se quase silenciosa a crise ambiental. Hoje, há uma consciência de que o nosso planeta não é tão grande e que os ecossistemas são interdependentes, que a sua resiliência é limitada, assim como a sua capacidade de restauração, podendo entrar rapidamente em ruína, inclusive de modo irreversível, daí o princípio da precaução ser um imperativo.
Desde que o primeiro homem pode observar a Terra do espaço, inaugurou-se um novo tempo – vivemos num mudo finito, e as convenções histórico-culturais que até então dividiram o nosso pequeno planeta em regiões denominadas países tornaram-se insuficientes.
Da Inglaterra, Escócia e França, a Maçonaria instituída em 1717, em Londres, se globalizou, cruzou os mares, ganhou a América e outros continentes. Este universalismo maçónico antecipou a ideia de globalização por centenas de anos.
A crença na dignidade do homem, independente da sua religião, nacionalidade ou cor, adveio de uma consciência unitária do Cosmos, que na sua diversidade, singularidade e sacralidade, merece a nossa eterna gratidão e vigilância.
A teoria científica do Big Bang e o relato bíblico da criação, remontam ao momento singular de criação. A partir de uma explosão, no primeiro caso, e do Verbo Divino, no segundo, o universo passou a existir. Um universo em movimento, seja pela expansão das galáxias seja pela evolução social, política, filosófica e cultural da espécie humana.
A evolução parece-nos ser um desiderato incontornável, seja a pequena semente que rompe a terra húmida seja nas galáxias espiraladas. Esta origem comum é ponto de referência importante. Primeiro porque nos une na origem, o “ovo cósmico” que gerou a multiplicidade, e porque revela a teia indissociável de inter-relações entre tudo que existe.
Dos instrumentos primitivos dos Homo Erectus às telas touchscreen dos nossos smartphones há um inexaurível fluxo de energia, matéria, inteligência, valores e fenómenos que jamais nas nossas breves vidas poderemos compreender.
À medida que o Homo Sapiens, e o seu cérebro desenvolvido, soube fazer instrumentos cada vez mais sofisticados, e aprendeu rapidamente que tais instrumentos podiam dar-lhes importantes vantagens competitivas frente à natureza, a espécie humana nunca mais parou a sua jornada de dominação.
Se por um lado as suas habilidades técnicas permitiram a sua multiplicação e o domínio sobre a natureza, submetendo-a à sua vontade, por outro lado a sua inteligência não foi suficiente para entender que estava neste planeta há apenas 200 mil anos, e que nos biliões de anos anteriores a natureza tinha definido as suas relações evolucionárias e ecológicas, um tecido vivo e vibrante que, a semelhança de um útero cósmico, iria gerar a espécie que a colocaria em risco.
Não há com cindir as actividades económica e social deste contexto amplo, contexto que nos aponta a necessidade de uma abordagem integral e integradora, tão bem expresso da encíclica papal Laudato Si, publicada em 2015 (OC, 2015).
Ignorar esta realidade é nada conhecer, ou conhecer mal o que se estuda. Por isso, qualquer caminho que se escolha para superar este momento crucial da humanidade dependerá da percepção das relações íntimas e inesgotáveis dos ambientes físico, químico, biológico, antropológica, filosófico, cultural e ético do nosso planeta.
A poluição, a extinção das espécies, o caos urbano, a miséria que avilta o homem, a deseducação dos povos são alguns aspectos que estão intimamente relacionados com a crise actual, e todos eles ferem a dignidade humana e confronta a ideia de uma humanidade feliz.
Talvez o mais importante com ponto inicial para superação da crise é reconhecer primeiro que ela existe, para depois entender que ela foi engendrada pelo homem, e que cabe a ele reorientar a sua história.
A Maçonaria tem um papel importante neste novo século, o século do conhecimento, e deverá enfrentar, com as virtudes teologais e cardiais, as crises actuais da humanidade ao conciliar os antigos e sagrados conhecimentos com a os desafios do presente, articulando a transição para um futuro em que ambiente, ecologia, natureza e homem possam viver em equilíbrio.
Conclusão
A presença humana no planeta Terra provocou profundas alterações na natureza, levando-a às situações de desequilíbrio e destruição.
Tal situação gerou a crise ambiental que permeia o quotidiano actual. A necessidade de reconhecer e reflectir sobre esta crise exige das instituições repostas rápidas sob a pena de ser tarde demais, comprometendo o acesso das futuras gerações a elementos da natureza tão comuns com rios, florestas e animais.
Todo ambiente actual foi resultado de longos processos que definiram as paisagens actuais, a cultura, a história, a filosofia, a religião etc. Ao longo desta linha temporal, as mudanças de modelos, graduais ou revolucionários, romperam com paradigmas hegemónicos para novos modelos, melhores ou piores. A escolha e a decisão recaem sobre o homem, pois é o detentor da razão e do conhecimento capazes de transcender a crise ambiental que ele mesmo gerou.
Nesta direcção, conclui-se que a Maçonaria, pela sua história, valores e conhecimento, pode dar a sua contribuição para superação da crise ambiental, pois a sua confiança na humanidade é um dos seus baluartes.
Gilmar Silverio da Silva
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