O Rito Escocês Filosófico

Os opositores do Rito Francês não constituíam um corpo homogêneo e nada permite afirmar que suas lojas praticavam um ritual uniforme. Basta notar que alguns dos componentes deste movimento, principalmente a Ordem de Heredom de Kilwinning, eram, eles próprios, corpos de altos graus sem um ritual azul definido. O Rito Escocês Filosófico, praticado por alguns, era, provavelmente, o que mais se assemelhava a um Rito com contornos reconhecíveis.

De origem avignonesa ou marselhesa, surgido por volta de 1774, este Rito era o da loja parisiense Saint Jean du Contrat Social, criada em 1770, e trabalhando segundo os rituais de Avignon desde 1776.

Ela tinha, em 1781, negociado uma concordata com o GODF, que lhe concedeu o direito de criar oficinas superiores de seu rito na França e lojas azuis no exterior. Embora a loja tenha abatido colunas durante a revolução, seu rito foi mantido em algumas lojas da França e, em particular, na Parfaite Union de Douai, que o praticava desde 1784.

Os rituais do Rito Escocês Filosófico são conhecidos. A biblioteca do Supremo Conselho para a Bélgica conserva diversos exemplares, idênticos aos publicados há 20 anos por R. Désaguliers, e provenientes da loja Saint Jean de la Vertu Persécutée, de Avignon.

Sua leitura mostra que estes rituais não eram muito diferentes daqueles em uso nas lojas francesas da época. 

As “instruções” de Avignon e do Regulador diferem apenas na apresentação e na ordem das perguntas e respostas.

Repito os principais elementos:

  • Os oficiais são organizados segundo o uso “moderno”: o venerável no Oriente, o 1o vigilante ao Sudoeste, diante da coluna B, o 2o Vigilante no Noroeste, diante da coluna J.
  • As palavras sagradas são “J” no primeiro grau, “B” no segundo grau e “M…” no terceiro grau. A inversão de palavras decidida pela Grande Loja dos Modernos, em 1730 (ou 1739), era respeitada, como o será em todas as lojas francesas no século XVIII, incluindo as lojas “escocesas”.
  • As três luzes são o sol, a lua e o mestre da loja.
  • As palavras de passe, comunicadas durante a cerimônia, são “Tub” no primeiro grau, “Schi” no segundo grau e “Gib” no terceiro grau.
  • As viagens do candidato no primeiro grau são marcadas pela purificação pela água e pelo fogo.
  • A letra G, revelada no segundo grau, significa, “Glória a Deus, grandeza ao Ven. e geometria para todos os maçons.” Ela designa o Grande Arquiteto do Universo.
  • Ponto essencial, a versão da lenda de Hiram é a que estava em uso na França desde a introdução do grau de mestre: a antiga palavra de mestre, Jeová, não se perde com o desaparecimento do arquiteto. Ela apenas passa a ter uma palavra substituta: MB. Isso é fundamental, porque o Rito dos “antigos” afirmava, ao contrário, que apenas três a conheciam. A morte de Hiram impediu que ela fosse comunicada e a escolha de uma palavra substituta tornou-se assim muito mais do que uma marca de prudência.

Embora o Rito Escocês e o Rito Francês fossem basicamente idênticos, é necessário salientar uma diferença significativa: a disposição dos grandes candelabros ao redor do tapete da loja, descrito pelos “Regulamentos Gerais da respeitável Loja Mãe Saint Jean d’Ecosse de la Vertu Persécutée, no Oriente de Avignon”, datados de 1774, citado por René Desaguliers em seu artigo essencial de 1983.

“No meio do Templo e sobre o pavimento, será traçado com giz o painel conhecido de todos os Maçons. Haverá três grandes candelabros, cada um portando uma tocha: colocados, um deles, no canto do painel, entre o Oriente e o Sul; os outros dois no Ocidente, um entre o Sul e o Oeste, o outro entre o Oeste e o Norte.”[48]

Esta disposição, SE-SO-NO, que nos parece familiar, pois é a do Rito Moderno belga, não era a das primeiras lojas francesas. Os “painéis” que ilustram as primeiras revelações[49] e gravuras famosas de Lebas mostram consistentemente candelabros nos cantos NE-SE-SO. Na confissão de John Coustos aos inquisidores portugueses, em 1743, lemos que o venerável mestre, sentado no Oriente, estava ladeado por duas velas, enquanto uma terceira brilhava no Oeste próxima aos dois vigilantes[50], disposição confirmada por revelações francesas, onde se lê:

“Em Lojas regulares e bem montadas, estes candelabros altos como Candelabros de Altar são comumente de forma triangular[51]& decorados com os motivos da Maçonaria. Os quatro pontos Cardeais marcados sobre o Desenho ditam a colocação das três velas, do Grão-Mestre[52] e dos dois vigilantes. Colocamos uma dessas luzes no Oriente, a outra ao Sul, e a terceira no Ocidente. O Grão-Mestre se coloca no Oriente, entre a luz do Oriente e a do Sul[53].”

