O templo do rei Salomão e a tradição Maçónica


Rei Salomão

A origem da lenda

As mais antigas referências ao Templo de Salomão, que aparecem em documentos maçónicos, são aquelas referidas no Manuscrito Cooke, datado de 1410. Esta Old Charge, embora datada do começo do século XV, é uma compilação de tradições orais mais antigas, cultivadas pelos maçons operativos ingleses, o que nos leva a crer que a tradição de utilizar a construção do templo hebraico como alegoria iniciática já era bem mais antiga. Segundo Lionel Vibert, essa tradição é oriunda da constituição que o rei saxão Athelstan, no século X, outorgara aos pedreiros livres da Inglaterra [1].

Diz este antigo documento que a arte da Maçonaria foi aprendida pelos israelitas quando eles habitaram o Egipto. Depois, quando se estabeleceram na Palestina ela foi desenvolvida de uma forma peculiar, transformando-se numa arte iniciática, porém mais consentânea com a crença israelita, que só admitia o culto a uma única divindade. Com o tempo ela adaptou-se à mística da religião de Israel e a arquitectura daquele povo adquiriu uma conformação própria, que misturava influências egípcias, no carácter de grandiosidade e sumptuosidade e incorporava os traços de simplicidade da arquitectura fenícia, que primava mais pela utilidade do que pela beleza e pelo fausto. Estas características podem ser observadas ainda hoje nas ruínas de Meggido e Jericó, escavadas pelos arqueólogos, que mostram como era a arquitectura nos tempos de Salomão.

Segundo aquela Old Charge, foi o rei David quem iniciou a construção do templo de Jerusalém e não Salomão. Este teria dado continuidade à obra e a terminou. Diz ainda este documento que Hiram, o mestre-arquitecto dessa obra era pai de Hiram, o rei de Tiro. Esta informação, provavelmente, vem do texto encontrado em Paralipómenos, 2;13 onde se informa que o rei Hiram de Tiro enviava a Salomão

um homem sábio e inteligente, que é Hiram, meu pai, filho de uma mulher das filhas de Dan, cujo pai foi Tírio e que sabe trabalhar em ouro e em prata, em bronze e em ferro, e também em púrpura e jacinto, e em linho fino e em linho fino e escarlate, e que sabe lavrar todo género de escultura(…),

já que a crónica original sobre a construção do templo de Jerusalém, ao se referir a Hiram diz apenas que ele era

filho de uma mulher viúva de Naftali, e cujo pai era de Tiro, que trabalhava em bronze e era cheio de sabedoria e inteligência para fazer todo género de obra de bronze.”

(Reis 7;14).

Alex Horne observa que o costume de identificar as origens da Maçonaria com os canteiros de obras da construção do Templo de Salomão não era privativo dos ingleses. As guildas dos pedreiros franceses e alemães também fizeram largo uso dessa tradição [2]. Anderson, entretanto, vai mais longe, pois situa o nascimento da Maçonaria no próprio paraíso terrestre, na forma das instruções que Adão dá a seu filho Set. E Set teria construído uma cidade, a qual consagrou ao Senhor, razão pela qual esse filho de Adão teria sido o primeiro Maçom [3].

Evidentemente, as informações prestadas pelo Dr. Anderson, bem como as contidas no Manuscrito Cooke não foram inspiradas nos textos bíblicos nem encontram qualquer confirmação em registros históricos, sendo mais um produto da imaginação dos seus autores do que de qualquer tradição antiga que se tenha referido a essa possibilidade. Nem nos trabalhos de Flávio Josefo encontramos qualquer alusão ao facto de ter sido o rei David e não Salomão o inaugurador das tradições maçónicas, ou que estas tenham sido iniciadas pelos descendentes directos do primeiro homem, Adão. É possível que esse equívoco se tenha originado no facto da Bíblia atribuir a David a intenção de construir um templo para Jeová, embora jamais o tenha levado a cabo. Ao que parece, os maçons operativos não se importavam muito com a exactidão histórica, pois a primazia de David sobre as obras de construção do templo aparecem também noutras Velhas Regras, o que nos leva a crer que tal informação era tida como verídica por eles [4].