As lojas do GODF tinham mantido esta disposição, como mostram as ilustrações do “Régulateur du Maçon” (1801): a loja de aprendiz é iluminada por três velas colocadas em três grandes candelabros triangulares posicionados nos ângulos NE, SE e SO. Trata-se de um outro exemplo de fidelidade do “Rito Francês” às tradições da Grande Loja inglesa, dita dos Modernos, já que esta disposição era aquela das “novas lojas de acordo com as instruções de Desaguliers”[54] segundo um texto fundamental inglês do início do século anterior. As lojas francesas seguiram, assim, o costume da maçonaria mais tarde chamada de “moderna”, aquela da Grande Loja de 1717.

O significado destas luzes foi dado por Prichard, que, em seu livro “A Maçonaria Dissecada”, de 1730, escreveu:

P. Há quaisquer Luzes em sua Loja? R. Sim, Três.

  1. P. O que elas representam? R. Sol, Lua e Mestre-Maçom.

N.B. Estas luzes são três grandes velas colocadas em candelabros altos (grifo meu).

  1. P. Por que? R. O Sol para governar o dia, a Lua a noite, e o Mestre Maçom sua Loja[55]“.

Os rituais franceses foram um passo adiante ao denominá-las “Grandes Luzes”

“O que vistes quando fostes recebido maçom?

Três Grandes Luzes dispostas em esquadro, uma no Oriente, outra no Ocidente e a terceira ao Sul.

O que significam essas três Grandes Luzes?

O sol, a lua e o mestre da loja.[56]

Se a loja inglesa era iluminada por três luzes, ela também era suportada por três “pilares”, Sabedoria, Força e Beleza, representados pelo venerável mestre e os dois vigilantes. Ambas as Grandes Lojas, “Moderna” e “Antiga”, estavam, pela primeira vez, de acordo sobre este ponto. As revelações dos anos 1760. The Three distinct Knocks Or the Door of the most Antient Free-Masonry, de 1762, e Jachin and Boaz or an authentic key to the door of Free-Masonry, relatavam o mesmo diálogo:

“Mestre. O que sustenta a sua Loja?

Resp. Três grandes pilares.

Mestre. Quais são seus Nomes?

Resp. Sabedoria, Força e Beleza.

Mestre. Quem o Pilar de Sabedoria representa?

Resp. O Mestre no Oriente.

Mestre. Quem o Pilar da Força representa?

Resp. O Primeiro Vigilante [no Ocidente].

Mestre. Quem o Pilar de Beleza representa?

Resp. O Segundo Vigilante [no Sul].[57]

As primeiras revelações francesas foram mais longe e afirmaram a semelhança destes “pilares” às colunas J e B do templo de Salomão (“pillar” é traduzido indiferentemente como coluna ou pilar, embora, em francês, coluna signifique um suporte de formato circular e pilar designe um suporte de qualquer formato). Ao descrever a imagem da loja, o “Nouveau Catéchisme des Francs-Maçons” (p.41) é bem explícito:

“Abaixo [da janela do Oriente], eles pressupõem[58] um terceiro pilar, Beleza. Sobre uma das duas Colunas reais, Força & um grande J. que significa Jakhin, &, sobre a outra, Sabedoria & um grande B. que significa Booz, & no centro da Estrela Flamejante aparece um grande G.”

Legenda: Painel da loja de aprendiz no “Nouveau catéchisme des Francs-Maçons”, de 1749. Note-se a localização das tochas luminosas marcadas pelos botões.

Esqueçamos a disposição variável, e às vezes fantasiosa, da Sabedoria, Força e Beleza. O que é importante é a semelhança dos “sustentáculos” da loja com as duas colunas, J e B, do templo de Salomão, e sua associação muito forte com os dois vigilantes. O ritual de companheiro (1767) da loja do marquês de Gages, La Vraie et Parfaite Harmonie, do Oriente de Mons, não dizia nada diferente:

A coluna dos aprendizes tem as letras J-F Jaquim e Força; a coluna dos companheiros, as letras B-B, para Boaz e Beleza.

De onde se tem o seguinte esquema:

                                              Fig. 2: Disposição da loja francesa


Em resumo, a loja francesa:

  • é suportada por três colunas, Sabedoria-Força-Beleza, duas das quais são nada menos do que as colunas J e B do templo de Salomão, às quais estão associados os Vigilantes, e à terceira, imaginária, o Mestre da Loja;
  • é iluminada por três luzes dispostas em esquadro nos cantos da loja: o sol, a lua e o Mestre da Loja.

O deslocamento das luzes na loja avignonesa[59] alterava radicalmente a geografia da loja e as associações simbólicas que ela ocultava. 

Na verdade, o artigo seguinte dos Regulamentos Gerais estipulava:

“Toda assembleia de maçons será chamada de Loja e será presidida por um irmão que chamaremos de Venerável, e por outros dois irmãos que serão chamados de Vigilantes, que representam as Três Luzes ou as Três Colunas da loja, a qual ainda tem por Oficiais um Orador, um Secretário, um Tesoureiro, um guarda dos Timbres e Selos, dois Mestres de Cerimônias, um Mestre Ordenador de Banquetes e dois Enfermeiros e Capelães[60] (grifos meus).”

Enquanto as colunas e as luzes são dois ternários distintos na loja francesa, aqui elas são fundidas em uma única unidade, reunindo os três principais oficiais, os candelabros e os sustentáculos da loja, tudo ilustrado pela nova disposição dos candelabros de canto. Naturalmente, as colunas J e B perdem a sua função de suporte da loja.

A instrução do grau de aprendiz do Rito Escocês Filosófico contém as sementes do anúncio desta fusão:

“D: O que vistes quando vos foi dada a Luz?

R: Três grandes luzes; o Sol, a Lua & o Ven.

D: Não vistes outras Luzes?

R: Três grandes tochas que representam o Ven. e os Vig.”


Isto permitiu que R. Desaguliers escrevesse, em 1983:

“Na minha opinião, é esta disposição dos candelabros-colunas em torno do tapete-quadrilongo e sua estreita associação com o Venerável e os dois Vigilantes que fundamenta o “Rito Escocês” para os três primeiros graus.[61]

Rapidamente concluímos:

Em uma loja escocesa,

  • o Venerável Mestre e os dois Vigilantes são ao mesmo tempo luzes (os grandes candelabros) e colunas (Sabedoria-Força-Beleza, sustentáculos da loja)
  • os três grandes candelabros, por uma mudança semântica compreensível, também se tornaram as três colunas-sustentáculos da loja,
  • as duas colunas, J e B, perdem seu significado original para não serem nada mais que as colunas de aprendizes e companheiros,
  • o tradicional ternário Sol-Lua-Venerável Mestre é mantido, mas a sua associação com os candelabros desapareceu.

 

                                     Fig. 3: Disposição da Loja Escocesa

Tudo pode ser resumido por um quadro bastante simples:

Rito ModernoRito antigo
Disposição das colunas

 

J a Noroeste, B a SudoesteB a Noroeste, J a Sudoeste
Disposição dos vigilantes[xii]1o Vigilante, coluna B

2 o Vigilante, coluna J

1o Vigilante, coluna B

2 o Vigilante, coluna J

Disposição das luzes

(tochas de canto)

NE, SE, SOSE, SO, NO

 

AclamaçãoVivat, Vivat, VivatHuzzé, Huzzé, Huzzé

 

Grandes LuzesSol, lua, Mestre da LojaSol, lua, Mestre da Loja
                      Fig. 4: Comparação dos Ritos Francês e Escocês



A única diferença significativa é a fusão, no Rito Escocês, das colunas e das luzes, fusão induzida por seu deslocamento para os mesmos ângulos que as colunas.

Nada em tudo isso justifica a condenação do Rito Francês feita por Abraham. A maçonaria “Escocesa” talvez difira da maçonaria francesa clássica, mas não de maneira tão radical como afirmava o defensor do escocismo. Ambas estavam sob a influência do “Rito Moderno”, introduzido na França com a Ordem Maçônica, mas adaptado às sensibilidades locais. O ponto de ruptura não se encontrava nos rituais dos graus azuis, mas no desejo de conferir, como no passado, os altos graus nas lojas e na rejeição à autoridade “dogmática” do Grande Oriente. 

Não é exagero, me parece, concluir que a resistência das lojas escocesas foi causada pela vontade centralizadora do GODF e não pelo abandono de uma certa tradição iniciática imaginária.

De qualquer forma, o ostracismo Grande Oriente preparou o terreno que permitiu o surgimento na França de um rito até então inédito, o Rito Escocês Antigo e Aceito, pois sem o apoio incondicional dos “Escoceses” condenados pelo Grande Oriente, os protagonistas de 1804 não teriam tido sucesso nas suas intenções. 

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