Entretanto, todas as tradições maçónicas referentes ao Templo de Salomão como principal símbolo da Arte Real, já constavam das Velhas Regras (Old Charges). Na sua maioria, esses antigos manuscritos procuram justificar a origem salomónica da Arte Real. Face a esta verdadeira paranóia dos maçons operativos, esses documentos devem ser lidos com a devida reserva, pois, a par de muitas informações confirmadas pelas crónicas bíblicas e outros registros antigos, eles também veiculam muitas informações contraditórias, e na maioria dos casos, fantasiosas e de difícil comprovação. Alguns deles, como o Manuscrito Dunfries nº 3, de cerca de 1650, diz que o Templo de Salomão foi construído a partir das instruções que Deus dera a Moisés para a construção do Tabernáculo. Esta sim, é uma possibilidade a considerar, pois o Tabernáculo era uma tenda construída com as especificações de um templo, que foi erguida pelos israelitas no deserto para servir de santuário para o culto de Jeová. Nessa tenda, que era um templo móvel, já se pode verificar todas as especificações geográficas, geométricas e rituais que mais tarde seriam usadas na construção do Templo de Jerusalém.

Já o manuscrito Dunfries nº 4 dá, inclusive, o local exacto da construção, que seria a rocha do Domo, no monte Moriá, onde hoje se ergue a Mesquita de Omar, (a da cúpula dourada), o que, de modo geral, não tem sido contestado pelos historiadores. Outros manuscritos como o de York, cita Nenrod o mítico rei da Babilónia, que teria construído a Torre de Babel, como sendo o pai da Maçonaria, sendo ele, aliás, o primeiro a construir uma grande cidade e uma formidável obra de arquitectura usando as chamadas “ciências sagradas”. Esta obra seria a referida Torre de Babel.

O significado da lenda

Abstraindo o carácter lendário e mítico tão a gosto dos imaginativos autores maçons, o Templo de Salomão é uma alegoria que se presta ao desenvolvimento de várias ideias de conteúdo espiritualista que carregam, no seu bojo, formulações mais interessantes do que as lendas que se evocam a respeito. Uma delas, defendida por René Guenón é a de que, como simulacro do cosmo, construí-lo significa construir o próprio universo, missão que cabe ao Maçom [5].

Por outro lado, edificar uma obra dessa magnitude, com todo o significado que ela encerra, assemelha-se à construção do próprio individuo, pois o homem, como bem ensinou Jesus , é o templo vivo de Deus. Assim, da mesma forma que os maçons operativos construíam igrejas em louvor a Deus, os maçons especulativos constroem os templos sagrados do carácter humano, também em homenagem ao Grande Arquitecto do Universo, sob cujos auspícios se reúnem em Lojas para “cavar masmorras ao vicio e erguer templos à virtude”.

O simbolismo desta parábola é bastante claro para quem tem olhos para ver e ouvidos para ouvir. Nos graus superiores do Rito Escocês, a alegoria do Templo do Rei Salomão será explorada com mais profundidade para demonstrar que a verdadeira sabedoria é a prática das virtudes cristãs [6].

Esta sabedoria, segundo a tradição maçónica, foi ensinada anteriormente ao próprio Rei Salomão para que ele, através da arte da arquitectura e do comportamento digno de um rei, as transmitisse à humanidade de uma forma insofismável.

Veremos que Salomão falhou nesse intento e, em decorrência, o Reino de Israel, organizado por Deus para ser o protótipo do estado perfeito sobre a terra, desmoronou, sendo dividido em dois reinos antagónicos após a sua morte.

Esta é uma lição que tem que estar presente na mente de todo Maçom: não basta ter sabedoria para construir obras de grande engenho; é preciso que essa obra tenha um espírito, pois é nele que repousa a justificativa da construção e a grandeza do seu construtor.

A razão da lenda

Pelo relato bíblico percebe-se a razão da escolha do Templo de Salomão para servir de alegoria para o desenvolvimento do Iluminismo Maçónico. Aquela obra é uma construção que une o sagrado ao profano, que reabilita o homem frente a Deus; ao mesmo tempo, ressalta o valor do trabalho, da organização, da hierarquia. E na organização dos trabalhadores, na estruturação das profissões, nas próprias tarefas dos obreiros envolvidos na construção, pedreiros, talhadores, fundidores, carpinteiros, espelha-se também o conteúdo iniciático da Arte Real [7].

Com efeito, nenhuma outra alegoria conviria melhor a uma sociedade iniciática, cujo objectivo era o desenvolvimento de uma filosofia moral e ética destinada à construção do Homem Universal, alicerce de uma sociedade livre, justa, perfeita e feliz, reflexo da realidade divina na terra. Era uma comunidade assim que se pretendia ter existido outrora. Para os maçons espiritualistas, era a reedição da civilização que os antigos egípcios teriam herdado dos atlantes e reverenciavam através do culto a Maat, a deusa que representava a harmonia universal e para os adeptos da nova filosofia que encantava os intelectuais europeus da época, o iluminismo, essa era a forma de realizar essa utopia.

Talvez seja esta a razão de encontrarmos junto aos maçons operativos tanto anelo pela tradição da antiga Israel. Não seria este também, o sonho de Moisés ao organizar o povo de Israel? Na verdade, o que era o Pentateuco senão um extenso código de leis, filosofia e preceitos elaborados para a organização de uma comunidade de “eleitos”, ou seja, um povo escolhido por Deus para reflectir, na terra, a imagem do reino dos céus?

Afinal de contas, todas as esperanças de humanidade sempre convergiram para esse sonho: um regresso ao velho estado de ordem, justiça, perfeição e harmonia, que um dia existiu no universo, e que permanece na memória celular da humanidade como um arquétipo a ser recuperado. Este estado perdeu-se na história das civilizações em consequência do orgulho do homem, pois ele, ao adquirir o conhecimento do bem e do mal, pensou poder mais que os deuses. A memória deste estado, entretanto, refugiou-se no inconsciente humano, reprimida pelos apelos à racionalidade e à s necessidades da vida profana. Para recuperá-lo, era preciso reconstruir a sociedade, como já se fizera várias vezes com o Templo de Salomão, que tinha sido destruído e reconstruído várias vezes. O Templo de Jerusalém é, pois, um símbolo desse eterno processo de ascensão e queda do homem, que se repete no tempo e na História.

Para que este Templo tivesse estabilidade, entretanto, era preciso construir um homem novo, regenerado, purgado dos seus vícios, morto para a vida profana, na melhor tradição iniciática, mas regenerado para uma nova vida pessoal e social, baseada numa nova ética e numa nova moral, fundamentadas num humanismo espiritualista que atendesse tanto a razão prática, quanto à sensibilidade mística do homem religioso. Este novo homem seria um Hiram, pedreiro moral, construtor do novo Templo de Salomão, arquétipo da sociedade ideal desejada pelo Sublime Arquitecto do Universo. Para isso, porém, como a própria tradição iniciática sustentava, e a doutrina cristã confirmava, era preciso que o mestre morresse, para que os seus seguidores nele renascessem como iniciados. Desta simbologia, que incorpora todas as antigas tradições, desde o mito de Osíris, até o sacrifício de Jesus Cristo, nasceu o Drama de Hiram, que é a alegoria mais significativa de toda a doutrina maçónica.

Por isso, não é Salomão o pai da Maçonaria simbólica e iniciática, mas sim Hiram, o arquitecto do Templo, que além de ser o seu fundador, tornou-se também o “sacrificado da obra”, através do estranho ritual da sua morte, executada pelos três companheiros traidores. Esta liturgia foi necessária para cumprir a antiga tradição de que toda obra, fosse ela social, política ou arquitectónica, precisava ter um “sacrifício da completação”, para que os deuses dela se agradassem e a conservassem. Fecha-se assim, o simbolismo presente na alegoria do Templo de Salomão e da morte do seu arquitecto [8].

João Anatalino Rodrigues

Notas

[1] Jean Palou – Maçonaria Simbólica e Iniciática, Ed. Pensamento, 1986

[2] Alex Horne, op citado pg. 68

[3] James Anderson – As Constituições, 1723

[4] O Manuscrito Downland, datado, provavelmente de 1500, também se refere a David como iniciador do Templo e a Salomão como continuador e fundador da Maçonaria como instituição.

[5] René Guénon – Aperçurs sur L!Iniciation – Paris, 1929

[6] O próprio Jesus se utilizou deste simbolismo para falar de si mesmo e da sua promessa de ressurreição. “destruí esse templo”, disse ele, “ e eu o reconstruirei em três dias”. Jesus não falava da destruição do seu corpo, pela morte que o esperava, e a sua ressurreição após os três dias que passaria no túmulo, como geralmente se interpreta. Na verdade, ele estava a referir-se à destruição das tradições antigas e o estabelecimento de novas crenças, pois a antiga crença estava simbolizada no templo de Jerusalém, onde os escribas e fariseus subvertiam as leis de Moisés em benefício próprio.

[7] O termo Iluminismo maçónico é aqui utilizado por considerarmos que a Maçonaria institucional, nascida da fusão das Lojas londrinas foi um episódio inspirado pela filosofia do iluminismo.

[8] Em Reis, I, 8;62 lemos que Salomão imolou vinte e dois mil bois e cent mil ovelhas, como oferta ao Senhor pelo término da obra. Descontando o evidente exagero dos números (Nem todo Israel teria um rebanho tão grande assim), o registro bíblico corrobora a tradição do “sacrifício da completação”.


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